terça-feira, 30 de agosto de 2016

AS PESSOAS NUM POETA NEO-REALISTA




Quarenta figuras humanas perpassam, ou melhor habitam, na poesia de Manuel da Fonseca. Quem fez o inventário foi o escritor e crítico ilhavense Mário Sacramento, no seu quase clássico “Há uma estética Neo-Realista?(1968:80).
Enquanto que palavras recorrentes na poesia de um autor se consubstanciam semântica e metaforicamente, vocábulos que vêm da matéria e do que é imaterial, ilidindo mesmo sujeito e objecto, por exemplo os da poética de Eugénio de Andrade, outros poetas informam sobre pessoas com nomes e existência concreta.

Podemos enumerar uma breve lista de palavras eugenianas: 
Mãos, dedos, olhos, rios, fontes, choupos, juncos, folhas, espigas, feno, erva, rosas, pólen, frutos, romãs, laranjeiras, aves, cavalos, lume, fogo, luz, verde, carmim, púrpura, brisa, dança, flauta, montes, nuvens, astros, estrelas, luas, charcos, a noite e a madrugada. (vd. “As mesmas teclas de Eugénio de Andrade”, in Blog Poeta Salutor (2010: 11/3)

Vejamos, por outro lado,  o que concerne ao poeta e romancista do neo-realismo e do “Novo Cancioneiro”, Manuel da Fonseca.
E por aqui eis-nos chegados à dialética da personagem, do sujeito poético, do nome, da actividade, do local de origem, das figuras humanas que estão nos Poemas Completos do poeta de Santiago do Cacém, falecido em 1993.

Maria Campaniça, Jacinto Baleizão, Zé Cardo, Toino, Rosa Charneca, Francisco Charrua, Zé Jacinto, Marianita, Zé Gaio, Julinho da ourivesaria, Zé Limão, Manuel da Água, e Mariazinha Santos;  malteses, vagabundos, mendigos, campaniços, guardas,  o coro de empregados da Câmara, António Valmorim, a Nena de Montes  Velhos,  o Terceiro Oficial de Finanças, entre outros nomes e vidas.

No poemário “Planície”, de 1941, no início da década fértil para a poesia neo-realista, embora o poeta José Gomes Ferreira tenha afirmado que “o social não era a característica principal da poesia do Novo Cancioneiro” (a Memória das Palavras), a verdade é que MdF traduz essa particularidade representativa das problemáticas humanas e sociais, do campesinato e da urbanidade, da seara e da fábrica, logo para o início daquele volume de poemas.

Um local: Cerromaior, que é também título do primeiro romance do poeta, é um lugar inventado que contém, no entanto, as realidades e as gentes, doutros lugares autênticos do vasto Baixo Alentejo – e.g. Cercal -, área predominante, senão mesmo exclusiva na poética do autor.
Depois, o lugar começa a revelar particularismos da vila, como tipicamente alentejana, o “Largo” de onde partem todos os “caminhos”, o “Largo” que era “o centro do mundo”, onde estão os “guardas” com a lei, mais adiante o “montado” genuíno, o “vagabundo rasgado”; ou a aldeia com “nove casas, / duas ruas, / no meio das ruas / um largo”, o “monte”. O tópos é fundamental na poética de Fonseca, como os Alentejo, “Beja, Cercal. Em alguns casos, especificamente, noutros como metonímia.
Poderia continuar pelo seu léxico fora. A própria dimensão do espaço, que às vezes é físico, outras psicológico, na poesia do autor de “Seara de Vento” é também recorrente na dimensão, por vezes, trágica dos nomes.

Na poesia ( como na prosa: conto e romance), “Manuel da Fonseca continua a existir com a sua frescura inicial e a sua energia, a sua capacidade de comover e seduzir” – escreveu  Mário Dionísio, há quase cinquenta anos.


30-08-2016


© João Tomaz Parreira 

domingo, 28 de agosto de 2016

Três poemas de Marly de Oliveira



Pior que o cão é sua fúria

Pior que o cão é sua fúria,
pior que o gato é sua garra,
pior que a sanha de ferir
a que se esconde
sob feição de amor.
Pior que a vida é a não-vida
do que se faz espectador;
nem mergulha, nem nada, nem conhece
o mar fundo:
está sempre à beira da estrada.


Perdi a capacidade de assombro

Perdi a capacidade de assombro
mas continuo perplexa:
esta cidade é minha, este espaço
que nunca se retrai,
mas onde o ardor da antiga
chama, que me movia no mínimo
gesto?
Esperei tanto, no entanto, esvaem-se
na relva, ao sol, no vento,
os sonhos desorbitados,
parte da minha natureza
sempre em luta com o fado.
Perdi também no contato
com o mundo, pérola radiosa, vão pecúlio,
uma certa inocência;
ficou a nostalgia de uma antiga
união com o que existe,
triste alfaia.


CERCO DA PRIMAVERA

5.

Molhava os cabelos negros
nas águas da noite, quando
cheio de sombra acendeste
uns olhos cor de limão,
iluminando o silêncio
com o simples tocar de mão.

Um rumor de vinho claro,
de bocas e mãos unidas
e um cheiro de mel e flor,
rasparam, ai, como espada,
meu corpo cheio de noite
e o teu, perdido de amor.

Por certo que não queria,
mas tinha a cintura e jeito
ao teu abraço achegados,
e na sombra relumbrava
a água verde dos teus olhos
nos meus cabelos molhados.

Tremores de vento e lua
encabritavam-me o sangue,
e penas de sal e fogo
talavam o silêncio escuro,
ferindo nossas cadeiras
e amarfanhando o chão duro.

Em frio e fogo de amor
apenas luz se alongaram
curvados talhes desnudos.
E nas sombras o silêncio
agitava como franjas
seus longos braços agudos.

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