terça-feira, 8 de julho de 2014

A SOMBRA DOS POETAS NO ROMANCE “FADO- A TORCER O DESTINO”


  “Romance: mais conhecimento que entretenimento” – Massaud Moisés

A interpretação (de um romance ou de um poema) é aberta, ensina Yves Bonnefoy. Por isso é possível metermos no último romance de José Brissos-Lino uma sombra tutelar, dessas que fazem bem.

A sugestão da visão não é assim tão ténue, o locus da narrativa proporciona visionamentos claros pela sua contextualização das personagens no espaço da chamada Serra Mãe, assim como o narrema (o enunciado narrativo) nos coloca num acontecimento germinal no tempo: o ciclone e o dia 15 de Fevereiro de 1941 e, desde logo, numa linha poética: “O Sado ficou acanhado, macambúzio e estranhamente quieto” ( pág. 9).

É na amplitude desse espaço ( Serra, Rio e Mar ) que a diegese coloca o leitor do romance, sobretudo na serra da Arrábida.
“O que lhe valeu foi um velho eremita que por lá encontrou (…) porque se recolhera à Serra Mãe.” ( pág. 21)

Frei Agostinho da Cruz não é citado por acaso, é por causa da paz interior. Sim, Agostinho Pimenta (Ponte da Barca, 1540 - Setúbal, 1619), é uma reminiscência de outros tempos que resolve, no romance, a solidão do personagem designado por “Algarvio”, solitude ao mesmo tempo acompanhada espiritualmente.

 “O Frei Agostinho da Cruz, que lhe passaria talvez alguma paz interior de que tanto necessitava” ( pág. 20)
  
Acerca desta relação com a quietude da natureza, numa perspectiva do espiritual, José Régio caracterizou a poética final do Frei, depois das poesias profanas : “ Não cantou senão do que lhe inspirava a contemplação da natureza, da condição humana, e dos mistérios de Deus” (Líricas Portuguesas, Primeira Série, Portugália, 1968, pág. 169 )

Este frade “arrábido” – como lhe chamou outro antologista, o poeta Cabral do Nascimento -, que nasceu junto do “Lima saudoso”, trocou o vale colorido do rio minhoto pelas alturas da serra mãe de onde divisava o mar Atlântico, desde o Convento franciscano da Arrábida.

Nas antologias disponíveis, sublinha-se a sua poesia religiosa, mesmo aquela onde o discurso aponta para o Eu poético, que é intimista desnudando a alma de Agostinho, “Comecei a seguir o vicioso/ Na Vida” até à conversão e à clausura na Arrábida, consciente do favor divino: “Enquanto me deixais andar na terra, / Do Céu me deixareis andar mais perto”

A referência a Frei Agostinho (no capítulo 2: “O Velho Eremita”), enquanto religioso em clausura, mas livre na natureza da serra, com seus sons campestres a quebrarem o “silêncio sagrado”, apanhador desses ruídos de vida enquanto poeta, vem dar realismo ao locus a que o romancista nos conduz, para dar força a um personagem que troca as fainas do mar pelas da terra.

De resto, o recurso à história do convento franciscano arrábido, às suas ruínas no século passado, e à poesia inspiradora de poesia do velho poeta-frade, dá ao leitor a possibilidade de viver uma solidão acompanhada, em plena serra da Arrábida. Não nos situa apenas num universo temporal contabilizável, no ingrediente tempo do romance, a década de 40, o tempo da II Guerra Mundial ( “o mundo estava em guerra, uma guerra estúpida e louca”, pág. 20 ) mas na metafísica do tempo psicológico, colocando-nos no interior de cada uma das personagens.
 
Usando a ciência da narratologia para nos levar à poética, o autor de “Fado” traz à estrutura conflitual do seu romance, um velho eremita,  que é, salvo melhor opinião, uma personagem reminiscência viva do Frei Agostinho, e fá-lo narrar, na pág. 25,  a sua vida num simples soneto:

 “Se eu soubesse o que sei hoje / Não tinha gasto os meus dias / A caminhar sempre às voltas / À procura do Messias”.
Poeta e eremita que, quando descia à cidade, vestia-se com “roupa lavada”, penteava-se, fazia a barba: “ Sou como mula albardada” ( pág.32), a deixar aqui uma ironia poética de que se constrói também o romance.

Desta forma, abre caminho ao leitor para a introdução referencial de um poeta maior da nossa Literatura. Sebastião da Gama ( 1924-1952). No capítulo 3, José Brissos-Lino introduz “O Jovem Sebastião”.

A diegese decorre entre as falas do velho eremita e o “Algarvio” no quadro da paisagem circundante, serra e mar ao longe, que impõem quais personagens a sua presença ( “Ao longe viam-se já alguns barquitos à vela na faina”, “- Esta paisagem é fabulosa parece quase um quadro de um grande pintor”, “- Não admira que a Arrábida inspire tantos artistas, santos e poetas.”)

-Poetas, pergunta o Algarvio, e aqui surge a referência a “um jovem que promete, chama-se Sebastião (…) que mora aqui na serra, adora-a e escreve poemas sobre ela com paixão. Chama-lhe Serra Mãe.” (pág.36)

O velho eremita, que sugere conhecer a poesia do jovem poeta de Azeitão, poesia dispersa em jornais ou revistas em 1941, uma vez que o seu livro de estreia  “Serra Mãe” só foi publicado em 1945, afirmou que “iria longe”, “é um homem sensível e com um grande sentido telúrico” (pág. 37 e seguintes)

E o referencial telúrico que perpassa na intriga do romance, pelo menos em relação ao espaço serra, e a integração das personagens nela, e depois no espaço narrativo entre Setúbal e o Alentejo, são uma das mais valias de “Fado”.
O espaço ( a Serra Mãe) neste romance,  como ensinam as regras, é também uma extensão das personagens, liga-as ( espaço e protagonistas) à Poesia. É de certa maneira uma personagem, a serra, “a serra era sagrada (…).Tinha alma” ( pág.27).  E a alma é o que sentimos quando um poema nos olha do fundo infinito de uma epifania.

João Tomaz Parreira © 

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