segunda-feira, 19 de setembro de 2022

A poesia de Daniel Glaydson Ribeiro

 


B@rroc@ e Rokokó, poesia de mínimos e de plenos, transbordamento do areal e mar que são as palavras. Revoltado alumbramento. Assim a poesia de Daniel Glaydson Ribeiro se apresenta, em seu livro Pulsão de Língua (Mirada, 2021). Dispostos em compartimentos, capítulos ou cápsulas de independência lírica, rítmica e temática, seus poemas se desdobram sobre o próprio chão: a linguagem, e dos saltos metalinguísticos e transliterários avançam até o chão do dia, com uma verve de engajamento e denúncia.

Aqui, para deleite dos leitores deste blog, alguns poemas e trechos do livro:


Epopeia do Cordel (trechos)

 

A sapiença do povo

tá no riso sem frescura,

na poesia das mata

sem sacra Literatura.

Vez por vez tem desavença,

mas no duelo tem quem vença:

viola na noite escura!

 

[...]

 

E agora com a internet

dos links multimodais,

toda ciranda que eu cante

roda o mundo em arraiais:

digo oxente e tô na Rússia,

traduzido lá na Prússia,

meu começo é sem finais!

 

Pois então lhe passo o verso

A ocê, minha formosura

Qual inté aqui chegou

Dichavando essa bravura!

Bravo é ler os camarada,

Entender nossa jornada

Em defesa da cultura.

 

 

 

REZA

 

No instante em que a lágrima

 lava minha vista para a palavra

do Teu Canto,

                                         tal qual a sentinela,

"minha alma anseia por Ti, pelo nascer do dia".

 

A natureza não tem moral

e sua água é(ra) límpida.

                                          Da terra e da pedra,

inda brota água pura.

 

Cala a ira dos impostores

que ousam proferir Teu Nome

com a boca e a língua pútridas

de genocídio.

 

Só muito depois compreendi

que esta ventania constante

já é Tua Voz,

                                          num simples sopro sempiterno.

 

 

 

ESQUIZOCAPITAL

 

Era uma vez minha terra

tinha palmeira e palmares

hoje tudo queima

e a Flor-

esta

cinza pelos ares:

 

cinza que cobre estrelas

fumaça enforca dores

ouro-lama afoga gente

num rio tóxico

Rio Doce

 

os quilombos e as aldeias

que diziam "demarcadas"

são o intermitente cenário

de guerra das bandeiradas

 

minha terra, nina

nem sei mais se é terra ou veneno

e tudo continua sendo

para o progresso

de São Paulo

 

 

 

COMO

 

...se ao poema coubesse ainda e apenas

Lê-lo, com humana voz sem excesso

no ritmo puro do tempo disperso

como se houvessem raças e antenas,

 

numa ausência de qualquer artifício,

como se eu detrás duma cortina,

sumisse, e esta língua que imagina

já não fosse a máquina do início.

 

Tal corno a luz do sol ou a da lua

as nuvens, os raios e tempestades

são sublime teatro-transcendência,

 

a Voz é meu corpo a dançar, eu nua;

línguas é ruído de todas as vontades,

o poema: barulho-excesso-essência.

 

 

 

V

 

Beijar a humanidade

mesmo desvirtuada

(Virtude, vento

que passa pleno

de sementes,

ex-cesso

que vigora)

 

com a esperança de um louco

se é que os loucos esperam

 

 

 

Haikai

 

o cheiro do tempo

um quintal frutificando

lentamente, dentro


Perfil do autor em Academia.Edu: https://ifpi.academia.edu/Daniel
Canal Linguagem e Poesia no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=p_KwQ3DPk7I 



sábado, 10 de setembro de 2022

Impressões de Julia Lemos sobre o livro Cartas e Retornos, de Sammis Reachers



 Julia Lemos

O mundo traduzido de forma enciclopédica e por um mar de signos, por causa dos neologismos, assim me pareceu ser este livro de Sammis Reachers, "Cartas e Retornos", que recebi como um presente enviado diretamente do Rio de Janeiro, onde este escritor, poeta, editor, antologista e professor de Geografia vive.

Os poemas se constroem como símiles de cartas, e no conjunto identificamos um diálogo com os que estão enfeixados sob o título de "Retorno", um termo que nesta proposta comparece em toda sua ambiguidade. O conjunto também evoca o poema "Correspondências" de Baudelaire e o traço algo experimentalista do livro remete-nos ao poeta Mallarmé, um dos precursores do Concretismo. O Movimento Concretista influenciou a poesia "pensante" do nosso João Cabral e a 'brincante" do poeta Leminski, só para citar estes.
Os poemas-cartas formam um leque temático quase infindável e são "enviados" ao vento, à terra, à linguagem, à guerra, à literatura, incluindo outras categorias como a das lembranças e repescagens da alma. Chega até o Cristo, o nome que está acima de todo nome.
Afinal, o poeta nos diz logo na apresentação, citando o filósofo Vilém Flusser, que a "poesia aumenta o campo do pensável" e é assim, com seus versos livres a se desenharem na página, que o lirismo também se mantém em um lugar mais discreto, pois será o leitor, com sua bagagem, que lhes conferirá o tom da emotividade.
Distraidamente o livro foi adquirindo corpo, o poeta também nos diz, assim como quem estivesse a "voar fora da asa", como usou dizer sobre o seu fazer poético, nosso poeta mais brincante, Manoel de Barros.
O eu lírico em Sammis Reachers, como que adentrando o "espírito" da linguagem, representa nesta sua poética de nomeações a criação de seu próprio mundo e isto nos remete a este versículo do livro de Hebreus: "pela fé os mundos pela palavra foram criados, de maneira que aquilo que se vê não foi feito do que é aparente" (Hb. 11:3).
Mas nem isto o salva, segundo o poeta declara como podemos ler neste trecho do poema "Retorno à Pedreira do Anaia":

Pedalo a bicicleta,
pedalo todos os dias,
Um refugiado jovem demais
Para ter descoberto que não há
Lugar
Sequer uma estrebaria
Onde dar parto à minha dor (...)
(...) Locupleto minha sanha de fliperamas,
Fotografia e a embriaguez da Grande
Literatura Universal
Que nunca me salvará:

Aguardo em (o)pus
O advento de Cristo.

Salva não, Sammis.
Eu também estou nessa de aguardá- Lo.

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Julia Lemos, pernambucana do Recife, iniciou sua trajetória como atriz nos palcos recifenses. Poetisa, tem seus primeiros trabalhos publicados no Diário de Pernambuco e Jornal do Commércio, organizando e participando ainda de vários recitais poéticos em Olinda e Recife. Em 1981 lançou seu primeiro livro de poesias, Carmem Antonia Migliacchio Enlouqueceu, e em 1997 publica A Casa Estrelada. Escreveu os ensaios: Sobre uma Poesia de Larvas Incendiadas e Patativa do Assaré - um trovador nordestino. Integra várias antologias no Brasil e Portugal. É autora de A Exposição dos Sóis (Penalux).


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