quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

CHEGOU O MENINO



Veio de longe, chegou o Menino que veio de longe
do ventre da mulher. Chegou um homem
que pelo frio do estábulo gemeu
as sílabas profundas de um vagido.

Chegou um menino

que deslocou o centro do céu para o mundo

Chegou de longe Deus, a carne nua

com um coração humano, igual ao meu
igual nas artérias e nas veias a qualquer judeu
e com deltas
onde o sangue desagua.


 18/12/2013
 
© J.T.Parreira

(Imagem do Facebook - Desert-rose)

domingo, 15 de dezembro de 2013

ARCHÉ


Não era ainda o tempo das manhãs lavadas”
Ruy de Carvalho


Não havia ainda lugar
para pendurar as manhãs, nem sol
que arredondasse a ponta do dia
à ponta da noite

havia o vazio, um eco do fundo
do abismo
Não era ainda o tempo das manhãs
de revestir de pérolas a fronte das rosas
Deus passeava sobre o que havia
de ter a beleza das suas mãos
quebrado o silêncio original.

© J.T.Parreira

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

La neige qui tombe

La neige quand elle 
         tombe
tombe oblique sur le visage qui un fil
laisse à la peau, dévoile le manteau
creuse les toits, force le vent
à la danse sur le fil quand elle monte descendant
constant en une mélodie
         oblique

c’est pour cela, pour ce manteau
sans couture
qu’elle est un étonnement nocturne
en passant par les campanules
où les troncs se
         déclinent
à la danse
qu’elle est l’expression la plus sublime
du dessein céleste

Rui Miguel Duarte
5/12/13


quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Crepúsculo dos Deuses: Ragnarök


Um Dia feito da escuridão
de todos os dias
o Dia em que Odin-o-exaurido
será devorado pelo lobo Fenris,
Thor-do-trovão tombará sobre o cadáver
da serpente-sem-fim, Iormungand


Você é um dos homens
eleitos pelo deus, guerreiro?
Afie pois os dois caminhos de sua espada,
as duas asas de seu machado firme
e caia como vaga sobre o conflito:
será tudo em vão,
pois ao fim e ao cabo
como a Ordem venceria o Caos?

Mas você terá combatido,
você terá deveras combatido
e não foi afinal para isso e para este Dia,
ó boneco de pó predestinado,
que o pai Odin criou os homens?


Sammis Reachers

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

OS QUE VIRÃO NOS CAMELOS



“Os que virão nos camelos”
Jorge de Lima


 


Os que vêm nos camelos
navegam na luz branda do luar
têm visões no deserto
quando o sol derrama no horizonte
as águas ilusórias

também bebem
dos espelhos da água mais profunda
vêm de vales estuantes
os que virão nos camelos
quando a viagem terminar os seus vestidos
serão trapos do tempo, não importa
pois trazem presentes
e seguem a estrela indispensável
e vão em busca da glória
do Menino.

© J.T.Parreira

domingo, 10 de novembro de 2013

VIA SACRA

“                      …… Só vou por onde

Me levam meus próprios passos
José Régio, “Cântico Negro”


Há um caminho por onde vou
e um caminho por onde não vou

pelos olhos doces da legião
pela inquietação segura dos amigos
que tentam dizer que vá por aí
não vou, por aí não vou

um rito sobre as pedras,
o meu caminho é aquele
em que os pés marcham descalços
e se sujam, bastante tendo por fardo
a penumbra dos homens
o caminho em que o pó é feito de arestas

por aqui me levam os meus passos,
quanto mais indecisos mais firmes,
pelo húmus lamacento é que se alevanta
o firmamento

Rui Miguel Duarte
11/11/2013


domingo, 3 de novembro de 2013

OS GATOS DE EZRA POUND




Como os gatos de Pound, que procuram
cheiros pelo chão, a minha
também tem as antenas
a murmurarem coisas invisíveis,

quando se dispõe olhar para mim.

© J.T.Parreira

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

LE PARTIE D'ÉCHECS


Uma só jogada
enche todo o tabuleiro, domina
a ampla mão do rei,

qualquer peão perde-se
no movimento anguloso
do cavalo. E a rainha
quando a torre adormece.

Dispersa-se o lance nas pégadas
da tela contínua, dois jogadores
homem e mulher
só nos olhos é que movem
a sua pedra eterna,

amam-se em cada silêncio,
adversários.

23/10/2013
© J.T.Parreira


(Sobre a tela de Vieira da Silva, 1943)

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

INGENUIDADE




Quando chegamos à nossa nova casa
sem paredes de tijolo e estuque
rodeada de arame onde suspendemos as estrelas
apertando ao peito o frio
ainda acreditamos
que nos dessem o maná
como Jeová no deserto aos nossos pais.

14/10/2013
 
© J.T.Parreira

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Cântico maternal, poema de Isabel Gonçalves

(Cena do filme Zuzu Angel)

Cântico maternal

Filho não vá, fique aqui.
Um dia você quis ficar em meu colo pra sempre.

Filho meu,
Hoje você engole fumaça,
Aspira veneno,
Tem por perto os que irão te matar.

Filho meu,
Eu conheço você,
Tenho aqui o abraço.
Volte correndo,
E te farei um chá.

E sempre há mais lágrimas em mim,
Dentro de uma mãe há um rio.



segunda-feira, 7 de outubro de 2013

O POETA PÁRA DE ESCREVER


O poeta encomendou o silêncio
amadureceu as vestes

Se o poeta parar de escrever
onde poderão os pássaros encher
as mãos dos homens
do mistério das asas
onde poderá crescer o grão
do trigo debicado pelo vento
que é a ondulação
do mar nas searas

Se o poeta parar de escrever
o rebanho dos homens
adormece e sonha paredes em branco
sem o lirismo de uma janela

O poeta não depende do sol
nem do atavismo de estrelas
no seu sangue, o poeta nasce
de si mesmo, se mesmo se exilar
continua a ter cânticos como lábios

O poeta se parar, escreve
nos seus olhos com as lágrimas.

10/12/2009

© J.T.Parreira

domingo, 6 de outubro de 2013

TRANSMUTAÇÃO, um poema de Alexei Bueno


Miró

TRANSMUTAÇÃO

Nascemos carne. E a cada dia
nos vamos transformando em sonho.
Há sempre um patamar tristonho
Na escada em que antes não havia.

Há sempre um quarto em que vivemos
E nunca vimos. Sempre há um morto
Que bate à porta. Há sempre um porto
Que jamais houve e de onde viemos.

Há uma manhã cinza na feira
Que não se acaba há muitos anos.
Há uma mulher, nua entre panos,
Que não é nossa a vida inteira.

O tempo espera, inalterado
Como um licor,que nós subamos
Por ele abaixo, nós que vamos
Descendo-o acima em passo ousado.

Atrás há a aurora. À frente o nada.
No meio a confusão das luas.
Ah! Quem voltasse às mesmas ruas
Em senso inverso, até a entrada.

Quem desse as costas à saída
Certa e voraz, e, dessa sorte,
Fosse afastando-se da morte
Até a primeira hora da vida

E seu mistério, e se encarnasse
Nos seus idos, e fugisse
Por si acima, até que ouvisse
O choro antigo, e ainda o passasse.

Nascemos carne, e ao sonho vamos.
Somos o fio que desfaz
Toda a tapeçaria, mas
Quem é que o puxa, nem sonhamos.

Vamos fazendo-nos de ar
De crianças rijas que já fomos,
Vamos como explodindo em gomos
De ser, um fruto a se espalhar.

Nossos amigos são de vento
Cada vez mais. As nossas casas
Grãos que o sol doura. Soam asas
No nosso cofre mais sedento.

Para isso apenas nos gerastes,
Para ser sonho, mães de sonho.
Há sempre um pássaro medonho
Nos nomeando entre umas hastes.

Há sempre um baile de sumidos
Na íntima praça inexistente.
Há um branco sol sempre presente
Na noite em que vamos perdidos.

Há um rosto cruel que nos exorta.
E escadas. E a manhã na feira
Que vai durando a vida inteira.
Há o patamar. E um beijo. E a porta.

26/10/1998

Do livro Em Sonho (Record, 1999)



segunda-feira, 23 de setembro de 2013

António Ramos Rosa (17/10/1924 — 23/09/2013)


Deixou-nos um grande, enorme, dos maiores que a Língua e a Literatura Portuguesa, e mundial, já tiveram. Poesia muito tensa, de inesperadas associações, de encantação na pura viagem das palavras, umas com as outras. Lê-lo é aprender a amar, a descobrir a surpresa que é a poesia.
Até sempre, ARR.



UMA VOZ

Quero pertencer à abóbada escura como um amante inerme

e ser o alento do silêncio sobre os ombros das nuvens.

Quero aderir à sombra das palavras da folhagem

e compreender a terra na selvagem seda do desejo.




UNE VOIX
Je veux appartenir à la voûte obscure comme uns amant désarmé

devenir le souffle du silence sur les épaules des nuages.
Je veux adhérer à l'ombre des paroles du feuillage

et comprendre la terre dans la soie farouche du désir



(trad. de Michel Chandeigne © Gallimard)





DEUS VÊ TALVEZ COM AS PÁLPEBRAS DESCIDAS



Deus vê talvez com as pálpebras descidas
e assim vê o nosso espírito como um halo ténue
ou uma sombra que estremece mas contínuamente se levanta
É ele que sustenta a nossa integridade vertical
com a sua imóvel respiração incessante

Que dificil é ser o alvo desta atenção divina
como se fôssemos apenas o aro vazio de um puro abandono
Mas é nesta entrega passiva que nós somos
mais do que órfãos de um útero materno
e nos erguemos à transparente pedra
da nossa renovada identidade

Só nesse cimo branco renascemos livres
porque nos entregamos à silenciosa respiração
do ser divino que atravessa o nosso sono
e faz resplandecer a nossa incerta ignorância


ATÉ ONDE VÓS ESTAIS

Oh, presenças amigas, ó momento 
em que alongo o braço e toco em cheio os rostos 
A minha língua abriu-se para dizer a face 
do vento que percorre as vossas vidas. 

Estou perante a noite mais profunda, 
a delicada noite das raízes: vejo rostos 
vejo os sinais e os suores das vossas vidas. 

Atravesso árvores submersas, ruas obscuras, 
poços de água verde, e vou convosco ter, 
minhas faces lívidas, mãe, amigos, amores. 

A terra que penetro é este chão de terra 
com as raízes feridas, com os ferozes pulsos, 
A vertente que desço é uma subida às vossas vidas. 


NÃO POSSO ADIAR O AMOR

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas
Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio
Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore.
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação.
Não posso adiar o coração.


ESCREVO-TE COM O FOGO E A ÁGUA

Escrevo-te com o fogo e a água. Escrevo-te
no sossego feliz das folhas e das sombras.
Escrevo-te quando o saber é sabor, quando tudo é surpresa.
Vejo o rosto escuro da terra em confins indolentes.
Estou perto e estou longe num planeta imenso e verde.

O que procuro é um coração pequeno, um animal
perfeito e suave. Um fruto repousado,
uma forma que não nasceu, um torso ensanguentado,
uma pergunta que não ouvi no inanimado,
um arabesco talvez de mágica leveza. 

Quem ignora o sulco entre a sombra e a espuma?
Apaga-se um planeta, acende-se uma árvore.
As colinas inclinam-se na embriaguez dos barcos.
O vento abriu-me os olhos, vi.


UM CORPO QUE SE AMA

Um corpo que se ama é uma nascente viva
que de cada poro irrompe irreprimivel
e toda a sua violência é a energia ardente
que gerou o universo e a fantasia dos deuses.

Tudo num corpo que se ama é adorável
na integridade viva de um mistério
na evidência assombrosa da beleza
que se nos oferece inteiramente nua.

Não há visão mais lúcida do que a do desejo
e só para ela a nudez é sagrada
como uma torrente vertiginosa ou uma oferenda solar.
Esse olhar vê-o inteiro na perfeição terrestre.










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