Quando o conheci, já beirava os cinquenta. Morava a pouco mais de uma hora do barracão. De inteira confiança, era quem me trazia da cidade, dois dias a cavalo, por ocasião das férias, e àquele me levava de volta, chegado o período escolar.
Recordo-o bem. Ruga funda entre os olhos, dois vincos fortes no canto da boca, um mestre-escola. Os seringueiros, em geral, são homens rudes, iletrados. Fugia à regra. Após a faina diária, à luz da lamparina de querosene, não se deitava sem ler quanto lhe caísse às mãos: jornal, revista ou livro.
Além de leitor constante, seria não só o que já se denominou, à francesa, decauseur, como o que hoje se costuma chamar de comunicador. Nem terá sido por outra razão que, em certa época, quando apareceu no seringal um grupo de crentes, se tornou um de seus adeptos fervorosos, em breve ninguém o excedendo em conhecimentos bíblicos e pregação do Evangelho.
Quem o conhecia de outros tempos, no entanto, do mesmo passo que demonstrava admiração, logo expressava incredulidade quanto à extensão da metamorfose. Em moco, dizia-se, não fora homem de levar desaforo para casa, tendo mesmo, acrescentava-se, muitas mortes nas costas, o que aliás sempre negava, embora de maneira um tanto inconvincente.
É: só mesmo a idade e a crença, garantiam todos, o poderiam ter transformado naquele manso pregador, incapaz de ofender o próximo. Conheci-o pouco antes da conversão religiosa, mas, entre atear e apagar um incêndio, realmente já preferia a última alternativa. Lembra-me também que, depois de se tornar um divulgador do Evangelho, o fazia à larga, citando a Bíblia a propósito de quase tudo, o que, convenhamos, apesar da simpatia pessoal, o limitava muito em meu gosto adolescente.
Foi aí que lhe ocorreu na vida o que, noutros tempos, afirmam quantos o conheciam bem, teria dado lugar a inevitável tragédia. A mulher, que era alguns anos mais nova, mas já lhe dera vários filhos, abandonou-o, partindo em companhia de outro seringueiro, que também se comentava não ser de brincadeira. O seringal ficou em polvorosa. Em face dos antecedentes, ninguém duvidava do que ia acontecer.
O imprevisto, porém, se verificou. Não só recebeu o golpe com humildade cristã, como ainda se fez pregador mais fervoroso. Dedicou-se aos filhos e tornou-se pastor, com grande e crescente número de seguidores na Assembleia de Deus, que passou a dirigir. Não restava qualquer dúvida: transformara-se no perfeito cristão, capaz de oferecer a outra face à segunda bofetada.
Tamanha foi a tranquilidade com que resistiu à desdita conjugal que a mulher e o amante, após algum tempo, retornando às proximidades, mandaram consulta-lo sobre como os receberia, uma vez que a primeira desejava rever as crianças. de acordo com o intermediário, o convicto pastor permaneceu um instante em silêncio e em seguida, sem perder a calma ou a postura e o tom que a religião lhe dera, respondeu:
– Não há problema. Diga a ela que, quando quiser, pode visitar os filhos. Nada lhe acontecerá. Mas seu companheiro não permito que venha nem apareça em minha frente.
E arrematou:
– Por uma razão muito simples: eu me tornei crente, mas meu rifle não. E eu não respondo por ele.
JOBIM, Romeu. Boa tarde, excelência!. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1990. p.7-8
__________________
Romeu Barbosa Jobim nasceu em seringal do Acre, em 25 de fevereiro de 1927, filho de Armando de Oliveira Jobim e Francisca Barbosa Jobim. Cursou o primário e o ginásio em Rio Branco e Manaus. Depois foi para o Rio de Janeiro, fazendo o clássico e formando-se em Filosofia e Direito. Redator da Câmara dos Deputados, por concurso, em 1960, integrou a magistratura do Distrito Federal desde 1976. Lecionou, no Rio e em Brasília, Filosofia, Psicologia, História e Português. Iniciou-se nas letras aos quinze anos. Morreu no dia 30 de maio de 2015. Publicou: Justiça: Humor Forense; Em Tom Menor; Pássaros de Meus de meus bosques; Amanhã Cedo é Primavera; Cantos do Caminho; e Entre Crônicas e Contos.