NA CRUZ
"Para ele nascer morri"
Almeida Garrett
Doem-me as mágoas dos homens
os seus dolos ardem-me as têmporas
dos homens nascidos para a morte
a massa do mundo pesa-me
por dentro do ferro
por vós homens, que tendes a transgressão
por norma. Quem entendeu
o que cantava a cítara antiga,
quem entendeu a subida ao monte
em que a faca encontra
rente ao sangue o cordeiro
do silêncio? Quem entendeu
o protesto do profeta até aos abismos?
Para nascerdes é que eu morri
para que o Sol vos risse
é que as Estrelas choraram
Rui Miguel Duarte
25/03/16
sexta-feira, 25 de março de 2016
quinta-feira, 17 de março de 2016
EPITÁFIO
"C'était la Mort! Alors il la pria d'attendre
Qu'il
eût posé le point à son dernier sonnet!"
Do "Epitaphe" de Gérard de Nerval
(1808-1855)
Um dia chegou por trás da
cortina
insinuou-se pediu um cálice
de vinho
o último e melhor — disse —
que o melhor
é sempre o do fim. Bebeu de
mansinho.
Veio colhê-lo desapercebido
como uma flor
ainda no pico da cor da
essência mais fina.
Escrevia. Explicava às Musas
onde colocar
o ponto final do último poema
a entregar
ao sonho, que fosse a
lágrima ainda quente
do bronze mais perene, que
diga a glória ausente
do poeta. Ele deitou-se:
veio colhê-lo pela fronte,
embalsamou-lhe as mãos para
não mais escrever
e os olhos para não mais
ver. Esbate-se um horizonte
sempre que um poema acaba e
um poeta se cala.
Mas lá continuava o visitante
a beber.
O poeta lhe disse: espera
sentado, podes ficar a fazer sala.
Rui Miguel Duarte
11/03/2016
sexta-feira, 4 de março de 2016
A Segunda Vida de Gregor Samsa - Sammis Reachers
Mary Swanzy
A segunda vida de Gregor Samsa
Não posso ver: tudo é sensação, para além
ou de antes do visual, transcendência táctil: energias?
Não me lembro completamente quem sou.
Lembro trechos. Pedaços de rostos, cadeias de palavras que já não entendo e são
música boa ou ruim.
Estou nalguns braços. Alguém me move. Energias
fluem, posso senti-las quase como odores. Atravessamos linhas de campos
magnéticos. É magnífico este novo sentido, este meu único multisentido, seu
caudal de silenciosa epifania.
Lembro-me de destruir o jardim. Apanhei o
taco e destruí as roseiras de alguém que não me lembro, alguém muito
importante, alguém que importava. Destruí todas aquelas plantas de nomes débeis
e frescos que não sei, aqueles nomes inúteis que sempre mantive aquém de mim.
Espalhei as terras, derribei as pequenas
contenções, como meios-fios, que delimitavam aquele inferninho verde. Estranho
como disso me lembro bem. Cada movimento acertado.
Parei de ser movimentado: sinto o vento,
quentura. Ela é como uma canção. Suas ondas borrifam o que quer que sejam meus
receptores, me deitam num torpor adocicado. Sou feliz.
A pulsação que me movimentou aproxima-se,
sinto seu avanço pelas linhas do campo magnético, ela deita água em meu pés.
Não posso movê-los, nem tento: não anseio o movimento, anseio os movimentos que
me vêm: flutuações do campo, comunicações que ainda não decodifico – mas o
farei – a viscosidade do calor solar que banha-me, e este furor, esta fome
consumindo meus pés: este fausto manjar de águas. Água. Água. Como nunca
percebi? Como ela pode ser tão doce, e ter me passado incógnita, obscurecida? Para
cada nova sensação faltam-me as palavras, conceitos de perfeito encaixe, mas
tal abismo se avoluma ao toque da água. Fruição, tepidez... uma quase
promiscuidade, coquetel de psicotrópicos conflitando e equalizando-se, a um só
tempo, em meu corpo possuído. Agora percebo que o céu é feito de água, e para
ela e para a luz é o meu desejo.
Os campos magnéticos ondulam. O sol
cintila. Meus pés alimentam-me. Dormi furioso ontem, não falei com Maria (agora
me aflora tal nome), mal lavei as mãos sujas de terra, rolei como um diabo
antes de conciliar o sono. Acordei dentro da paz.
Sou planta.
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