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domingo, 12 de fevereiro de 2023

A VISITANTE - Conto de Sammis Reachers

 


Ela passou a tarde inteira medindo meu coração, desfazendo pequenas criptografias.

A noite chegara lá fora.

– O que a senhora quer, afinal?, perguntei.

– Sair da rotina. Nada. Obrigado pelo café.

Foi à estante, olhou com desdém a profusão de livros. Uma parte insuspeita a atraiu: um trecho da estante onde eu guardava memorabilia, pequenos brinquedos, álbuns de figurinha. Tocou os brinquedos, sorriu ao manusear um boneco do Hulk. Puxou alguns álbuns. Apanhou o mais antigo, um álbum de cromos sobre dinossauros, da década de 60 do último século a morrer.

– O homem que pintou esses animais era um ser infeliz. Japonês de nome Agura Sayta, depois John Sayta, radicado em Cincinnati, nos EUA. Como você, praticava colecionismo: possuía escaravelhos. Escaravelhos embalsamados. Seu amor era a taxidermia, o reino de aço dos ínfimos e fortes insetos, mas ganhou a vida pintando dinossauros. Morreu de uma pneumonia. ...Segunda feira começa o verão em seu hemisfério... – ela concluiu, mudando completamente de assunto.

Já havia percebido esse padrão, esse alheamento. Se fosse cabível, diria que ela está esclerosada. Mas algo em mim insiste (intui) que ela sempre foi assim. O alheamento é parte de seu ofício.

Quando você nasceu? – rompi a casquinha do nonsense com minha primeira pergunta de verdade. Ela nada respondeu: olhava pela janela, contemplando talvez as roseiras podadas do jardim.

– Você consegue estar em muitos lugares ao mesmo tempo. Como faz isso? Há muitas de você?

– Nascer não é a palavra. Nascer nem se aproxima da essência do conceito. Sou para o Universo como estas três paredes deste quarto de quatro. Sem elas não há quarto, não há morada: sou a coesão, a corrente de prata, o elo que liga o início deste Universo a seu fim, e seu fim será o meu. Mato para que um dia eu morra, enfim.

Puxou uma biografia de Einstein da estante. Fez menção de abrir o livro, declinou.

– A entropia que causa o caimento energético da matéria, entropia que a tudo corrói e mata e eu somos uma: o mesmo princípio, o mesmo... material criando formas diversas.

Era a minha vez de saltar de assuntos, pisar num detalhe que me perturbara desde que lhe abri a porta:

– Senhora, seus olhos são assustadoramente... impossivelmente melancólicos.  Congelados num perpétuo estado de pré-lágrima. Eu os suporia duros, se tal imaginação tivesse tido seu tempo. É um detalhe ínfimo, mas que se mereceria espantoso. E o pior não é esse espanto, mas sua quase ausência... Pois é como se eu já tivesse visto esta cena e seus olhos. Você já esteve aqui? Em algum momento de que não me recordo?

– Se o Tempo é circular? Se você se sente girar, sim. Esse boneco sem braços... sim, lembrança de sua infância. O Tempo é uma explosão secundária ou de fundo, uma força-de-seguir-energias que, a partir do momento inicial, expandiu-se em todas as direções... mas não como o espaço, que vai sempre adiante, ou seguindo a placidez das linhas... o Tempo é inconcebível em linhas, elas avançam, entrechocam-se, ricocheteiam... Tempo, encantação domesticada, é a reificação mais mágica do Lumen, do Criador. Confuso? Ele não é para as palavras, como tanta coisa.

– Gostei daquilo que você escreveu – ela diz, noutro salto ou tombo demencial. E recita: “Vejo as pequenas mangas crescendo nos pés, a partir de setembro. Em dezembro estarão nas mesas e mãos. Um dia morrerei e as mangas, indiferentes, continuarão nascendo, crescendo açucaradas, sendo arrancadas ou caindo ao chão, diante de homens que não saberão de mim, seivas engordando uma outra manga, mesmerizados e indiferentes. Há um toque, um toque magistral de horror em todo esse processo de vida e morte.”

– Quer jogar xadrez?

– Para quê? Rainha-negra-mata-peões-mata-cavalos-mata-bispo-mata-torre-mata-rei-e-rainha-brancos. Partidários da rainha negra morrem. Rainha negra morre. Morte sempre vence.

– Ha-ha-ha... Perdão, senhora. Não quis dizer que poderia vencê-la, não imaginei o jogo sob esse prisma. Mas agora que a senhora referiu a isso... se fosse possível, como vencê-la?

– Sabe, certa feita um rei travestiu-se de peão e me venceu em meu próprio jogo. Mas tinha que ser, e o rei vestido em burla criara mesmo o tabuleiro-de-tudo em sua marcenaria. Era o mesmo que me criou, aos pés daquele Jardim onde teu pai foi criado e depois proscrito.

Mas vamos finalmente ao motivo deste dia. Você tem questionado e entristecido, mergulhado em café e aborrecimentos. Acredita, e com razão, na construção de sentido para a sua vida. Mas tem desesperado; já não pode mais construir, já atingiu a estação dos trens exaustos e ninguém lhe espera na estação.

Eu tenho uma oferta para você.

– Vai me levar? Só podia ser isso, afinal. E precisa desonrar-se ao propor a um peão o inescapável, o inacordável?

– No oceano, este oceano absurdo, cujo sentido verdadeiro, ou final se preferir, só pertence ao Um, você e, sei que inesperadamente eu também, sabemos que o maior tesouro é possuir sentido. É quase paradoxal, mas não temos escolha. Eu lhe ofereço o sentido sob minha jurisdição. Uma migalha bem maior que a sua.

Tudo de que uma criatura, qualquer criatura, precisa: um mapa e uma missão. O bernardo-eremita possui seus instintos, seu mapa, e sua missão é cumprir o ciclo; um demônio possui seu mapa de ódio, e uma agenda que se renova a cada homem que nasce, e como nascem homens!

Mas você, homenzinho amorável, desespera e pisoteia, em subidas e descidas, os andares do sobrado de sua própria angústia.

– E que tipo de sentido a senhora me oferece?

– O único que possuo, e como seria diferente? O meu.

– Não entendo.

– Mapa e missão, mapa e missão. É tudo de que toda criatura precisa. E sou feitura como você. Te darei minha missão e meu mapa. Não tema; não passará uma vida eterna sob meu manto; como missão, ela terá conclusão, e como mapa, há destino a alcançar.

– Calma, madame, calma aí. Quer que eu seja um... um tipo de seu ajudante?!? Um arauto, talvez?

Quero que você seja eu.

Aturdido pelo insólito de tal diálogo, sentei-me no sofá. Afundei o rosto entre as mãos; chegara ao limite, tardiamente não conseguia conciliar os pensamentos. Escorri para o chão. Deitei-me, olhando fixo para o teto escurecido. Que tipo de pesadelo estava sendo aquele dia?

– E se eu aceitar sua oferta, que será de você?

– Abreviarei minha missão interior; acrescentarei ou expandirei sentido ao burlar o mapa; tomarei um atalho, e atalhos são raridades na metanarrativa universal.

– E, suponho, estarei para sempre prisioneiro de tua sina?

– Não, não para sempre, já lhe disse; meu mapa é delimitado em exatidões. Virá o dia, o Dia magnífico, em que o Equalizador terminará com a sua fome.

O sentimento de pesadelo ainda me dominava; a situação inteira não era crível, mas ao mesmo tempo a sensação de que jamais homem algum poderia ter sonho tão complexo e tão real como aquele era avassaladora. Eis o fantástico arrombando a portinhola de meu curral de tédio, eis a espada mística de Arthur ou Siegfried caindo do céu e enterrando-se no peito pálido de meu desconcerto. Que importa se sonho ou realidade?

– Aceito sua proposta.

– Oh. Finalmente. – disse, sentando-se. – Aquele que ulula entre terribilidade e misericórdia apiedou-se de mim. Pois há alguns séculos passei a clamar não no vazio, mas pelo nome de Seu Filho, o intermediário.

– ??? Oh. Fala de Deus?

– Toda fala fala de Deus, e não há escape, ó sucessor.

 Ela se levantou e aproximou-se do local em que me deitara. Levantei-me, leso de quaisquer sentimentos. Ao abrir seu manto, pude divisar, mesmo na penumbra, o interior de seu sinistro corpo, ou fosse o que fosse. Era um entretecido de feixes, como raízes escurecidas, mas que me aparentaram sinalizar um belo mosaico, uma apetecível estrutura. Enfiou sua mão direita no próprio peito de urdiduras, que se abriram ao toque. De dentro de si retirou uma pedra. Ou joia. Tinha o tamanho de um punho fechado, talvez de um coração. Era translúcida; em seu interior, feixes de luz negra pulsavam em diversas direções.

– Este é o roteiro de missões. Aqui você verá cada alma a tocar, e quando fazê-lo.

– Como você pode tocar a tantos ao mesmo tempo? – repeti a pergunta inicial, noutros termos, tornando a um de seus nós metafísicos que me fascinavam.

– O Tempo, principezinho das cismas, é passível de dobraduras. Posso, e você, no começo não sem assombro, o fará, dobrá-lo para frente e para trás: ele sempre volta à posição normal, mas me permite estar em muitos lugares, em muitos tempos que, para os prisioneiros de sua falsa linearidade, parecem um tempo só.

Em seguida ela retirou seu manto. Inesperadamente, como se para deitar terror a um homem já além do medo – pois colapsado pelo absurdo –, a fraca luz de LED da sala tremulou. Vi seu corpo de feixes, de raízes entrelaçadas, sua nudez milenar. Ela estendeu-me sua mortalha.

– E se o Deus de que fala não me aceitar?

– Ele me permitiu escolher alguém. Não como fui escolhida, dentre a animália. Nem entre espíritos. Mas me permitiu escolher um dentre os de Adão. E eu escolhi você. E, se aconteceu, faz parte do sentido. O mais é contigo, e logo saberá.

Tomei seu manto. Deitei-o sobre meu corpo. Raízes começaram a cobrir minha pele; mas sentia também, em meu interior, seu avanço lento. A primeira sensação foi uma mudança no meu poder visual: podia ver a quilômetros de distância, estando dentro de minha casa.

– Agora irei lhe inserir a pedra. Doerá. Sim, doerá como o pecado de Adão.

Tocou-me com a pedra. No pouco tempo de reflexão entre suas palavras e sua ação de estender a joia, imaginei-a gélida. Mas era ardente, e incendiou meu ser, agora feito de urdiduras e entrelaces. Minha visão turvou-se, e como que, em poucos segundos, apaguei e despertei. E já era a Morte.

A pedra pulsava dentro de mim; sem que me desse conta ou plena consciência, desdobrei-me ou dobrei o que antes chamava de Tempo, voando célere em direção, perdão, nas muitas direções em que apontavam os feixes febris dentro da joia, acelerado por seu impulso. E, no entanto, eu permanecia ali. E era terrível, e era magnífico. Havia sentido, possuía a firme presciência de que havia missão e dela haveria um término; de que um dia aquele que alistara minha predecessora e agora me aceitava, iria finalizar meu propósito, e traria a equalização. Equalização, rosa para onde todas as coisas rumam, linhas de sua mão cosmocrática.

A minha predecessora, agora o borbulhar de um vulto amorfo, se arrastara em direção à porta; sem olhar para trás, abriu-a. Eu não encontrei palavras a proferir, inebriado de meu novo e vasto estado.

Ao ser alcançada pela luz do dia, ela transmutou-se em uma reles doninha. Então realmente não fora criada ex-nihili; fora uma doninha transfeita neste ser que a Queda, ou melhor, a provisória Ascensão do Absurdo, fez necessário existir. Isso explica ter sido possível o repasse do manto, um câmbio da máxima escuridão de as mãos do pó para as mãos do pó.

Lá fora, o pequeno mustelídeo corria e saltitava, provavelmente já insciente de seu passado impossível. Atingira a equalização, ou ao menos retornara à possibilidade de brevidade, cura para o pó. Equalização que se completaria quando a joia do Deus Equalizador em meu peito sinalizasse sua direção, para que eu colhesse minha predecessora.

A não ser que Ele o Deus Cosmocrator venha a me tocar antes, cerrando o voluptuoso túmulo do absurdo do qual me fiz porteiro. Ele de quem eu duvidava da existência, posso sentir agora, aterrado, sua presença e seu amor, tese da qual estou antítese, sentido por trás de todo sentido.



Este conto faz parte do livro Fabulário Índigo. Disponível em formato impresso (aqui) e e-book (pela Amazon, aqui).



sábado, 11 de dezembro de 2021

O ÚLTIMO SALTO, conto de Sammis Reachers

  


O ÚLTIMO SALTO

 

Foi duma ardência que nunca senti. Me rasgando a garganta. Sentia como o líquido ia, a um tempo, queimando e como que fazendo inchar, expandir-se, tanto a extensão de minha língua quanto as paredes da minha garganta, traqueia... 10 ml de veneno daria conta, mas eu tomei 300ml, um belo copo.

Retornei como que de ressaca. E atrasado: havia já programado uma nova morte e esta fora gestada por um mês. Custou dinheiro, tempo perdido com instrutores. O avião decolaria às 10h00. Saí do IML e peguei o primeiro ônibus.

Conheço mais IMLs do que pregadores itinerantes conhecem púlpitos de igrejas de onde vão arrancar seu ganha-pão.

Lembro-me sempre não da primeira, mas da segunda vez em que morri. Acreditei que sonhava: ainda era usuário das mesmas drogas que me mataram da primeira vez.

Na primeira, afinal, não soube sequer que havia morrido. Só me lembro de sentar-me, muito chapado, na cadeira do fundo de um ônibus, e começar a tremer, mas sem sentir frio. Acordei numa maca fria de um hospital, coberto com um lençol. Era madrugada: levantei-me e saí. Alguém detrás de um balcão, sonolento, esboçou um “Ei! Ei!”. Sonolento, creio que não ouvi.

Estava muito grogue e achava que era efeito posterior da aparente overdose que me jogara naquela maca. Ou talvez de alguma medicação. Só com o tempo e outras mortes fui perceber que sempre despertava com aquele tipo de zonzeira. Era a vida engrenando as marchas.

Curiosa a minha hipervida, não? Mas a coisa toda é simples: sou um homem que não consegue permanecer morto. Sou sempre expelido pela Morte de volta à vida. Escarrado. Não sei o motivo. Até onde eu sei, não sou vítima de nenhuma maldição, artefato místico, genética alienígena, experiência científica. Estar preso numa grande matrix, num programa simulador de realidade, claro, é uma possibilidade. Para todos nós, afinal.

Nunca utilizei meu “poder” para trazer qualquer benefício para ninguém. Creio que nem mesmo para mim. Era um drogado já com certa inclinação suicida, e ao descobrir tal dom ou maldição tudo o que fiz foi curtir, curtir ao máximo o que, ainda creio, estava vedado a qualquer outro homem: mais que sofrer, saborear a morte. Pisoteá-la, ela a tão cheia de botas.

Passei simples e sistematicamente a suicidar-me das mais diversas e criativas maneiras que me ocorriam.

Mas, e como é estar morto?, você deve estar perguntando-se. São muitas mortes, e variadas as experiências, e múltiplas as respostas. Vezes houve em que, defunto meu corpo, só vi escuridão e silêncio. Noutras, ouvi vozes, algumas conhecidas me chamando a esmo, noutras vezes gritos de dor. Vi a luz em forma de túnel. Vi a área em torno ao meu corpo, pessoas observando-o, tentando me reanimar.

Em Uganda fui estraçalhado por um leão e fiquei horas (eu ou meu espírito? Na verdade sempre meu espírito e sempre eu, pois somos espíritos, e não corpos) observando meu corpo mutilado, abandonado pelo jovem leão após se ter saciado. Quando hienas se aproximaram, meu meio corpo foi salvo por guardas florestais. De repente senti como que se lançado num torvelinho, um rodopiar do vento que aumentava sua força e girava meu espírito como uma cueca numa máquina de lavar. Despertei ensacado no jipe que levava meu corpo para a capital do país. Eu poderia relatar outras trinta experiências assim.

Você já pisou num chiclete? Aquela sensação, meio nojenta e noutra metade angustiosa, de perceber o chiclete esticando-se indefinidamente junto com seu calçado, quando este se levanta? Assim ocorre com o espírito. Ele desprende-se do corpo como um chiclete, esticando-se, grudento.

Sinto falta da sensação do desprendimento, imensa saudade de morrer. Desta única vez, ao menos, por um bom motivo.

Hoje estou preso a um corpo imóvel, o qual não posso matar. Escrevo este relato apenas com os olhos: utilizo um programa criado especialmente para pessoas em situação como a minha, tetraplégicos. Essas quase três páginas que você acabou de ler me custaram dias de trabalho, olhares e piscadelas para os sensores do monitor que me causam uma dor de cabeça terrível. Minha última aventura kamikaze deu errado, errado pois... sobrevivi. Em meia vida: O acidente lesionou minha coluna cervical, e aqui estou.

Nunca vi Deus, anjos ou demônios em minhas muitas mortes, ou nesses períodos que passo fisicamente “morto”, pois quem sou eu para saber se isso é mesmo a morte? Mas, após dois anos aqui, prisioneiro neste corpo, eu que me julgava e porventura fui o mais livre dos homens, um anárquico super-homem, viciado no próprio poder, no próprio ego, desisti de teimar. Em lágrimas sem ter quem as secasse, lembrei das conversas – perdão, das audições – com dona Solange, missionária capelã que semanalmente vem até esta ala do hospital e conversa conosco. Eu a ouvia, mais interessado em simplesmente ouvir alguém do que em ouvir o que ela estava falando.

Me lembrei de suas palavras, e sem palavras gritei o mais alto que pude por aquele Deus de quem ela fala tão feliz, esse Jesus que tanta luz e confusão trouxe ao mundo. Gritei mentalmente, gritei e gritei e chorei – um dia, dias, qual a diferença? – imóvel como um cadáver em meu corpo paralisado, até que senti sua mão em meu ombro. Senti, senti mesmo não tendo nenhuma sensação do pescoço para baixo.

- Pare de gritar.

Fiquei em “silêncio”, apenas chorando, confuso de raiva e espanto e vergonha. Raiva pela fraqueza, vergonha de chegar àquele ponto, àquele estado de miserabilidade, e espanto por ele estar ali.

- Você quer respostas, mas eu quero saber se você está realmente cansado.

- Estou, Senhor. Não aguento mais essa prisão, e nem mesmo aquele morrer e ressuscitar que me trouxe até aqui.

- Dura sorte lhe coube, pois dura sorte é sair daqui e para cá voltar, sem o beneplácito do Pai. Tudo o que você fez foi acumular pecados, e inutilizar vez após vez tudo o que eu lhe dei. Mas, se quer e se crê, um pouco mais de tempo e morrerá, e ressuscitará a ressurreição verdadeira, para nunca mais morrer, num novo corpo feito de paz e para a paz criado. Um corpo que você não poderá e nem quererá despedaçar.

Confesso que eu, habitante do inusitado, estava confuso como jamais estivera. Ideias de que aquilo era só mais um sonho ou fruto de um transe medicamentoso me solapavam sem trégua. Mas reagrupei a coragem que me fazia experimentar a morte vez após vez, e com coragem fui para o tudo ou nada, como quem salta sobre um abismo, pois sentia acima de tudo que aquele momento era um “tudo ou nada” como jamais experienciara em minha estendida existência.

- Eu quero, Senhor Jesus! Eu quero...

Fechei os olhos para que as lágrimas que embaciavam minhas órbitas fossem expelidas e escorressem, e ao abri-los já não havia ninguém lá.

 

Continuo preso; vezes há em que amaldiçoo minha existência, ou o mal uso que fiz da singularidade, buscando a morte apenas por curtição, desperdiçando o que era um verdadeiro superpoder.

Nunca mais o vi, embora o chame constantemente, e por vezes minha fé naquele dia e naquelas palavras titubeia. Mas lancei-me no tudo ou nada e, com a resignação dos prisioneiros, espero. Entendi o que dona Solange dizia tantas vezes, “é preciso ter fé, e basta ter fé”. Minha existência kamikaze me permitiu entender que a fé é um salto no escuro, que pega impulso no escuro, e mira adiante, no escuro, para alcançar além do escuro.

 Sammis Reachers

Publicado originalmente no Jornal Daki.


Este conto faz parte do livro Fabulário Índigo. Disponível em formato impresso (aqui) e e-book (pela Amazon, aqui).


domingo, 11 de fevereiro de 2018

SYLVIA PLATH ON THE BEACH (27/10/1932 - 11/02/1963)




À beira do mar, na areia do meio-dia

Os teus lábios mantêm um sorriso inconsumível

Nem o vento arranca fios de ouro aos teus cabelos

Na pose de quem tem os olhos nas coisas singulares.

Todo o princípio da poesia

Sob a capa transparente do sol ao longo do teu corpo

preparavas o salto felino da beleza

que ainda hoje nos devora.



11/02/2018

© João Tomaz Parreira

quinta-feira, 21 de abril de 2016

A Siesta


A Siesta
É uma alegria para mim ouvir soar o relógio: Eu vejo que passou mais uma hora de minha vida, eu acredito que estou um pouco mais perto de ver Deus.” - Teresa de Ávila

Tive um sonho esta tarde. Meus sonhos da siesta, 
do após o almoço, são sempre tristes, materialistas,
renitentes lembranças exageradas de problemas
nos quais desejo não pensar.
Mas esse foi diferente:
Eu assistia, num desses cemitérios de subúrbio,
a um funeral, o meu próprio.
Seguia avançando com o féretro, uma mãe chorando &
duas dúzias de pessoas cansadas do dia, e tudo era paz
e algum tédio, mas ao chegar à sepultura
choquei-me com o que li escrito em minha lápide:

Lançado para além da muralha.”

Foi a coisa mais linda e perfeita que já li na morte ou na vida,
o sonho de maior completude que já pude.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

QUEM OS DEUSES AMAM


Ὃν οἱ θεοὶ φιλοῦσιν ἀποθνῄσκει νέος
Quem os deuses amam morre novo

Menandro

os deuses amam
as tuas gargalhadas
e riem-se
encontram nos teus olhos
pérolas incandescentes
que anelam possuir
e para isso retorcem
os dedos

os deuses na tua boca
a voz amam
clamam pelo que tens
e eles não conhecem
e por isso no teu corpo jovem
acordam o sonho
e na mesma pressa de amar
to reclamam

quem os deuses amam?
que deuses amam?

18/02/12

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