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João Tomaz Parreira
O
Narrador entrou numa fila extravagante para apanhar um autocarro, uma pequena
multidão heteróclita esperava já o mesmo transporte. Essa paragem parecia ser o
único lugar com vida de uma cidade deserta e sem beleza.
É o
início do livro de C.S.Lewis cujo título original é “The Great Divorce” e na tradução em língua portuguesa “A Viagem”.
A
passagem para o português, por Richard King e Lurdes Oliveira, usa vocabulário e sintaxe cuidados, dialogia e
harmonia entre as frases, concordâncias
irrepreensíveis, respeitando a semântica do autor, e como complemento útil,
excelentes notas referenciais do Editor. Reconheço desconhecer o original, mas
a leitura desta tradução é, sem dúvida, uma reescrita.
Sem
meios, de momento, para fazer comparatismo com a tradução brasileira (O Grande Abismo, da Editora Vida), o que
posso aduzir é que a versão A Viagem
fazia falta na nossa língua comum.
O
editor, meu amigo de há muitos anos,
João Pedro Martins, do Desafio Miqueias,
e o ilustrador da capa, também meu amigo Natanael Gama, fizeram um
trabalho excelente.
O
grafismo da capa, estruturado numa “linguagem gráfica” de BD(banda desenhada),
reflecte essa viagem, que metaforicamente parece ser nocturna, isto é, com suficiente mistério e
encantamento, como quando o dia nos dá os seus primeiros sinais envolto em
neblinas.
Esta
obra de Lewis é um contraponto, para não dizer confronto a uma outra,
centenária, do poeta William Blake em que este faz um casamento entre o Céu e o
Inferno. Assim, estando o leitor no domínio do que está para além de si e no
diáfano espaço do celestial, dir-se-ia que a leitura de “A Viagem” se fará
sempre com a predominância da sétima função da linguagem, para usar a expressão
de Roman Jackobson, a linguagem mágica e encantatória.
De
resto, como sabemos, desde As Crónicas de Nardia, C.S.Lewis sempre a utilizou
nas suas alegorias.
O
livro que comecei a ler não foge a esta “regra”, que em Lewis é um estilo
irrefragável. É uma metáfora, é uma grande fábula, e se quisermos dizer de outra maneira, mais
“bíblica”, é tipológico. Dir-se-ia que parece, no âmbito das
intertextualidades, o Huis Clos ( À Porta Fechada ) de Jean-Paul Sartre, mas com uma multidão de protagonistas.
Do
ponto de vista literário, que deve ser sempre aquele pelo qual abordamos a obra
de Lewis, temos pela frente literatura do fantástico, que antecipou, de certa
maneira com conteúdo teológico-cristão,
a literatura sul-americana de Gabriel Garcia Marquez a Julio Cortázar. E
séculos antes do autor de “Crónicas de Nardia”, John Bunyan com “O Peregrino”.
Em “A
Viagem”, Lewis reflecte sobre a temática que é da bagagem do Cristão: a
concepção do Céu e do Inferno. A vida – vivências, circunstâncias, conflitos,
concordâncias - para além da morte.
Ambos
os lugares não se interpenetram, tão-pouco se equivalem, não devem equivaler-se
porque são equidistantes na vida do Cristão.
Num “Study Guide” da obra, assinada pelo próprio autor, ao que suponho,
lemos no início desse Guia de leitura que “não há um céu com um pouco de
inferno”, nem o contrário.
O que
existe entre ambos, é um abismo.
Percorrendo
as páginas e tendo encontros com as personagens, temos a sensação de que nos
deparamos com um texto, que é mais do que ficcional, é uma mitopeia, uma
“mythopoeic fairy”, (conto de fadas ou mitopoema, para usar um neologismo
traduzido do inglês).
É a
imaginação a funcionar, tal como no clássico do século XVII de Bunyan, numa
metalinguagem que se percebe ser (nas págs. 28 e 30) do âmbito do sobrenatural,
melhor dito, do maravilhoso ou do domínio do extra-subjectivo. Como os filósofos,
C.S.Lewis interpreta aqui a vida para além da morte de modo variado e, por
vezes, iconograficamente, para transformar isso nas relações do quotidiano. Um
dos referentes, a Morte, tem um código próprio, tal como o céu e o inferno na
linguagem lewisiana para nos falar de A
Viagem.
“- Prefiro morrer”- diz
uma personagem (o Fantasma, que é uma mulher)
- Mas já morreste! Não adianta ignorar
isso”- disse o interlocutor ( o Espírito)
É uma
obra estruturada no onírico – no final (pág.150), percebe-se isso -, como O Peregrino baseado num sonho, com as
personagens dramáticas inominadas, sejam o Inteligente, o Poeta Desgrenhado, o
Grandalhão e o Baixinho, o Luminoso, o Fantasma Esquálido e o Fantasma
Episcopal, o Espírito, como no romance de Bunyan são, por exemplo, o Cristão, o
Obstinado e o Adaptável, etc.
Não é
uma obra com citações bíblicas a propósito e a despropósito, como encontramos
hoje em alguns livros “evangélicos” que usam as Sagradas Escrituras como
pretexto para escrever um “best-seller” de auto-ajuda por detrás do texto
sagrado.
É uma
obra de induções, isto é, induz-nos ao pensamento bíblico e conduz-nos à
teologia, repondo desde a época em que foi escrito, 1945, até hoje, a concepção
perdida da existência do Inferno e do Céu e da viagem do Crente e do Ateu para
esses lugares.
Não é
uma obra apocalíptica, no sentido da escatologia. O que é, de facto, é apenas um romance cujo
locus é o após-a-morte, mas com diálogos como se fossem uma conversa entre as
personagens em vida, e, no entanto, elas são dramatis personae que morreram e vivem já no plano da vida eterna.
No que
concerne a aspectos teológicos sem mais, que são detectáveis, Deus e Jesus Cristo, o Cristianismo e a
Verdade perpassam neste livro na forma de diálogo ou nas chamadas discussões de
sociedade teológica.
Há, porém, uma metáfora que, neste livro de
CSL, é indubitavelmente da teologia por muito que o homem queira esquecer-se, o
Inferno. Mesmo quando o narrador adoça o termo com uma realidade, impressionante, chamando-lhe “cidade sombria”, “cidade cinzenta”, com “a sua contínua esperança
de alvorecer.”
A
linguista búlgara Julia Kristeva escreveu que “a presença da linguagem é
sensível nas páginas da Bíblia”, uso esta frase a propósito de A Viagem para dizer o contrário, que a
presença da Bíblia confere sensibilidade à linguagem desta e das demais obras
de C.S.Lewis. __________