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domingo, 16 de outubro de 2022

A exposição dos sóis: A poesia de Julia Lemos



Em seu mais recente livro, a autora Julia Lemos convida o leitor a um café na aconchegante, atlântica e fluvial Recife, a de concreto e a de sentimento. Ainda mesmerizados pela noite e a cidade, arrojados somos numa ponte aérea (etérea?), e aportamos (poisamos?) em Portugal, lugar da morna solidão da poeta e das paisagens azuis e ancestrais. A seguir, transcendentes na transcendência, somos lançados de encontro ao Luminoso, numa sequência de poemas sacros, feridos de sequiosa suavidade. Ao fim, a poeta, fiel ao seu ofício, transcorre o elogio daqueles poetas outros que lhe inundaram o peito. 

Destes compartimentos é feito A exposição dos sóis (Penalux, 2017), magnífica obra em que o amor, flor de todas as estações, percorre seu périplo em versos intimistas, de maturidade e langor, e a poesia, lugar central dos criados à imagem do Verbo, recebe sua celebração.

Para aqueles que desejam adquirir o livro, podem entrar em contato com autora através de seu perfil de Facebook (AQUI).

Abaixo, selecionamos alguns poemas do livro.


MANGA DOCE ROSA

 

Cidade soturna, silenciosa

mas se você quiser há barris de tangerinas

folharais de acerolas ingás de veludo,

jambos vestidos do cetim mais rubro.

Ainda outros tricotados em feltro rosa - claro.

 

O sol viajando desde Singapura

projeta-se ardente

sobre lama e musgo.

 

Semimadames pouco vestidas

acima e abaixo da cintura

serpenteiam sobre

calçadas bordadas de miçangas.

 

De um guapo suco de manga

ouço os pregões como as únicas vozes

líricas possíveis;

 

Nas ruas bonitas da cidade

a vida parece abstrata, enferma e longa.

No centro velho do Recife, desde há séculos

a alegria torna a vida tão intensa quanto curta.

 

 

O OFÍCIO

 

Escrevo pelos que estando à frente da batalha

tiveram medo.

 

Carrego comigo a voz daqueles que se

viram impedidos.

 

Escrevo afinal pelos distraídos,

os ausentes, os perdidos.

 

Acredito que um poema se faça necessário

naquela tarde em que as certezas se esvaem todas

e pelas rimas pode-se ver a história por outro prisma.

 

Ordinariamente escrevo com alegria,

minhas palavras não murcham como as flores

diante da tristeza.

 

Escrevo sobrepondo outra página

num desfecho que parecia irreversível.



COMO O PROFETA

 

Fez-se tarde.

e provida estou

do ouro desse dia.

 

Há prata,

que a noite

pulverizou por toda a casa.

 

Espero as visões

que virão me despertar

nesta madrugada,

quando Deus começar

a falar comigo.

 

Nessa hora,

as ataduras da servidão serão desfeitas

e cavalgarei sobre os altos da terra

quando Ele começar a falar comigo.



PALAVRA

Amigos me perguntam

o que é ser poeta.

 

Digo que é fazer

a reportagem do mistério,

 

romper o silêncio

além da exterioridade do dia

 

- que passa, 

requerendo da pedra

a palavra.

 


Danço 

na chuva 

de bambolê

e sapatilhas de vidro.




sábado, 10 de setembro de 2022

Impressões de Julia Lemos sobre o livro Cartas e Retornos, de Sammis Reachers



 Julia Lemos

O mundo traduzido de forma enciclopédica e por um mar de signos, por causa dos neologismos, assim me pareceu ser este livro de Sammis Reachers, "Cartas e Retornos", que recebi como um presente enviado diretamente do Rio de Janeiro, onde este escritor, poeta, editor, antologista e professor de Geografia vive.

Os poemas se constroem como símiles de cartas, e no conjunto identificamos um diálogo com os que estão enfeixados sob o título de "Retorno", um termo que nesta proposta comparece em toda sua ambiguidade. O conjunto também evoca o poema "Correspondências" de Baudelaire e o traço algo experimentalista do livro remete-nos ao poeta Mallarmé, um dos precursores do Concretismo. O Movimento Concretista influenciou a poesia "pensante" do nosso João Cabral e a 'brincante" do poeta Leminski, só para citar estes.
Os poemas-cartas formam um leque temático quase infindável e são "enviados" ao vento, à terra, à linguagem, à guerra, à literatura, incluindo outras categorias como a das lembranças e repescagens da alma. Chega até o Cristo, o nome que está acima de todo nome.
Afinal, o poeta nos diz logo na apresentação, citando o filósofo Vilém Flusser, que a "poesia aumenta o campo do pensável" e é assim, com seus versos livres a se desenharem na página, que o lirismo também se mantém em um lugar mais discreto, pois será o leitor, com sua bagagem, que lhes conferirá o tom da emotividade.
Distraidamente o livro foi adquirindo corpo, o poeta também nos diz, assim como quem estivesse a "voar fora da asa", como usou dizer sobre o seu fazer poético, nosso poeta mais brincante, Manoel de Barros.
O eu lírico em Sammis Reachers, como que adentrando o "espírito" da linguagem, representa nesta sua poética de nomeações a criação de seu próprio mundo e isto nos remete a este versículo do livro de Hebreus: "pela fé os mundos pela palavra foram criados, de maneira que aquilo que se vê não foi feito do que é aparente" (Hb. 11:3).
Mas nem isto o salva, segundo o poeta declara como podemos ler neste trecho do poema "Retorno à Pedreira do Anaia":

Pedalo a bicicleta,
pedalo todos os dias,
Um refugiado jovem demais
Para ter descoberto que não há
Lugar
Sequer uma estrebaria
Onde dar parto à minha dor (...)
(...) Locupleto minha sanha de fliperamas,
Fotografia e a embriaguez da Grande
Literatura Universal
Que nunca me salvará:

Aguardo em (o)pus
O advento de Cristo.

Salva não, Sammis.
Eu também estou nessa de aguardá- Lo.

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Julia Lemos, pernambucana do Recife, iniciou sua trajetória como atriz nos palcos recifenses. Poetisa, tem seus primeiros trabalhos publicados no Diário de Pernambuco e Jornal do Commércio, organizando e participando ainda de vários recitais poéticos em Olinda e Recife. Em 1981 lançou seu primeiro livro de poesias, Carmem Antonia Migliacchio Enlouqueceu, e em 1997 publica A Casa Estrelada. Escreveu os ensaios: Sobre uma Poesia de Larvas Incendiadas e Patativa do Assaré - um trovador nordestino. Integra várias antologias no Brasil e Portugal. É autora de A Exposição dos Sóis (Penalux).


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