sábado, 16 de dezembro de 2023

O céu, o inferno e a amizade - Um texto de sabedoria

 


Um homem, seu cavalo e seu cão, caminhavam por uma estrada. Depois de muito caminhar, esse homem se deu conta de que ele, seu cavalo e seu cão haviam morrido num acidente.   

Às vezes os mortos levam tempo para se dar conta de sua nova condição. A caminhada era muito longa, morro acima, o sol era forte e eles ficaram suados e com muita sede. Precisavam desesperadamente de água.

 

Numa curva do caminho, avistaram um portão todo magnífico, todo de mármore, que conduzia a uma praça calçada com blocos de ouro, no centro da qual havia uma fonte de onde jorrava água cristalina.

 

O caminhante dirigiu-se ao homem que numa guarita, guardava a entrada.

 

- Bom dia, ele disse.

 

- Bom dia, respondeu o homem.

 

- Que lugar é este, tão lindo?, ele perguntou.

 

- Isto aqui é o céu, foi a resposta.

 

- Que bom que nós chegamos ao céu, estamos com muita sede, disse o homem.

 

- O senhor pode entrar e beber água à vontade, disse o guarda, indicando-lhe a fonte.

 

- Meu cavalo e meu cachorro também estão com sede.

 

- Lamento muito, disse o guarda. Aqui não se permite a entrada de animais.

 

O homem ficou muito desapontado porque sua sede era grande. Mas ele não beberia, deixando seus amigos com sede. Assim, prosseguiu seu caminho.

 

Depois de muito caminharem morro acima, com sede e cansaço multiplicados, ele chegou a um sítio, cuja entrada era marcada por uma porteira velha semi-aberta.

 

A porteira se abria para um caminho de terra, com árvores dos dois lados que lhe faziam sombra. À sombra de uma das árvores, um homem estava deitado, cabeça coberta com um chapéu, parecia que estava dormindo:

 

- Bom dia, disse o caminhante.

 

- Bom dia, disse o homem.

 

- Estamos com muita sede, eu, meu cavalo e meu cachorro.

 

- Há uma fonte naquelas pedras, disse o homem e indicando o lugar. Podem beber a vontade.

 

O homem, o cavalo e o cachorro foram até a fonte e mataram a sede.

 

- Muito obrigado, ele disse ao sair.

 

- Voltem quando quiserem, respondeu o homem.

 

- A propósito, disse o caminhante, qual é o nome deste lugar?

 

- Céu, respondeu o homem.

 

- Céu? Mas o homem na guarita ao lado do portão de mármore disse que lá era o céu!

 

- Aquilo não é o céu, aquilo é o inferno.

 

O caminhante ficou perplexo.

 

- Mas então, disse ele, essa informação falsa deve causar grandes confusões.

 

- De forma alguma, respondeu o homem. Na verdade, eles nos fazem um grande favor. Porque lá ficam aqueles que são capazes de abandonar até seus melhores amigos.


Autor desconhecido



sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

ALMAS PERFUMADAS, um texto de Ana Jácomo

 


Tem gente que tem cheiro de passarinho quando canta. De sol quando acorda. De flor quando ri. Ao lado delas, a gente se sente no balanço de uma rede que dança gostoso numa tarde grande, sem relógio e sem agenda. Ao lado delas, a gente se sente comendo pipoca na praça. Lambuzando o queixo de sorvete. Melando os dedos com algodão-doce da cor mais doce que tem pra escolher. O tempo é outro. E a vida fica com a cara que ela tem de verdade, mas que a gente desaprende de ver.

Tem gente que tem cheiro de colo de Deus. De banho de mar quando a água é quente e o céu é azul. Ao lado delas, a gente sabe que os anjos existem e que alguns são invisíveis. Ao lado delas, a gente se sente chegando em casa e trocando o salto pelo chinelo. Sonhando a maior tolice do mundo com o gozo de quem não liga pra isso. Ao lado delas, pode ser abril, mas parece manhã de Natal do tempo em que a gente acordava e encontrava o presente do Papai Noel.

Tem gente que tem cheiro das estrelas que Deus acendeu no céu e daquelas que conseguimos acender na Terra. Ao lado delas, a gente não acha que o amor é possível, a gente tem certeza. Ao lado delas, a gente se sente visitando um lugar feito de alegria. Recebendo um buquê de carinhos. Abraçando um filhote de urso panda. Tocando com os olhos os olhos da paz. Ao lado delas, saboreamos a delícia do toque suave que sua presença sopra no nosso coração.

Tem gente que tem cheiro de cafuné sem pressa. Do brinquedo que a gente não largava. Do acalanto que o silêncio canta. De passeio no jardim. Ao lado delas, a gente percebe que a sensualidade é um perfume que vem de dentro e que a atração que realmente nos move não passa só pelo corpo. Corre em outras veias. Pulsa em outro lugar. Ao lado delas, a gente lembra que no instante em que rimos Deus está dançando conosco de rostinho colado. E a gente ri grande que nem menino arteiro.

Ana Cláudia Saldanha Jácomo

http://anajacomo.blogspot.com


domingo, 19 de novembro de 2023

1000 Citações sobre Amor, Esperança e Fé em e-book gratuito



Amor (ou caridade), Esperança e : As três principais virtudes cristãs, conforme arroladas pelo apóstolo Paulo no décimo terceiro capítulo da Primeira Carta aos Coríntios, um dos ou talvez mesmo o mais belo capítulo de todo o Novo Testamento. Os católicos chamam-nas de virtudes teologais, que seriam infundidas por Deus no homem, e cuja ação é complementada pelas virtudes cardinais (prudência, justiça, fortaleza e temperança).

Nesta breve seleta, reunimos nada menos que mil (e cem) citações. São textos notadamente de autores cristãos (reformados, católicos e de outras vertentes), mas não somente; autores de outras confissões religiosas aqui comparecem, e mesmo agnósticos e livres pensadores os mais diversos, contribuindo para o entendimento e a reflexão plurais sobre tais temas de infindável profundidade. Assim, mesmo focado na seara cristã, esta pequena antologia é de valia para todo tipo de leitor, todo aquele que tem sua atenção capturada pelo mundo das ideias.

Este livro é uma edição revista e ampliada do e-book “Amor, Esperança e Fé – Uma antologia de citações”, publicado em 2017, e que reunia em torno de 750 citações sobre as três virtudes. Além do acréscimo em citações, aqui inserimos uma nova seção, “As Três Virtudes”, reunindo citações que falem ao mesmo tempo sobre as três, ou ao menos duas delas. O referido e-book foi uma publicação que surgiu no rastro de comemorações dos 500 anos da Reforma Protestante.

“Bem, as virtudes teologais: o que tem isso a ver com a Reforma?”, perguntará o leitor mais desatento. E que foi a Reforma, senão um retorno ou esforço de retorno aos fundamentos da fé cristã uma vez perdidos ou obnubilados? Anseio desesperado de tornar às bases e raízes que foram amortecidas ou banidas em troca de conceitos débeis e prostituídos? Se assim entendermos, percebemos que nada há de mais basilar em nossa crença do que o consórcio destas três virtudes capitais. São elas que garantem a simplicidade revolucionária da mensagem dAquele que por todos se ofereceu na cruz.

Que esta pequena seleta seja de proveitosa e edificante leitura a você, amigo leitor. Mais do que um livro a ser lido, nosso esforço foi para tornar este volume um livro a ser revisitado enquanto durar nossa peregrinação terrena.

E agora, além da versão em e-book, gratuita, atendemos a um pedido de muitos e disponibilizamos uma versão impressa, à venda no site da Editora UICLAP.


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Caso queira adquirir o livro impresso, confira no site da UICLAP, CLICANDO AQUI.


quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Paz para praticar meu perenal ofício, poema de Sammis Reachers

 


Paz para praticar meu perenal ofício


Visto este andrajo de leão lá fora

Simulo humores em que ajo e interajo

E suores realizo, rito no qual contas quito.

 

Chegar em casa é meu fulcral laurel.

Revolucionário, mestre, pregador, menestrel?

Sou o que disso vai no interstício.

 

Sarau, academia, sodalício? Solitude almejo.

Cego, só por livros vejo: sou tatu cavoucando

Paz para praticar meu perenal ofício.



sábado, 21 de outubro de 2023

E-book gratuito: 150 Frases de Soren Kierkegaard - Um pouco do melhor do Filósofo da Existência

 

Complexo, arguto, irônico, poético, multiplamente genial: Assim foi o dinamarquês, nascido em Copenhague, Søren Aabye Kierkegaard (1813 – 1855).

Ao compreender o peso que se estabelece sobre cada ser humano – a liberdade que exige uma tomada de posição, e ao postular que o mundo interior, subjetivo, era muito mais importante que o exterior, Kierkegaard antecipou temas da psicologia e da filosofia que, doravante, nortearam boa parte dessas disciplinas.


Viveu uma vida reclusa e conturbada, na qual sua profunda percepção da situação angustiante e mais do que isso, absurda do homem – enquanto criatura afastada de seu Criador – lhe infligiram duros pesares.

Seu entendimento profundo do cristianismo o levou a ser um crítico da igreja de seu tempo, pois Kierkegaard, mais do que talvez qualquer homem em séculos antes e depois dele, sabia que a verdadeira vivência da fé cristã era um salto – oneroso ao máximo – dentro do absurdo, salto paradoxal (pois a fé é a superação da racionalidade) que significava a única oportunidade de transcender tal absurdo rumo ao absoluto, e o ápice a que o homem poderia almejar, dentro dos três estágios existenciais propostos pelo pensador: o estético, o ético e o religioso.

Sua vasta obra, desenvolvida através de pseudônimos que dialogam entre si, tem influenciado pensadores e artistas das mais variadas correntes, desde seu advento. Não sem razão ele é considerado o pai do Existencialismo.

Aqui, um pouco do melhor de Kierkegaard.

Para baixar gratuitamente o e-book em formato PDF pelo Google Drive, clique AQUI.


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terça-feira, 17 de outubro de 2023

Seis poemas de Ana Martins Marques

 


RELÓGIO

 

De que nos serviria

um relógio?

se lavamos as roupas brancas:

é dia

as roupas escuras:

é noite

se partes com a faca uma laranja

em duas:

dia

se abres com os dedos um figo

maduro:

noite

se derramamos água:

dia

se entornamos vinho:

noite

quando ouvimos o alarme da torradeira

ou a chaleira como um pequeno animal

que tentasse cantar:

dia

quando abrimos certos livros lentos

e os mantemos acesos

à custa de álcool, cigarros, silêncio:

noite

se adoçamos o chá:

dia

se não o adoçamos:

noite

se varremos a casa ou a enceramos:

dia

se nela passamos panos úmidos:

noite

se temos enxaquecas, eczemas, alergias:

dia

se temos febre, cólicas, inflamações:

noite

aspirinas, raio-x, exame de urina:

dia

ataduras, compressas, unguentos:

noite

se esquento em banho-maria o mel que cristalizou

ou uso limões para limpar os vidros:

dia

se depois de comer maçãs

guardo por capricho o papel roxo escuro:

noite

se bato claras em neve:

dia

se cozinho beterrabas grandes:

noite

se escrevemos a lápis em papel pautado:

dia

se dobramos as folhas ou as amassamos:

noite

(extensões e cimos:

dia

camadas e dobras:

noite)

se esqueces no forno um bolo

amarelo:

dia

se deixas a água fervendo

sozinha:

noite

se pela janela o mar está quieto

lerdo e engordurado

como uma poça de óleo:

dia

se está raivoso

espumando

como um cachorro hidrófobo:

noite

se um pinguim chega a Ipanema

e deitando-se na areia quente sente ferver

seu coração gelado:

dia

se uma baleia encalha na maré baixa

e morre pesada, escura,

como numa ópera, cantando:

noite

se desabotoas lentamente

tua camisa branca:

dia

se nos despimos com ânsia

criando em torno de nós um ardente círculo de panos:

noite

se um besouro verde brilhante bate repetidamente

contra o vidro:

dia

se uma abelha ronda a sala

desorientada pelo sexo:

noite

de que nos serviria

um relógio?



5 poemas da série “Cartografias”

 

E então você chegou

como quem deixa cair

sobre um mapa

esquecido aberto sobre a mesa

um pouco de café uma gota de mel

cinzas de cigarro

preenchendo

por descuido

um qualquer lugar até então

deserto


*


Você fez questão

de dobrar o mapa

de modo que nossas cidades

distantes uma da outra

exatos 1.720 km

fizessem subitamente

fronteira


*


Combinamos por fim de nos encontrar

na esquina das nossas ruas

que não se cruzam


*


Não sei viajar não tenho disposição não tenho coragem

mas posso esquecer uma laranja sobre o México

desenhar um veleiro sobre a Índia

pintar as ilhas de Cabo Verde uma a uma

como se fossem unhas

duplicar a África com um espelho

criar sobre o Atlântico um círculo de água

pousando sobre ele meu copo de cerveja

circunscrever a Islândia com meu anel de noivado

ou ocultar o Sri Lanka depositando sobre ele

uma moeda média

visitar os nomes das cidades

levar o mundo a passeio

por ruas conhecidas

abrir o mapa numa esquina, como se o consultasse

apenas para que tome

algum sol


*


Quando enfim

fechássemos o mapa

o mundo se dobraria sobre si mesmo

e o meio-dia

recostado sobre a meia-noite

iluminaria os lugares

mais secretos


terça-feira, 3 de outubro de 2023

Poemas sobre o LIVRO - Uma microantologia (E-book gratuito)

 

Esta coleção mambembe, “Separatas a Esmo”, é a desculpa que me dou quando não quero realizar uma antologia temática de maior fôlego, mas não posso deixar de cumprir meu solitário papel social de antologista, que é nutrir o leitor com leituras benfazejas (ou que ao menos eu goste de ler). Assim, bom é já avisar que há de certeza muitos outros poemas sobre o Livro e a Leitura que aqui poderiam figurar; estão por aí, perdidos/pulsantes no hiperuniverso da literatura. Mas temos aqui algo com que começar, algo com que alegrar-nos.

A confirmar o caráter de breve fôlego deste plaquete, preciso assinalar que a maior parte destes poemas foram retirados, sim, de antologia senão de facto, ao menos de direito e ISBN, a obra (que também organizamos) O Livro e o Prazer da Leitura em 600 Citações (Uiclap, 2023). A maior parte, mas não todos. Há poemas aqui que não entraram na referida seleta, e aquela é, afinal, focada no universo das frases. Aqui, embora em espaço exíguo, a poesia reina sozinha, esporte primevo que sempre lhe aprouve e bem vestiu.

No mais, aqui estão, graciosamente para você ler e compartilhar, poemas sobre Sua Majestade, o Livro.

Sammis Reachers

Para baixar seu exemplar em PDF pelo Google Drive, CLIQUE AQUI.


quinta-feira, 21 de setembro de 2023

O Livro e o prazer da leitura em 600 citações: Antologia reúne frases e poemas sobre o livro e a leitura

 

O livro é a porta para o que é o homem, o que é humano. É o testemunho máximo de nossa história e evolução, raízes e anseios – e nosso alcance. Faltam-nos palavras para descrever o livro. Bem, este é justamente um dos motivos deste livro sobre o livro (e sobre a leitura): coligir reflexões as mais diversas sobre o nosso amigo de todas as horas, bem como sobre o prazer que a leitura proporciona, oriundas de autores, tempos e culturas os mais variados.

A reflexão sobre o livro e o incessante e multiforme incentivo à leitura precisam estar na base, no “chão” da cultura, para que o edifício se erga e sustenha. Afinal, o livro é o objeto cultural elementar.

Pais e educadores, leitores e escritores, livreiros, editores, políticos, jornalistas – profissionais e amantes do livro e qualquer um preocupado com os destinos da educação e do próprio país encontrarão aqui um ferramental de boa e urgente reflexão. “Munições” (frases e também poemas) para lembrarmos, celebrarmos e promovermos a cada dia mais a Sua Excelência, o Livro.

O livro impresso está disponível no site da Editora UICLAP. Confira: https://loja.uiclap.com/titulo/ua39713/

Formato: 14x21; 112 páginas.


Este livro impresso é uma edição ampliada do e-book "O Livro e o prazer da leitura em 400 citações", disponível na Amazon.

sábado, 5 de agosto de 2023

As melhores frases sobre a Gratidão em livro gratuito - 250 citações

 

Preservar o sentimento de gratidão é fundamental. Pesquisas demonstram que o sentimento de gratidão é benéfico para a saúde não apenas psicológica e espiritual, mas também para a física.

A conquista de uma vida virtuosa passa pelo gargalo da gratidão, o tema deste livro. A dificuldade de expressar gratidão pode ser profundamente limitadora, cerrando a janela para outros sentimentos saudáveis, numa espécie de reação em cadeia ou círculo vicioso.

O sentimento de gratidão é um caminho seguro para a paz e a felicidade, a saúde e a realização pessoal. Mas ela precisa apoiar-se em outras virtudes para que juntas elas rendam um proveito maior e duradouro.

Neste breve livro, reunimos 250 citações selecionadas dos mais diversos tempos e autores, sobre esse tema enriquecedor e poderoso para renovar e ressignificar nossas vidas. E, ao fim do livro, oferecemos dicas preciosas para ajudar você a “quebrar a cadeia” da ingratidão.


Para baixar o seu exemplar gratuito (em formato PDF) através do Google Drive, CLIQUE AQUI.


O e-book também está disponível na Amazon, de leitura gratuita para os assinantes do Kindle Unlimited. Confira AQUI.


sábado, 1 de julho de 2023

Sammis Reachers lança romance de ação fantástica: A Ordem Luterana da Cruz Combatente



Prezados leitores, é com prazer que anunciamos o lançamento do romance A Ordem Luterana da Cruz Combatente, de Sammis Reachers.

O livro já está disponível como e-book, na Amazon (confira AQUI) e como livro impresso, na Uiclap (confira AQUI).



A tomada de Jerusalém e dos tesouros do Templo por Nabucodonosor, em 597 a.C., liberou inadvertidamente sobre a Terra um poder sobrenatural, um poder capaz de mobilizar – de uma forma jamais vista – a homens, anjos e demônios, e decidir os destinos do mundo.

Muitos séculos depois, para impedir que os objetos responsáveis por tal poder caíssem em mãos erradas – e também para arrancá-los de tais mãos – um relutante monge alemão, Martinho Lutero, se viu obrigado a fundar uma organização secreta. Uma Ordem Combatente, cuja guerra de vida e morte, travada nos quatro cantos da Terra, se estende até os dias atuais.


LEIA UM CAPÍTULO DO LIVRO AQUI.

*   *   *

Poeta e contista premiado, com mais de dez livros publicados, neste seu romance de estreia Sammis Reachers convida os leitores a embarcarem numa trama envolvente e frenética, onde a fantasia histórica, o thriller de ação e espionagem e os questionamentos sobre a fé cristã e a ética da violência se unem numa narrativa surpreendente e arrebatadora.



domingo, 18 de junho de 2023

The Arcade Fire - Um conto em homenagem à era de ouro dos fliperamas

 


Todo fliperama tem desses. Nós mesmos o somos, quando duros: O observador, o que fica vezes horas observando outros jogarem, em silêncio, mais ou menos interessado. Vezes outras observam, observamos as máquinas jogando “sozinhas”, no modo demonstração.

Por isso, aquele indivíduo, embora já mais adulto que adolescente, só atraiu a atenção por não ser do bairro. Mas isso era o de menos, as ruas eram movimentadas e a fama daquele point, por sempre receber primeiro as novidades, as novas placas de jogos vindas direto de São Paulo, atraía expedicionários de largo chão.

Era um dia inspirado: Após surrar nada menos que oito formidáveis oponentes no The King of Fighters ’97, pulei para o Mortal Kombat e segui surrando quantos havia – até o menestrel do jogo, Maurício, desta vez espancado com desenvoltura.

O ânimo era tanto naquela sexta-feira alcançando a noite que fomos para as máquinas B, os jogos divertidos, mas não tão solicitados: A disputa comunitária se transferiu primeiro para uma cabine de World Heroes Perfect, depois para uma de Samurai Shodown. E ali, meus pares ficaram pequenos naquela sexta, esmurrados e guilhotinados para além do normal da balança. Bem, na verdade aquilo era meio de praxe já. Eu era um completo aficionado (meus detratores me diziam viciado) em jogos eletrônicos, notadamente os de luta; passava horas dos dias, todos os dias, nos fliperamas. Por vezes a fissura era tanta que eu esperava algum deles abrir, sentado à porta já antes das sete da manhã.

Naquela noite, ao rumarmos para as tais máquinas, percebi que o “olheiro” nos acompanhara. Observava agora atento, eu aplicando sopapos e magias no Samurai Shodown. De tanto vê-lo ali, a observar em silêncio os trâmites da jogatina, ousei desafiá-lo:

– E aí meu amigo, bora? Quer jogar um pouco?

Ele quebrou a impassividade com um meio sorriso, e me deu um tipo de cartão ou flier. Era na verdade um convite:

 

THE ARCADE FIRE

GRANDE TORNEIO UNDERGROUND

APENAS JOGOS DE LUTA

RALLY DE 20 JOGOS ALEATÓRIOS

Torneio fechado Apenas 24 jogadores

 

1º colocado: R$ 6.000 e NEO GEO CD; 2 º: R$ 3.000 e NEO GEO CD;

3 º: R$ 2.000 e NEO GEO CD. 4 º e 5 º: R$ 1.000 cada.


Número: ______19_______.

Torneio justo e às cegas: Jogos e personagens aleatórios 

Se você tem este bilhete, considere-se convidado! Ligar para (021) 701-7766.

 

 

Hoje, 9 de outubro de 1997, o salário mínimo vale míseros 120 reais. Assim, aquela premiação dispensava comentários. A numeração à caneta, “19”, num torneio com apenas 24 competidores, me perturbou. Seria tudo aquilo uma piada? Mas, caramba, eu era um dos melhores, senão o melhor jogador do talvez principal fliperama da cidade. E naquele dia estava absoluto, exuberante no joystick! Decerto o carinha não estava ali, observando há mais de três horas, à toa!

Atônito sorvendo e digerindo as informações, quando retomei ao indivíduo e perguntei se havia taxa de participação, comum nos incipientes torneios que eu já vira, ele já estava à porta do fliperama, a tempo de dizer: “Não. Um patrocinador rico está bancando tudo.”

Resolvi não mostrar o convite para outros amigos, até ver onde aquilo tudo daria. A concorrência era forte na cidade, e só de participar de algo assim, minha fama tomaria as ruas com fôlego redobrado. Mas, se fosse uma brincadeira, uma “pegadinha”, eu iria passar uma vergonha colossal...

Dia seguinte, liguei para o número. Uma voz feminina me atendeu, solícita e atenciosa. Parecia mesmo uma secretária! Ou o negócio era sério mesmo, ou era alguma treta para arrancar nosso dinheiro, como os cursos preparatórios que carinhas como aquele iam oferecer nas escolas.

A moça pegou meus dados, e informou que o torneio seria realizado num endereço na zona portuária do Rio de Janeiro. Conhecia o lugar de passagem; estranho lugar, abandonado e sombrio, com uma pegada de filmes americanos made in anos 80. Eu era de São Gonçalo, município da região metropolitana do Rio de Janeiro, e a atendente me informou que a organização não ofereceria transporte, e eu deveria para lá me dirigir por minha conta. Apenas competidores de outros Estados teriam as despesas cobertas. Outros Estados!

Nos poucos dias antes da data especificada em meu convite, me pus a treinar. Vinte jogos de luta diferentes – bem, era coisa pra cacilda! Comecei a frequentar com redobrada sofreguidão locadoras de games, fliperamas de shoppings, consultar revistas – as que eu colecionava e outras, emprestadas de colegas.  Um ou outro, que me vira receber o convite, de quando em vez perguntava, “e a parada lá?”, “mixou, era enrolação”, eu desconversava.

No dia e hora aprazados, lá estava eu em frente a um alto portão de ferro, na zona portuária. Havia outros jovens e até adultos ali, gente de todo feitio. Acreditei mesmo ver um japinha que parecia o articulista de uma conhecida revista de games da época. Bem, se até ele estava ali, o negócio seria à vera!

No minuto exato que nos fora informado (10h15), o pesado portão se abriu, e adentramos a um sombrio galpão. Lá dentro, sentamos em algumas cadeiras de ferro, dessas de bar, novas, e uma mulher passou a nos explicar detalhes do evento. Uma coisa, mais que tudo, me chamava a atenção: A quantidade de seguranças – pois, pela estatura, porte e movimentos, só podiam ser isso mesmo – presentes no local.

Nossos dados e documentos foram novamente conferidos, e então o funcionamento do torneio foi passado a limpo. Ele aconteceria por chaveamento, precedido de sorteio. Assim, os primeiros combates seriam sorteados, e os demais seguiriam o chaveamento programado.

Estávamos ansiosos para ver as máquinas, quando fomos solicitados a levantar e acompanhar o nosso mestre de cerimônias. Mas, ao passar por uma porta, que eu acreditava daria acesso a outro galpão, onde teríamos as cabines de fliperama ou o que fossem, me deparei com o mar. E um baita iate ancorado no atracadouro.

O nosso guia então revelou que o torneio aconteceria a bordo do navio – em alto mar. Ouve um burburinho geral. Uns acharam a informação emocionante; outros ficaram receosos – talvez alguns daqueles nerds nem soubessem nadar! De minha parte, a aura de mistério me excitou ainda mais.

Adentramos então ao luxuoso barco, sendo acomodados num salão principal do mesmo, onde fomos soberbamente servidos com canapés, doces, bebidas sortidas. Agora a felicidade era geral; a ansiedade emprestava risinhos animados a todos os rostos.

Após nos fartarmos, fomos levados então a nossos aposentos – pequenas cabines individuais, com uma pequena cama, um cabideiro e uma mesinha. Bem apertado, mas, e daí? Uma aventura daquelas não se vive todo dia.

Mesmo com toda a excitação e ansiedade, e embora fosse pouco depois do horário de almoço, surpreendentemente consegui dormir – na verdade, ao me sentar na cama, apaguei.

 

*  *  *

 

Quando acordei, um cenário inesperado me envolvia.

Eu estava sentado numa fria e desconfortável cadeira de ferro, tendo diante de mim uma cabine de fliperama, uma daquelas cabines “pela metade”, chamada também de bartop. Minhas duas mãos já estavam sobre o painel da máquina, e não podiam de ali sair: elas estavam algemadas. Sim, presas, assim como meu corpo, afivelado à cadeira, preso por umas três faixas como essas de cinto de segurança dos automóveis. Minhas pernas estavam igualmente aferradas aos pés da cadeira.

Mas o mais aterrorizante era uma espécie de mangueira ou tubulação, fina, “colada” em meu pescoço. Eu não conseguia ver como aquilo estava afixado, mas, pela dor que sentia, imaginei que havia uma agulha enfiada em meu pescoço, e aquele tubo era para bombear algo para meu corpo, talvez soro ou medicações – ou sonífero, que eu agora imaginava ter sido a causa de meu “desmaio” após o almoço.

Tentei imaginar que tudo era apenas um sonho, fruto de minha excitação e do choque de encontro a tanta novidade. Mas a dor em meu pescoço, a dor nos pulsos ao tentar me livrar das algemas, não me deixava debitar aquilo na conta de Oneiros.

Foi só então que olhei à minha volta e percebi que eu estava selado numa pequena cabine toda feita de vidro transparente. Como aquela minha célula, haviam outras vinte e três, dispostas em círculo, e nelas estavam o que deveriam ser os demais competidores.

Um forte clarão veio então do meio daquele lugar em volta do qual estávamos espalhados. Eram as luzes de oito telões, nos quais um indivíduo apareceu.

“Boa noite, senhores. É um prazer tê-los aqui neste torneio. Eu sou o seu anfitrião. Meu nome não importa, mas podem me chamar de Mister Big. Eu sou um admirador dos games em geral, e grande apreciador de jogos de luta. Este torneio, o mais justo e mais surpreendente que jamais houve ou haverá, decidirá quem é o maior dos jogadores do Brasil. Gastei bastante dinheiro enviando olheiros para diversos Estados, em busca dos melhores dentre os melhores – e aqui estão vocês.

Como dito no convite que receberam, os jogos serão escolhidos aleatoriamente, assim como o seu personagem em tais jogos. Caso o jogo não tenha a modalidade de escolha random ou aleatória, a organização sorteará um dos personagens para cada um dos combatentes.

Senhores, antes de iniciarmos, deixem-me esclarecer a questão mais importante, aquela que fará deste torneio algo único – este é um torneio de fliperama de vida ou morte. Sim; necessário é dizer que somente um de vocês sairá daqui com vida. Veem essas agulhas enfiadas no pescoço de vocês? A cada derrota, uma quantidade de sangue será drenada do corpo do perdedor. Uma derrota total lhe jogará numa repescagem, e lhe custará um pouco mais de sangue; perdida essa repescagem, haverá ainda uma repescagem final. Derrotado aqui, você deixará o torneio – e a vida.

E mais: A cada round perdido, um pouco, muito pouco, de seu sangue será drenado; assim, mesmo vencendo a partida, pode-se perder sangue no processo – a não ser que você não perca nenhum round.

Um grande estudioso dos jogos, provavelmente um desconhecido de vocês, Johan Huizinga, dizia que “o jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da ‘vida cotidiana’”.  E aqui estão vocês, voluntários cobiçosos e desejosos de, nesta ebulição de tensão, dor e alegria, mostrar que são os melhores! Tomei para mim o papel de lhes proporcionar o melhor e maior dos campeonatos possível.

Dito isto, desejo boa sorte a todos. E repito, para finalizar: Isto não é uma brincadeira, simulação ou pegadinha. Suas vidas dependem de sua perícia nos manetes.”

Àquela altura eu suava e chorava; não conseguia saber da reação dos demais jogadores, pois as placas de vidro não permitiam que sons entrassem ou saíssem, e tudo que ouvia vinha de um circuito de som interno. Mas era possível ver alguns dos competidores se debatendo desesperadamente, tentando – inutilmente – se libertar.

Os telões se apagaram e depois acenderam – e já estava na tela a tabela dos confrontos, mostrando o jogo e o adversário inicial de cada contendor.

O pesadelo já mostrava suas garras: o torneio para mim começaria com o jogo Fighter’s History, um jogo medíocre, que saíra apenas para o Super Nintendo e, pior, a que eu tivera acesso ou jogara apenas umas três vezes. Era torcer para meu adversário nunca ter visto o jogo, ou ser um jogador inferior. No fundo eu mantinha ferozmente viva a esperança de que tudo aquilo fosse uma imensa brincadeira de mal gosto, mas eu não podia e nem iria pagar pra ver.

Segundos depois, a tela em minha frente se acendeu, e o sistema escolheu um personagem – Feilin – sem meu comando, já que o jogo aparentemente não tinha sistema de random.

Mais do que de socos, chutes ou golpes especiais, um jogo de luta depende de timing, e cada jogo possui seu timing único. O tempo certo de bater, defender, esquivar-se – isso cria o jogador vitorioso.

Talvez por desespero, talvez imperícia, meu adversário iniciou o jogo apertando repetidas vezes o soco fraco, como quem busca identificar os botões. Por sorte eu estava um pouco além daqueles rudimentos, e já pulei sobre ele acertando a sequência clássica de voadora, soco e rasteira. No restante daquele e do segundo round, foi fácil vencer meu oponente. Assustado e exaltado após a partida, procurei observar os jogadores à minha volta, mas era impossível saber qual deles fora o meu contendente; embora os nomes tenham aparecido no telão, quando do sorteio das partidas iniciais, não havia nada nas cabines que indicasse o nome de seus ocupantes, e os jogos aconteceram ao mesmo tempo, ou seja, todos jogaram juntos. Meu estado de horror e euforia durou menos de um minuto, para logo entrar em suspensão, pois em seguida foi a vez do jogo Breakers – e eu me senti aliviado. Um game de luta da Visco, sobre o qual eu tinha algum domínio. De toda forma, não era um jogo antigo (fora lançado em 1996) nem tão desconhecido, e isso poderia contar contra mim...

Como o anterior, o jogo não possuía random, e pelo sorteio me coube o personagem Maherl, um muçulmano gordinho e bastante apelão. Ao meu adversário coube Rila, espécie de mulher-fera, musculosa e descabelada. Iniciei a partida pulando para trás e lançando um golpe em que o personagem atira sua espada – uma cimitarra. Meu adversário pulou sobre a mesma, para a frente. Eu consegui alcançá-lo enquanto caia, e emendei à voadora que lhe atingiu desprevenido, dois socos fracos e um soco forte. Na sequência tentei lançar o golpe em que o personagem cospe uma nuvem de fogo (C pra frente + soco fraco), mas aí foi a vez de meu adversário pular e me acertar a voadora e um chute, seguido de rasteira. Me levantei defendendo, mas logo cometi outro erro: Saltei para trás, para me reorganizar, e neste momento o meu oponente liberou o especial de Rila, que brilhou, saltando à distância sobre meu pescoço, e aplicando diversas mordidas. Meu oponente mostrava por que passara para a segunda fase, pois aparentemente conhecia aquele jogo, e bem o suficiente para me derrotar no primeiro round.

Senti então o que temia – um leve movimento ou sensação no pescoço, oriunda da sucção empreendida pela agulha. Vi um pouco de meu sangue fluir pela fina mangueira – sabe-se lá para onde.

Meu sangue fluindo para fora de mim teve o efeito do terror. E, paradoxalmente, como que me vivificou ao invés de debilitar:

Nos próximos dois rounds, não dei chance para o outro jogador, aplicando seguidamente combos – aprendidos no calor de tentativa e erros do momento – seguidos de golpe especial.

Por 2 rounds a 1, venci aquela partida. Aparentemente não se permitia aos jogadores tempo para descanso, pois a tela do jogo em minha cabine sumiu e logo apareceu a abertura de Super Street Fighter 2 Turbo. Alucinado pela adrenalina, só então reparei minhas mãos, e vi que elas tremiam. Mas naquele jogo eu era bastante experiente. Bem, eu e todos os jogadores do mundo. O random me jogou no colo Shun Li, personagem mediana; temi que meu adversário ganhasse de presente Ryu ou Ken, os apelões da franquia, mas a sorte me ajudou, e ele ficou com o também mediano Dee Jay. Minha ilusão durou menos de um minuto; num descuido enquanto lançava a magia da chinesa, meu adversário saltou sobre minha guarda aberta, entabulando voadora + soco + chute + especial. Fosse quem fosse, era um ótimo jogador. Me dei conta então que aquele já era o terceiro jogo ao qual eu avançara sem perder partidas, e era natural e esperado que o nível dos jogadores crescesse. Mais uma vez senti a sucção em meu pescoço. Maldito dia em que desafiei aquele olheiro, maldito dia em que aceitei aquele convite, sem desconfiar ou sem desconfiar o suficiente, cheio de mim, me achando o bonzão, o maioral!

Suava frio e tremia, enquanto se iniciava o segundo round. Meu adversário pulou sobre mim sem chutar ou socar, e ao cair – manobra clássica – imediatamente me agarrou num balão. Em seguida tomou distância, lançando magias, intercalando magia feita com soco forte (rápida) e fraco (lenta), buscando um erro meu. E conseguiu, ou ele ou meu desespero, pois ao saltar para a frente, no objetivo de alcançá-lo, cai sobre uma das magias. Se perdesse aquele round, cairia na tal repescagem, não sem antes perder boa dose de meu sangue. Deus, que tipo de pesadelo era aquele!!!

Arrancando forças sabe-se de onde, tentei recuperar o sangue frio que me fizera famoso nos fliperamas. Uma dupla sequência de voadora + soco forte + rasteira ajudou a empatar as barras de life, e um especial decidiu o round a meu favor. No terceiro round, menos apavorado, foi a minha vez de administrar o combate e aguardar os erros de meu adversário, que vieram.

Após minha vitória, eu procurava manter a calma e parar de tremer, aguardando já o próximo jogo e torcendo para ser um jogo que eu dominasse, mas a tela apagou-se por coisa de uns três minutos. Após isso, a figura do desgraçado que se anunciara como organizador do evento apareceu. Ele parabenizava a mim e a outro jogador, por sermos os únicos a vencer três partidas consecutivas, sem perder. Agora, ele dizia, deveríamos esperar que as repescagens fossem realizadas, para definir quais seriam nossos adversários. Enquanto isso, como numa macabra concessão, acabou revelando um pouco mais de si e de sua loucura:

– Vocês devem estar se perguntando o motivo de tudo isso. Bem, assim como vocês, eu sou um viciado, um completo viciado em jogos. E meu maior prazer é ver a galera jogando contra.

Meus pais faleceram num acidente de helicóptero, há coisa de um ano. Um acidente que me custou quase dois anos de economias. Eu herdei toda a fortuna que eles me impediam de usufruir como eu desejava. Desde então, comecei a imaginar a criação de um torneio. Seria antes um torneio normal, que eu objetivava que fosse o maior do Brasil, e estava disposto a empregar dinheiro de minha farta herança nele. Mas algumas tratativas com uma rede de TV me decepcionaram; mesmo pagando, eles se recusaram a televisionar meu evento, alegando que “videogames não são esporte”.

Mas eu sou um visionário, e transformei minha decepção inicial em algo maior: Para que criar um torneio simples, como se fosse de tênis ou futebol? Eles estavam enganados – aquilo era sim um esporte, e o mais radical deles, um que dominará o futuro, todos os futuros. E eu seria o paladino, sobre o sangue de vocês, honrados mártires, a provar! E mais, para quê televisionar, publicar meus feitos nos esquemas do sistema? Eu tinha dinheiro suficiente para fazer o que eu quisesse, e pouco a pouco comecei a planejar este torneio excepcional, do qual eu seria o único expectador, e os jogadores, mais do que o empenho advindo do desejo de fama e dinheiro, lutariam por suas próprias vidas, como nos melhores tempos de meus antepassados, os Césares romanos.

E aqui estamos, senhores! Antes do fim desta noite, um de vocês será um herói precursor de um novo mundo para os videojogos, e os demais serão mártires de uma causa que todos amamos. Agora descansem; logo os adversários de vocês – bem como os primeiros mortos – estarão definidos. Ao que vencer, os prêmios prometidos. Como não haverá segundo ou terceiro lugar vivo para receber o prêmio, o primeiro e único vencedor levará o dinheiro e os consoles dos demais. Ah, e o prêmio maior, embora eu não saiba o que uns miseráveis como vocês possam fazer com isso: A vida!

Após a fala do psicopata, transcorreu algo em torno de uma hora e meia ou pouco mais, antes de minha tela se reacender. Tentando tirar o foco de minha dor e desconforto, eu tentava imaginar que outros jogos poderiam ter caído para os demais jogadores, dentro do tal universo de vinte possíveis. Mas logo a angústia retomava o controle, e eu chorava fosse de desespero, fosse de raiva.

A próxima luta – pois já não eram jogos, a palavra jogo ficara totalmente esvaziada de sentido – se iniciaria. Após o clarão que dava como que o alerta para o início de uma nova rodada, o jogo Gundam Wing: Endless Duel apareceu. Mais uma vez tremi. Aquele era um jogo menor, baseado em um antigo anime japonês, e de meu conhecimento sabia apenas da versão para Super Nintendo – que eu só jogara durante um final de semana, ao alugar o game numa locadora. No susto, não pude perceber se aquele era o jogo do SNES, ou algum original de arcade, em geral mais elaborado.

No entanto, a partida não se realizou. Após uma espera de alguns minutos, com a tela do jogo aguardando o “start” que só podia ser dado pela central dos sequestradores, uma mensagem apareceu na tela: “Vitória por W.O.”. EM seguida, percebi que, numa das cabines, uma pessoa era retirada pelos seguranças, aparentemente desacordada. Pulei na cadeira ao ouvir a voz do maldito organizador, entre gargalhadas:

– Moleque de sorte, hahaha... Seu adversário aparentemente sofreu um infarto. Coitado, tão obeso. Bem, quem sou eu pra falar? Era muita pressão contra ele. E, como aqueles que poderiam substituí-lo infelizmente já não se encontram entre nós, você ganhou uma vaga na grande final... Sem lutar! Hahahaha... Aproveite sua sorte, herói... ou mártir?

Mais uma vez a tela se obscureceu, em uníssimo ao término do áudio. Percebi então que, durante toda aquela fala, eu inadvertidamente suspendera minha respiração, tal era a tensão e o horror. A taquicardia que sentia aumentou; e agora me faltava o ar.

Aguardei durante mais alguns bons minutos, talvez meia hora. Ocupei todo aquele tempo orando – clamando ao Deus de que eu sempre caçoara, e de que sabia tão pouco. Estava tão imerso em minha contemplação e pânico que sequer percebi o novo clarão do monitor – só fui despertar ao ouvir a música do jogo, na tela de apresentação.

Era Pit Fighter. Um jogo tosco, um jogo com poucas possibilidades de golpes. Um jogo com apenas três personagens selecionáveis. Um jogo detestável, ou ao menos um jogo que eu detestava.

Eu aguardava o tradicional som eletrônico que era o aviso das fichas sendo inseridas, mas isso não aconteceu. Ao invés, o jogo desapareceu da tela, dando lugar a dois rostos, numa espécie de tela dividida. O da esquerda era o do desgraçado que criara todo aquele inferno; o da direita, um rapaz com traços indígenas, era certamente o meu adversário. Sim, pois eu o conhecia – já o vira jogando num pequeno torneio realizado no Niterói Shopping. Era simplesmente o melhor jogador que eu já vira em ação, de perto. Por sua expressão abatida, quase aniquilada, imaginei como não estaria a minha.

– Prezados senhores, aqui estamos. Este é o maior torneio de jogos de luta já realizado no planeta, e jamais será superado – a não ser que eu consiga realizar um outro. Quem sabe nos EUA ou no Sudeste Asiático? De toda forma, aqui estão vocês. Dois campeões, dois ossos duros de roer. Dois desses marrudos que batem ponto na porta do fliperama, esperando o próximo pato, o próximo adversário. Que tal agora? Qual de vocês será o pato?

Gostaram do jogo que apareceu na telinha? Bem, é um jogo bem esquisito, hão de concordar. Mas esse torneio de vida e morte eu o criei para definir quem é o rei dos jogadores. E ele não poderia ser encerrado sem que o jogo adequado fosse o palco da disputa. Para a grande final, serão três partidas ou fichas. Quem vencer duas, vive.

Novamente a cara psicótica do desgraçado desapareceu, como se ele tivesse apertado imediatamente um botão ao encerrar seu vômito.

Na tela, era agora o jogo The King of Fighters ’97 que aparecia. Aquele mesmo cujo torneio eu vira o tal indígena faturar no Niterói Shopping, poucos meses atrás. Bem, eu não participara do torneio – quando soube, já estavam esgotadas as vagas, e eu fui com meus amigos apenas para observar a festa.

As fichas cantaram seu som e a sala de controle apertou os “starts”, jogando logo os cursores no ramdom. Deus, e agora?

Então me dei conta de algo. Eu tinha uma vantagem, nem que fosse inicial: Eu já vira aquele cara jogar. Eu o vira vencer diversas partidas, e conhecia o seu jogo, ao menos com seus bonecos de preferência.

Antes de eu terminar este raciocínio e tentar rememorar algumas das jogadas do cara, o ramdom já nos escolhia os personagens.

E a batalha final se iniciou. Meu oponente jogava como player 1 (controle da esquerda), e não bastasse isso o random lhe deu Shermie, Yamazaki e Ralph. A mim couberam Chizuro, Chang e Iori. Ele iniciou com Yamazaki. Quanto a mim, saltei logo na fogueira do tudo ou nada, e principiei com o meu melhor boneco, Iori. Comecei acertando um soco fraco, tentando pegá-lo de guarda aberta para encaixar um combo. Ele retrucou com um golpe com os dois botões fortes (golpe de imapcto) e um cháááá que me atingiu no ar, enquanto pulava para trás. Consegui ainda lhe acertar uma magia, mas ele logo saltou, iniciou um combo e me apanhou no especial. Meu sangue ficou pequeno, e meu melhor boneco estava sendo aniquilado. Ele se aproveitou de meu nervosismo e saltou sem golpear, me agarrando e aplicando a clássica cabeçada, dando fim a Iori Yagami.

Logo Chang entrou no mesmo loop da chuva de pancadas. Consegui reduzir seu sangue ao extremo, mas não o derrotei. Somente então entendi que talvez ele tivesse também posto seu melhor personagem no início, pois suas habilidades eram perfeitas. Mas, se meu nervosismo tinha custado meu melhor boneco – e agora o Chang de lambuja – o Yamazaki dele estava imparável. Com Chizuro, tive pouca chance, e já dava aquela partida como perdida, de qualquer forma. O cara me massacrou com um só boneco!

Na próxima partida ele recebeu Ryo Sakazaki, Kyo e Chizuro. E foi com ela que ele iniciou, contra minha Blue Mary. De fora, eu tinha ainda Leona e Choi: bem melhor que antes. Eu tentava controlar o nervosismo, ao mesmo tempo em que sabia que aquela era a partida de minha vida, pois se ele ganhasse a segunda de três, estava liquidada a peleja.

Talvez ele não fosse tão hábil com a Chizuro; desta vez, consegui derrotá-lo, embora com alguma dificuldade. Com Kyo Kusanagui, o personagem central daquele jogo ao lado de Iori, as manhas de meu adversário não se mostraram muito efetivas. Eu consegui defender todos os combos que ele tentou aplicar, e me aproveitei de suas falhas, ou das falhas do personagem, para golpeá-lo sempre que possível. Quando estava prestes a derrotá-lo, o carinha esboçou uma reação, me acertando um combo e quase um especial. Mas consegui eliminá-lo.

No terceiro round, talvez pelo alívio ou excesso de confiança de ter eliminado dois bonecos dele com um só dos meus, logo fui derrotado, pois ele saltou sobre mim e aplicou um combo que nem precisou completar-se, dado o restinho de sangue que me sobrara do round anterior.

A batalha de meu Choi contra o Ryo Sakazaki dele foi a mais equilibrada da partida. As manobras dispersivas, buscando um erro do adversário, foram constantes de lado a lado. Nenhum de nós conseguiu completar um combo sobre o outro, e a pancadaria avançou em ritmo de muitas defesas e acertos esporádicos. Ao fim, ele me venceu por pouca diferença.

No terceiro e último round ele jogou com aparentemente mais calma, esperando algum erro meu. Seu personagem tinha pouco sangue. Cheguei a me assombrar num momento em que, após deixá-lo “na alma”, ou seja, com um risquinho quase invisível na barra de life, ele conseguiu me aplicar um combo e um especial e deixou meu life na metade. Mas consegui executar uma sequência que, mesmo sendo defendida, lhe custou a ninharia de sangue que ainda tinha.

Após a vitória, sequer vibrei. Fechei os olhos e respirei fundo, pois a decisão daquele pesadelo, e de minha vida, estaria em jogo na última ficha. Um certo debate ético iniciado durante a pausa após a segunda luta continuava a arder em minha mente; eu pedia, implorava a Deus que me livrasse de tudo aquilo, mas não conseguia pedir diretamente por minha vitória, pois ela representaria a morte de meu adversário. E, por mais que quisesse sobreviver, não ousaria pedir isso a Deus. Assim, eu implorava por uma solução outra, que algo desse errado no maquinário daqueles canalhas, ou que a polícia aparecesse de surpresa. Não era possível alguém armar todo aquele circo diabólico, envolvendo tantas pessoas, e a coisa toda não babar.

Abri os olhos com o maldito som do random girando. O cara ficou com Andy Bogard, Robert Garcia e novamente Shermie. Minha equipe consistia de Billy Kane, Ryo Sakazaki e Sie Kensou. Fosse como fosse, ambos, eu pensei naquele momento, conseguíramos personagens fortes.

Eu comecei com Sie, pois tinha considerável habilidade com o personagem, e experimentei algo que, nos fliperamas, dera certo muitas vezes. Pois pouquíssimos jogadores realmente de contra utilizavam o personagem, que possui bastantes recursos defensivos e ofensivos. Assim, pelo inusitado e pela inexperiência em enfrentamentos, venci de cara muitos bons jogadores com aquele personagem.

Minha estratégia, mesmo contra aquele jogador que eu sabia ser melhor do que eu, deu resultado, pois consegui encurralá-lo até a metade da partida, e repeli seus avanços com magias ou com o golpe antiaéreo, seja para cima, seja para diante, apanhando-o em plena queda, quando tentava pular de maior distância para me atingir. Com um especial do estouro da bola de energia, finalizei sua Shermie, sem tomar nenhum dos agarrões. Minha estratégia dera certo.

Contra Andy Bogard as coisas se equilibraram. Me apanhando num dos pontos fracos de Sie, que é quando ele erra os antiaéreos, o cara me aplicou um combo seguido do especial com soco. Mesmo conseguindo ainda rebaixar o life dele para menos da metade, terminei derrotado, mais por meus erros que pelos méritos de meu adversário.

Agora era Andy contra Ryo. Consegui repelir alguns de seus ataques iniciais com os shoryukens mas, durante a trocação, novamente errei na aplicação deste antiaéreo e fui premiado com um especial. A partir dali senti minha garganta doentiamente seca enquanto recuava e tentava imaginar uma forma de penetrar no jogo de meu adversário, que retomava a iniciativa e me encurralava num canto, variando golpes altos e baixos, fortes e fracos, além dos golpes de impacto (os feitos apertando os dois botões fortes), conseguindo me atingir duas vezes com eles e dando fim a Ryo, e a uma parte de mim.

Ao ouvir o “fight” no round seguinte, arrisquei pesado com meu Billy Kane e iniciei dando o especial da roda de fogo; assim que fiz o movimento me arrependi, e com razão, pois o que temi logo aconteceu: meu adversário rolou por trás de mim e me acertou após eu lançar a roda de fogo na direção de onde não havia mais ninguém.

Utilizando o golpe de impacto, de grande alcance assim como outros golpes de Billy Kane, favorecido pelo taco ou bastão do personagem, foi a minha vez de repelir seus ataques subsequentes, e aplicar algumas boas sequências com aquele boneco que era de meus diletos.

Venci o round tendo perdido pouco mais de um terço do sangue.

Veio então o round final, de Billy Kane contra um dos personagens mais apelões daquela versão de The King of Fighters, Robert Garcia.

E eu dei tudo de mim. Com o corpo enregelado pelo frio do ar condicionado e pela perda de sangue; com a garganta seca pois o canudo de onde podíamos sugar água já não dava nada, e eu simplesmente não tinha com reclamar ou pedir água; com as pernas dormentes enquanto os dedos da mão direita doíam, e a curva entre o dedo polegar e o indicador da mão esquerda ardia, sensível após tanta força empregada nas manobras do joystick. Não fiz menção do poder daquele personagem, ou de quanto desse poder meu adversário saberia empregar. Entrei num estado – se é que ainda não estava – de êxtase, não de prazer, mas de desespero, possessão. Encurralei desde o princípio da partida meu oponente, aplicando golpes de impacto, rasteiras e bastonadas. Engatei um combo feito de voadora + chute forte + soco forte abaixado + frente e chute forte, seguido de outro dos combos simples de Billy, voadora + chute forte + gancho + especial, o especial que eu chamava de “vassourada de nunchakus”. Tirei bastante sangue daquele que, como eu, era só mais um desgraçado se afogando num pesadelo. Ele encetou uma reação aparentemente desesperada, pois passou a aplicar o golpe de “c” ao contrário + chute, um dos golpes apelões do Robert. Mas aquilo era algo de iniciantes, e todos eles haviam ficado já pelo caminho. Estourando uma bolinha de especial para rebater um desses golpes, imediatamente saltei sobre ele, aplicando no boneco desguarnecido uma sequência de voadora, soco fraco e chute forte. Encurralado no canto da parede, com o life pequeno, após derrubá-lo recuei para segura distância e dei o especial do círculo de fogo, no qual o personagem e gira por alguns segundos seu bastão incendiado. Minha ideia era conseguir tirar algum life dele, caso se levantasse defendendo; ou apanhá-lo na arapuca, pois se levantasse rolando, o rolamento tendia a acabar ainda dentro do raio de ação do círculo de fogo, pela distância estratégica que eu tomara. Mas ele, seja por nervosismo, erro simples ou mesmo desistência, levantou sem defender ou rolar, recebendo todo o impacto do especial.

Antes que o narrador do jogo terminasse de gritar o “k.o.”, apaguei, fosse por exaustão física e psíquica, fosse por algum narcótico introduzido em minhas veias.

Quando acordei ainda era noite. Uma rua de chão, úmida de alguma chuva recente, me servia de cama. Era a serventia de um local desolado, situado à beira mar, próximo a uma espécie de atracadouro clandestino ou píer. Levantei-me com grande esforço. Todo o meu corpo doía, mas a dor de cabeça, lancinante, era a mais dura de suportar. Ao meu lado percebi duas malas pretas. Abri uma delas, temeroso, mas esperando encontrar água, pois minha garganta estava como que dormente de sequidão. Percebi então que naquelas valises estavam os prêmios – dinheiro e videogames.

Coloquei algum dinheiro no bolso, recobrei parte de minhas forças e segui por aquela ruela arrastando as malas, pois possuíam rodinhas. Vários metros adiante cheguei a uma espécie de pequeno bar, ou birosca, onde três bêbados bebericavam cerveja ruim e destilados baratos. Mesmo bêbados, me olharam com espanto e desconfiança, mas me informaram o que lhes perguntei: eu estava nas proximidades da favela da Kelsons, no Rio de Janeiro. Me indicaram o caminho até o asfalto, ou “a estrada”.

Me vi num embate ético: decerto deveria ir até a polícia imediatamente; mas, e se eu fosse considerado culpado ou cúmplice de toda aquela loucura? E o dinheiro, aquele maldito mas sempre útil dinheiro, se lá aparecesse com ele, o mesmo seria certamente confiscado.

Eu estava fraco demais para tomar decisões. “Amanhã e água, amanhã e água”, minha mente repetia, violentada. Avançando pela estrada, consegui que um táxi parasse, e nele embarquei. Em casa, não sabendo o que fazer, me pus a escrever este relato, com todos os detalhes possíveis, para não esquecer de nada, antes de ser novamente engolido pela exaustão.

São cinco e quarenta e dois da manhã; minha mãe e meu padrasto devem estar no forrozão. Logo chegam, bêbados. Vou dormir, e queira Deus que nunca mais acorde. Ou me permita reencontrar aquele desgraçado, e despedaçá-lo num novo jogo.


Sammis Reachers

 

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Mais sobre o autor e seus trabalhos pode ser visto aqui:

https://linktr.ee/sreachers



Este conto faz parte do livro Fabulário Índigo. Disponível em formato impresso (aqui) e e-book (pela Amazon, aqui).


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