quinta-feira, 27 de agosto de 2020

ALFREDO PÉREZ ALENCART: A POESIA COMO MISSÃO


Álvaro Alves de Faria
https://revistacaliban.net/

Há poetas que têm um tema permanente desenvolvido em sua poesia, sempre voltado à vida do homem e à solidariedade entre as pessoas. Em praticamente todos os poemas da obra de poetas assim encontra-se sempre esse sinal que acaba por determinar toda uma trajetória de vida e na Literatura. É o caso do poeta peruano-espanhol Alfredo Pérez Alencart, professor na Universidade de Salamanca, Espanha.
Seu livro “Encumbra tu corazón” foi publicado na Itália com o título “Innalza il tuo cuore”, tradução do poeta italiano Beppe Costa, que tem uma obra poética significativa na Itália. Com ilustrações do pintor Miguel Elias, de Salamanca, e apresentação do poeta e romancista italiano Gianni Darconza, docente de Literatura e Cultura Espanhola e de Literatura Comparada da Universitá degli Studi di Urbano Carlo Bo, este livro é feito de poemas de bela elaboração literária e uma mensagem que fala ao homem e ao mundo que o cerca, atualmente um universo em que as saídas são poucas.
Alfredo Pérez Alencart é autor de vasta obra poética, como livros sempre lembrados, como “Madre Selva” (2002), Hombres Trabajando” (2007), “Cartografia de las revelaiones” (2011), “Los éxodos, los exílios” (2015), “Ante el mar, callé” (2017), e muitos outros publicados em vários países. Uma poesia marcante num tempo em que quase tudo é efêmero e se perde no imenso vazio que representa quase tudo nos dias que correm coberto de uma brutalidade que se alastra.
De início, o poeta faz um alerta ao seu leitor: “Digamos/ que habitamos uma terra ardente/chamada Poesia”. Sim, talvez seja possível sonhar com um violino amoroso, com suas notas ouvidas em todo mundo. E que palavras sejam o sol de nossas vidas. Pensemos que no princípio era a Poesia que nos nutria e nos alcançava e que assim passavam os tempos e as marcas dos milênios. No entanto, fiquemos apenas no sonho. O que já é muito porque, hoje, até o sonho está perdido entre os desencantamentos.
Gianni Darconza observa que a poesia de Alencart pode ser considerada religiosa, espiritual, no sentido mais profundo da palavra, frente ao materialismo dominante num mundo cada vez mais adverso. Um mundo de portas fechadas. Onde quase tudo desaparece numa imensa nuvem de infortúnios. Darconza lembra o poeta Antonio Machado, para assinalar que “aquele que fala sempre sozinho um dia haverá de falar com Deus”. Esta poesia faz com que as pessoas olhem para dentro de si mesmas, para o coração, em busca do espírito eterno das coisas.
O poema que dá título ao livro, “Eleva teu coração”, traduzido para o português por David de Medeiros Leite, especialmente para esta matéria, leva-nos a esse instante de solidariedade, em que o poeta fala ao homem com a palavra de um sentimento atualmente difícil de existir, já que o mundo se transforma a todo o momento, sempre para pior. Surge então uma voz, como se o poeta fosse, na verdade, um profeta a falar nos desertos da alma, como se assim fosse a sua missão, equivale dizer, a missão da poesia a serviço do homem e da vida quase sempre envolvidos na escuridão de um tempo de perversidades.
Eleva teu coração
e deixe que sinta
crucificações.
Também o sentir
é uma espada rebelde,
se necessário.
Engrandecê-lo distante
do entorno da fama
e do esquadrão dos malvados.
Mas exposto estará
o dia do pesar
ou se treme de desejos.
Engrandece teu coração
para que o mundo
não despreze
teus ruídos velozes.
O poeta Alfredo Pérez Alencart diz em um dos poemas que pujantes são os desejos quando navegamos pelo amor. Mas em todas as tardes surgem os náufragos. No entanto, é preciso seguir em busca de um mundo melhor, em que se possa encontrar a palavra da fé. Essa palavra em que o poeta se debruça a clamar essa paz desejada pelos homens. O poeta lembra das almas feridas. E sempre existirão almas feridas. Diz que enquanto um olho desperta, o outro deseja adormecer magnetizado diante da vida. E é essa vida que se procura, plena em si mesma, grandiosa como deve ser. O poema “Onde estão os outros?”, que lembram essas feridas, além das ingratidões e das súplicas de todos os dias:
Me falaste do futuro
porque sabias
o que aconteceria na realidade.
A gratidão
dos lábios costuma
minguar depressa
e as súplicas
abrem caminho
às ingratidões.
Como poucos são
os que voltam atrás,
amanhã
tampouco virão a ti
os nove que faltam.
Eu sou
quem agora repete
o ato agradecido
do leproso estrangeiro.
São passagens bíblicas lembradas por um poeta que não esquece o milagre e volta para agradecer. O que não esquece. Aquele que está sempre voltado à bem-aventurança com um gosto terno e abrangente. Aquele que não esquece a solidariedade entre os homens, o que semeia e, portanto, tem o direito de colher o que semeou, tecendo pontes até o coração do outro, sem romper as gerações: “A vida lhe seduz/ apenas amparada nas Palavras/ que guardam na memória/ de estrelas e vozes amadas”. O poeta Alencart sabe que nunca nenhum almanaque mostrará a grandeza do amor, aquele que cresce e ressuscita nas manhãs dele mesmo ou dos que ainda estão por vir. Aqueles que devem chegar a essa embarcação que atravessa o mar, aqueles que jogam a rede nas águas e têm os peixes necessários para viver.
O poeta italiano Bepe Costa relata nesta obra a trajetória de Alfredo Pérez Alencart, que nasceu em Porto Maldonado, no Peru, em 1962, observando que os poemas de Alencart são um misericordioso olhar para os que estão marginalizados diante das palavras de silêncio que pesa sobre eles. Um poeta de sensibilidade aguda, agradecido a quem lhe deu a vida. Um poeta da palavra. Da vida a ser vivida. Poucos são os autores — poetas ou escritores — que atualmente se assemelham a ele, especialmente no que diz respeito ao humanismo e à esperança, pela qual luta a cada minuto de seu tempo.
Em um pequeno livro publicado em São Paulo, Brasil, “Onde estão os outros”, em 2019, Alfredo Perez Alencart afirmou que a poesia repara a existência. A poesia é reflexão, o ofício dos que resistem. O poeta sabe o que diz com sua palavra. Está correto. Dos que resistem como ele, diante e dentro de um mundo que perdeu os seus valores, cada vez mais distante da humanidade. Ao longo dos anos, Alencart construiu uma obra de profunda solidariedade, de generosidade, em busca de uma espiritualidade cada vez mais ausente. A poesia é a busca do que se perdeu, uma peregrinação entre as palavras para encontrar a mensagem necessária. O poeta não deseja a liberdade numa cerimônia solene, repleta de aplausos. Não. Deseja, sim, a liberdade que está dentro do próprio homem. E assim vai à memória de si mesmo, para uma poesia coletiva, como afirma em seu poema Recuerdos”:
A outros desesperam
os calendários rápidos
e as emboscadas
em seus corpos,
em seus rostos.
Eu não desapareço
porque valorizo recordações,
portos de onde saí
e onde cheguei.
Parentes e amigos
encarnados nos abraços,
momentos
que mostram eternos.
Que ninguém me culpe
pela paixão
com que repito
o que sempre lembro.
Este “Encumbra tu corazón” é a palavra de um poeta caminhante com a fé dos que andam pelos desertos. Num tempo em que o perdão desapareceu da paisagem existencial, dando lugar aos ferimentos cada vez mais fundos. A poesia de Alencart, ao lado de sua Jaqueline, caminha entre as pedras com as sandálias dos que tem a palavra como o apelo fundamental para a vida. A mensagem está viva, não desapareceu um mar de descrença. Alencart observa que “o tempo não envelhece o silêncio dos inocentes”. Refere-se aos que foram e ainda são marginalizados por um sistema que pertence a apenas alguns. É um livro que enaltece a vida. E também a Poesia. Uma poesia em defesa do homem. Essa poesia a ser cultivada sempre pelos grandes poetas necessários ao mundo. Assim é a poesia de Alfredo Pérez Alencart, traduzido para mais de 50 idiomas. Uma palavra aos que necessitam ouvir.
(*) Jornalista, poeta e escritor — São Paulo, Brasil

sábado, 15 de agosto de 2020

O que é um menino? Um texto cativante




Os meninos se apresentam em tamanho, peso e cores sortidas. Encontram-se por toda a parte, em cima, em baixo, dentro, fora, trepados, pendurados, caindo, correndo, saltando. As mães os adoram, as meninas os detestam, as irmãs e os irmãos mais velhos os toleram, os adultos os ignoram e o céu os protege. Um menino é a verdade de cara suja, a sabedoria de cabelo esgadelhado, a esperança de calças caindo. Tem o apetite do cavalo, a digestão do avestruz, a energia da bomba atômica, a curiosidade do mico, os pulmões de um ditador, a imaginação de Júlio Verne, a timidez da violeta, a audácia da mola, o entusiasmo do buscapé e tem cinco polidáctilos em cada mão, quando pratica suas reinações. Adora os doces, os canivetes, as serras, o Natal e a Páscoa; admira os reis e os livros de figuras coloridas; gosta do guri do vizinho, do ar livre, da água, dos animais grandes, do papai, dos automóveis e dos trens, dos domingos, das bombas e traques. Abomina as visitas, o catecismo, a escola, os livros sem figuras, as lições de música, as gravatas, os casacos, os barbeiros, as meninas, os adultos e a hora de dormir.
Levanta cedo e está sempre atrasado à hora das refeições. Nos seus bolsos há sempre um canivete enferrujado, uma fruta verde mordida, um pedaço de barbante, dois botões e algumas bolinhas de gude, um estilingue, um pedaço de substância desconhecida e um objeto raro, que lhe é precioso por 24 horas. É uma criatura mágica. Você pode fechar-lhe a porta do seu quarto de ferramentas mas não a do seu coração... Pode expulsá-lo do seu escritório mas não do seu pensamento. Toda a sua importância e a sua autoridade se desmoronam diante dele, que é o seu carcereiro, seu chefe, seu amo... Ele, um despótico e ruidoso mandãozinho!... Mas quando você volta para casa, à noite, de esperanças e ambições despedaçadas, ele pode compô-las num instante com as suas palavrinhas mágicas: "OH! — PAPAI!".
Autor Desconhecido

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

O NÃO NASCIDO, poema de G. K. Chesterton


O NÃO NASCIDO
Se as árvores fossem altas e a relva curta
Como num conto louco
Se aqui e além um mar fosse azul
Quebrando uma monótona palidez                                       

Se um fogo fixo pairasse no ar
Para me aquecer ao longo de todo o dia
Se um cabelo farto e verde crescesse em grandes colinas
Eu saberia o que fazer

Encontro-me na escuridão; sonhando que existem
Grandes olhos frios ou bondosos
E ruas sinuosas e portas mudas
E homens vivos para além (delas)

Que venham as nuvens da tempestade: é melhor uma hora,
E que se vão para chorar e lutar,
Do que todas as eras em que reino
Nos impérios da noite.

Penso que se me dessem licença
Para neste mundo aparecer
Eu seria bom ao longo de todo o dia
Em que eu estivesse neste mundo encantado

Não ouviriam de mim uma palavra
De egoísmo ou de escárnio
Se eu ao menos pudesse encontrar a porta,
Se eu ao menos tivesse nascido. 
Tradução  António Campos e Anália Carmo

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