segunda-feira, 18 de abril de 2022

Sobre literatura, fraternidade e liberalidade (crônica)

 


O erudito inglês Isaac D'Israeli costumava dizer que a sabedoria dos sábios e a experiência dos séculos pode ser conservada em citações. No que era chancelado pelo controverso Nietzsche, que dizia: “O aforismo, a sentença, são formas de eternidade. Minha ambição é dizer em dez frases o que outro qualquer não diz num livro”. Arrogância? Bem, essa era uma de suas maestrias. O luso Alcantara de Meneses parece acorrer em socorro do alemão, quando diz: “Quem diz tudo o que sente num livro é um sábio; quem diz tudo o que sente numa máxima é um gênio.”

Como antologista e editor, embora já tenha trabalhado com gêneros que vão do teatro ao poema, tenho me “especializado” há algum tempo em coletâneas de citações. Contam já coisa dumas trinta, entre e-books gratuitos e outros comercializados na Amazon.

Tento suprir a sanha de todos os paladares: A Educação em 365 Frases; Amor, Esperança e Fé em 750 Citações; Poesia em 500 Citações; As mais belas citações sobre o Perdão, só para citar alguns dos livros gratuitos (clique sobre os títulos e baixe os seus).

Meu fascínio por frases e citações vem de longe, de alguns livros da pequenina biblioteca de meu pai, mas principalmente de um certo livro, e sua história em especial. O livro é o Coquetel Literário (uma antologia de citações), calhamaço fascinante de quase 500 páginas, de autoria de Dário Derenzi, eminente e falecido dentista afeito às lides literárias. 

Certa feita, eu ainda moleque de meus quatorze anos, li em certo periódico sobre o lançamento de tal livro, uma edição do autor, não comercializada. Dava endereço para solicitação de informações. Eu, humildemente, enviei minha cartinha, rogando informações sobre como adquirir o livro. Naqueles idos eu enviava cartas para tudo enquanto é lado, e devo ter sido da última geração a usufruir do saudoso universo epistolar, antes do e-mail suplantar (nada contra o progresso!) aquele universo de selos e caligrafia.

Mas voltando ao livro do Derenzi: Um belo dia eu estava com meu pai do lado de fora de nossa casa, cortando alguns galhos de uma árvore, no não tão pacato Jardim Nazaré. De repente para um carro de luxo, presença estranha no bairro naquela época. Um homem saiu do carro, em trajes sociais, viu o número da casa pintado no muro, conferiu em um papel, e em seguida indagou ao meu pai: "O senhor é o senhor... hum... Sammis... Reachers?" "Não, o 'senhor' Sammis Reachers é esse aqui", disse meu pai, espantado, me apontando. O homem me observou, também algo espantado, talvez pela minha pouca idade, e em seguida me estendeu um pacote. "Este livro é para você. O Dr. Dário me pediu para lhe entregar". 

O cidadão se deslocara da Tijuca até São Gonçalo (!!!!) para dar um livro a um desconhecido, a mando ou pedido de um terceiro. 

Aprendi muitas coisas naquele dia. Aprendi sobre liberalidade. Sobre o apreço pela literatura, seu alto valor, não redutível a cifrões, e a fraternidade que ela promove entre os homens. E ampliei meu até ali imberbe apreço pelas máximas. 

Sempre que me calha na telha elucubrar uma nova antologia de máximas, vou ao setor de minha estante dedicado ao tema. E ao observar aquele livro negro e volumoso, me lembro com carinho da generosidade do velho Dário, de quem nunca tive o prazer de apertar a mão, senão em pensamento. Ele, aquele colecionador de frases, nuca teve a chance de saber que eu fui um seu continuador.

Parafraseando Isaac Newton, se aprendi a fazer livros e a disponibilizá-los de graça, foi amparado nos ombros de gigantes!

 

Sammis Reachers

quarta-feira, 6 de abril de 2022

(In)satisfação e existência – Um trecho de Kierkegaard

 


Quanto mais se envelhece, tanto mais entendimento se tem em relação à vida e mais gosto para o que é agradável e capacidade para apreciar; resumindo, quanto mais competente um indivíduo se torna, menos satisfeito fica. Satisfeito, completamente, absolutamente e de todas as maneiras, isso nunca se fica, e estar mais ou menos satisfeito não vale a pena; assim sendo, é melhor estar totalmente insatisfeito. Qualquer pessoa que tenha examinado o assunto aprofundadamente dar-me-á decerto razão quanto ao fato de, ao longo de toda a vida, nunca ser concedido a um indivíduo, nem por uma meia hora, estar absolutamente satisfeito de todas as maneiras que possam pensar-se. Que para tanto é nomeadamente necessário algo mais do que ter alimentação e vestuário, não precisarei decerto de dizer. Uma vez estive lá próximo.

Uma manhã levantei-me e senti-me desusadamente bem; o meu sentimento de bem-estar aumentou ainda, sem analogia com qualquer outra experiência, até ao meio-dia; precisamente à uma da tarde encontrava-me no ponto mais alto e pressentia o vertiginoso máximo que não se encontra marcado em nenhuma escala do bem-estar, nem sequer num termômetro poético. O meu corpo perdera o seu peso terrestre; era como se eu não tivesse corpo, precisamente porque cada função se deleitava na sua total satisfação, cada nervo regozijava-se consigo próprio e com o todo, ao mesmo tempo que cada pulsação, enquanto agitação do organismo, se limitava a evocar e anunciar o prazer do instante. 

O meu andar era planante, não como o voo da ave, que rasga os ares e abandona a terra, mas antes como o ondear do vento sobre a seara, como o embalar nostálgico do mar, como o transcorrer sonhador das nuvens. O meu ser era transparência como a profundidade dos baixios do mar, como o silêncio da noite, satisfeito de si, como a quietude monologal do meio do dia. Cada disposição repousava na minha alma com ressonância melódica. Cada pensamento ofertava-se, e cada pensamento ofertava-se com o júbilo da bem-aventurança: a mais louca invenção não menos do que a ideia mais rica. Cada impressão era pressentida antes de chegar, e por isso despertava dentro de mim mesmo. Toda a existência estava como que apaixonada por mim e tudo estremecia numa relação prenhe de consequências com o meu ser, tudo em mim era augúrio e tudo estava enigmaticamente transfigurado na minha microscópica bem-aventurança que tudo transformava em si, mesmo as coisas desagradáveis, o reparo mais enfadonho, a visão de algo repugnante, o conflito mais vexante.

Como ficou dito, precisamente à uma hora da tarde estava eu no ponto mais alto, em que pressentia o cume dos cumes; nessa altura algo começou subitamente a irritar-me um dos olhos; se era uma pestana, uma partícula, um grão de poeira, não sei, mas o que sei é que nesse mesmo instante quase me despenhei no abismo do desespero, coisa que compreenderá qualquer pessoa que tenha estado tão alto como eu e que, estando nesse ponto, se tenha ocupado simultaneamente com essa questão de princípio que é a de saber em que medida se consegue alcançar de todo a absoluta satisfação.

Desde essa altura abandonei qualquer esperança de alguma vez me achar satisfeito em absoluto e de todas as maneiras, abandonei a esperança, que uma vez alimentara, não decerto de estar absolutamente satisfeito em todos os momentos, mas ao menos em certos instantes, ainda que essas unidades de instante não sejam mais do que aquilo que, como diz Shakespeare, “uma aritmética de cervejeiro seria suficiente para somar”.

Trecho extraído aleatoriamente de A Repetição, de Soren Kierkagaard.


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