sexta-feira, 25 de junho de 2021

A ILHA, um conto de Sammis Reachers

 



A Ilha

 

Depois de apenas três meses esqueci o meu nome. Não me ocorreu escrevê-lo: Estava ocupado, sobrevivendo.

Os anos não podia esquecê-los, pois há comigo um Patek, relógio que roubei sob certo sol, em certo mês de primavera, em alguma cidade do subcontinente que fora um dia chamado América do Sul – e este, sabe-se lá o porquê, é dos poucos dias de que recordo.

 

Estronda e tomba o tempo,

luz lilás,

obscuro óbito,

carretel de coisículas enrodilhadas em escaravelhos.

estrondestranhoastro brilha e berra no sobrehorizonte

Eu, Gregor Samsa, Heinrich Faust,

Rodion Românovitch Raskólnikov, Leopold Bloom

estelionatário confesso-me:

degredem-me.

 

 

Nesta ilha em que me acoitei, amontoei-me de lacunas: Além do comprometimento do sistema respiratório, o vírus tinha um outro efeito, não colateral, mas secundário e utilitariamente sádico: Apagar memórias.

Exempli gratia: Não sei mais como cheguei aqui. Lembro de cenas numa lancha, e isso finda o memorial.

Nesta pequena ilha encontrei uma imensa casa e oito cadáveres espargidos em sua estrutura. A ausência de ferimentos pode indicar que foram mortos pelo vírus. Avento hipóteses; era eu o dono do lugar? Um funcionário? Um amigo, parente do proprietário? Tudo que tenho é o estar-aqui, tudo que sei foi que aqui cheguei.

Na pequena biblioteca, livros em diversas línguas. Na única que conheço ou penso conhecer, uma coleção dita “Clássicos da Literatura”. Suas páginas sedimentaram-se como minhas únicas companhias, aqueles poucos livros em capa vermelha, seus personagens, suas personas. Suas biografias e transenlaces na vida passaram a ser os meus, eu o desmemoriado, eu o de pulmão fulminado por um vírus que não me lembro onde peguei e que deveria ter me matado, mas não matou (sei apenas que uma guerra grande mastigou as coisas humanas, todos contra todos).

 

 

Já nascemos com a turbada gravidade

de sobreviventes de um naufrágio

raça desmemoriada

quimiocontrita no corpo de um,

tênue tempestade nas folhas,

vírus multicelular em busca de não sei

 

Sparrings sem rosto no ringue do Tempo

tentando encaixar um soco

encaixar um soco no Tempo sem rosto

 

Há algum tempo me ocorrem poemas. Era poeta? Não sei. Mas acredito que não. Tanto que quando escrevo, nem me sinto: É como uma possessão. Será então a poesia, ou a atividade poética, uma demência das faculdades cerebrais?

Lá fora houve uma guerra, uma guerra de finalmente acabar com tudo. Meus frangalhos, a ilha, o lixo feito de destroços que o mar traz, dão conta do que não lembro e no entanto sei que aconteceu.

 

Lá fora:

Lá na imbricação dos mesmerizados

lá onde o progresso deflorou as virgens esfaimadas

que se lhe apresentaram;

progresso, demônio que aluiu os homens

lá fora

em seus estratos, no que voa no espirro

 

 

O barco que me trouxe jaz sem combustível; os geradores à diesel da ilha morrem da mesma sede. As frutas que como, as pequenas aves e répteis, talvez suportem meu pequeno consumo, mas e daí? Eles virão? E quem são eles, e quem sou eu? Como temer um passado que ignoro? O esquecimento, falsa liberdade ou paz provisória, me trai: Lembro ter roubado um relógio. Fui ladrão? Antes ou depois da ruína do mundo, dos mundos? Talvez tenha roubado por fome, talvez por vingança.

Alguém lá no além da ilha, ou no tudo dito além de mim (pois sem um nome, entendi finalmente o estigma que nos conforma, e contra o qual relutamos com a arma que pudemos, adaga cega que resolvemos chamar História: se sou um homem, tudo é além), deflagrou uma guerra universal, e ele talvez ainda esteja lá, e ele talvez ainda me encontre. Ou já me tenha encontrado e esquecido, nesta ilha-mausoléu, neste Alzheimer biodeflagrado por um vírus genocida.

Escrevo palavras na areia, ou poemas, essa forma primitiva de civilização das palavras, e cismo: Talvez não tenha existido uma Segunda Guerra Mundial, ou uma Primeira. Sequer os morticínios, enquanto eventos isolados, de Ruanda ou do Kosovo. Talvez seja tudo uma única e ininterrupta guerra, da morte de Abel ao Armagedon. Sem dias de trégua.

 

Ilha feridenta,

antologia de chagas

calangos e fragatas desintestinados e assados,

culinária de dramas, axiologia

do que é poético, capuz que ao homem encerra

 

Ilha tropical e sua mansão deserdada,

 nave-desespero em que o Homem

nadaformou a Terra.

 Publicado originalmente no Jornal Daki.


Este conto faz parte do livro Fabulário Índigo. Disponível em formato impresso (aqui) e e-book (pela Amazon, aqui).


quinta-feira, 10 de junho de 2021

Literatura (d)e viagem de Eliana de Castela: Pelos Rios ao Sabor da Fruta

 


Pelos Rios ao Sabor da Fruta é um convite inusitado: Um convite a juntarmo-nos, como viajores agregados ou clandestinos, numa viagem que atravessa, ao ritmo das estradas de chão e d'água, o Brasil longitudinalmente, desde o Acre até o Ceará.

Esta aprazível viagem de oeste a leste do Brasil é empreendida pela autora, Eliana de Castela, acompanhada por seu companheiro Jorge de Oliveira (Mané do Café). Ambos artistas e escritores, pesquisadores das coisas da Terra e do homem.

Em busca de sua(s) ancestralidade(s), a autora - filha de um cearense que, assim como tantos conterrâneos, migrou para o Acre nos tempos áureos da borracha - vai tecendo impressões enquanto absorve paisagens, cria ou vivifica amizades, e experimenta as frutas de cada terra por que passa. Não se trata aqui de um romancear a realidade: As mazelas desses muitos Brasis são percebidas e discutidas pela autora, ciente de seu papel como observadora crítica e ativa das realidades com que se depara.

O livro, ilustrado, possui 130 páginas e foi publicado pela prestigiosa editora portuguesa Chiado. Para os que desejarem adquirir, podem acessar o site da editora, aqui.


Aqui um dos capítulos do livro, 

                                              O Cariri que nos habita


"Só deixo o meu Carirí,

no último pau de arara.

Enquanto a minha vaquinha,

Tiver o couro e o osso,

e puder com o chocalho,

Pendurado no pescoço,

Eu vou ficando por aqui..."

 

A música, de José Guimarães, Corumba e Venâncio, que foi cantada por Luiz Gonzaga e Fagner, entre outros grandes cantores da música nordestina, que trago um pequeno trecho, abrindo esse capítulo, faz parte do meu imaginário infantil. A música deu asas ao pensamento, que ficava como dunas ao sabor do vento, fazendo e desfazendo imagens sobre o Nordeste brasileiro, especialmente o Ceará, antes de eu conhecer aquele pedaço do Brasil.

Assim como a música, também os livros, O Quinze, de Raquel de Queiroz e Vidas Secas, de Graciliano Ramos, colaboraram com o sentimento de carinho para com aquela região. É a arte e a literatura dando beleza na representação do sofrimento humano. Tais obras, a qualquer leitor, mesmo aquele que nunca tenha pisado o sertão, faz sentir a aridez do ambiente, o sofrimento e o apego dos sertanejos ao lugar, bem como, desperta curiosidade de desvendar quais são os motivos que fazem o sertanejo ali permanecer em meio a tanto sofrimento.

Completando a lista dos escritores que construíram o meu imaginário sobre o sertão nordestino, destaco o poeta cearense, Fernando cie Castela, que por muitos dias de nossa infância — minha e de meus irmãos — ilustrou com seus poemas c causos, a vida das famílias, na peleja com a seca, a roça que não vinga e o gado que perece. Assim como as histórias das longas caminhadas pela caatinga, de homens sem esperança, com seus filhos desfigurados pela fome, de mulheres que têm os rostos tão áridos, quanto as gretas de concreção que se formam no chão daquelas terras. É a chuva, um dos motes da poesia matuta, de Fernando de Castela, que nos faz entender um pouquinho daquele lugar:

 

"...Tá chuvendo em minha terra!

Chove no meu Ceará...

Meu., irmão arretirante

qui fugira do sertão

tão vortando em arvoroço.

Festa de viola e sanfona

dentro dos seus coração.

Tá chuvendo em minha terra,

tá chuvendo no sertão..."

 

As pessoas resistem à espera da chuva, enganam-se com o desejo de uma nova aurora, partem, mas afirmam que retornarão para casa se a chuva cair... Quimeras, apenas quimeras. Elas não deixam o seu cantinho, enquanto há um fio de esperança. Mas por que é assim? Essa intrigante pergunta que muitos devem fazer e que eu me fiz sempre, foi encontrando respostas ao longo da vida e de forma mais aprofundada, quando visitei o Cariri. Mas nem tudo resposta e outras perguntas surgem.

Aquele lugar árido, que a plantação não vinga, que a criação morre, que as crianças choram de fome, tem o mesmo encanto, riqueza e beleza, para o sertanejo, assim como tem para as pessoas que nasceram e vivem, num lugar de fartura. A nossa aldeia, seja no Cariri, seja na Amazônia ou no litoral do Ceará, é o lugar que alimenta os sonhos e que convida os filhos a ficarem. Para quem é do Cariri, é lá que se adquire o sentido de pertencimento e de identidade com aquele todo, seja o prazer ou a dor. São estes alguns dos fatores, não determinantes, mas hierarquicamente superiores, para a decisão de não partir.

Ao longo da viagem, outros momentos e questionamentos fortaleceram a compreensão de pertencimentos, como aconteceu quando alguém me perguntou — o que tem de interessante no Acre para se visitar? Qual é o atrativo turístico que convida os visitantes? Parei por um instante, depois de pensar na família e nas pessoas amigas, rapidamente o meu pensamento percorreu florestas, que tantas vezes admirei e que me inspiraram a escrever poemas, igarapés que me refrescaram nas horas de lazer, de tantos fins de semanas, o rio da minha aldeia, hoje assoreado e poluído, mas foi dele, antes de tanta poluição, que emergiram ideias, para o trabalho e para o lazer.

Continuei listando mentalmente, as incontáveis horas de banhos no rio, alheia à preocupação da minha mãe e dos riscos prováveis, movida pela ânsia de brincar, juntamente com outras crianças, as trocas, pois as brincadeiras das crianças dão sentido ao rio. As praias do centro da cidade, hoje não são mais apropriadas ao banho, mas foi nelas que eu brinquei, antes de serem descoloridas pelos esgotos. Quando olho para as praias hoje, vejo o passado e idealizo o futuro. A infinidade de sentidos vai além do rio, está nas comidas, nas praças, ruas... Tudo do lugar, é a referência e parâmetro, até mesmo para me sentir em casa, em qualquer outro lugar do mundo, o que pode parecer contraditório. É por isso, que o nordestino só deixa o seu "Cariri no último pau de arara".

A região do Cariri, assim como muitas outras por onde passamos, tem denominação de origem indígena. O povo Kariri ou Quiriri, embora tenha resistido e lutado contra os invasores, foi escravizado, roubado e morto. Seus territórios foram ocupados pelas cidades, atualmente com várias denominações indígenas.

A região do Cariri abriga um importante sítio arqueológico, onde se encontra soterrada grande parte da história dos juntamente com a cerâmica e outros utensílios. Muitas dessas peças de cerâmica extraídas cio sítio arqueológico estão expostas nos centros culturais, constituindo importante atrativo turístico. Quanta contradição!

O Cariri foi o sítio por nós escolhido para sentir um pouco da vida do sertão do Ceará. Mas a região abrange também, alguns municípios de Pernambuco, Paraíba e Piauí. Dos nove municípios do Ceará que integram a Região Metropolitana do Cariri, visitamos apenas quatro cidades. O Crato foi o local escolhido para pouso, face à centralidade em relação às demais cidades visitadas - Juazeiro do Norte, Nova Olinda e Santana do Cariri onde fatos interessantes ilustraram nossos dias, justificando o registro.

Andar no rastro dos antepassados, que vieram do Ceará para o Acre, foi como se eu tivesse ido à "escavação arqueológica" sem instrumentos adequados, por não dispor de referências, na procura de vestígios que identificassem minhas ligações com eles, foi algo quixotesco. Não elaborei nenhum projeto de pesquisa, nem sequer um roteiro para isso, tudo foi feito no campo das elucubrações. O instrumento investigativo, que considerei uma brincadeira foi a percepção, os sentidos aguçados, para perceber qualquer coisa que remetesse ao que ouvi quando criança. Comecei então, a estabelecer urna relação das frutas com as pessoas e os fatos.

O meu pai dizia que no quintal da sua casa, quando ele era criança, tinha frutas que ele só poderia comer se "roubasse" e citava as frutas. Já a minha mãe contava que ela e os seus irmãos brincavam com as melancias, na praia do rio Taco, jogando urna contra outra para parti-la, comer e até desperdiçar. Minha mãe viveu em grande fartura alimentar, sempre deu destaque a isso, diferente da vida do meu pai, que sempre deu destaque à fome.

Seriguela, sapoti, umbu, umbu-cajá, tamarindo... É como se eu quisesse ao comer a fruta, fazer uma viagem ao passado através do paladar, desvendar os mistérios e destruir os hiatos deixados pelo tempo, revelando histórias não contadas. Tudo ao sabor das frutas, como as beberagens e o rapé dos pajés, trazer à luz, o que é preciso saber para a vida.

Mas para que isso tudo? Talvez porque a busca pela ancestralidade seja a tentativa de conhecer a nós próprios. Porém o caminho da busca ancestral, às vezes é temeroso de ser inútil, de continuar incompreendido, de poder nos levar a um passado mais profundo, no momento que não encontramos as respostas. O melhor é desfazer as dúvidas. porque o caminho do conhecimento é hipotético. As reflexões surgiram quando cheguei ao Ceará, mas eu apenas segui, elas foram aprofundadas ao escrever.


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