domingo, 1 de janeiro de 2012

Três poemas de Dylan Thomas, na tradução de Ivan Junqueira




Poema de Outubro

Era o meu trigésimo ano rumo ao céu
Quando chegou aos meus ouvidos, vindo do porto
e do bosque ao lado,
E da praia empoçada de mexilhões
E sacralizada pelas garças
O aceno da manhã
Com as preces da água e o grito das gralhas e gaivotas
E o chocar-se dos barcos contra o muro emaranhado de redes
Para que de súbito
Me pusesse de pé
E descortinasse a imóvel cidade adormecida.
Meu aniversário começou com as aves marinhas
E os pássaros das árvores aladas esvoaçavam o meu nome
Sobre as granjas e os cavalos brancos
E levantei-me
No chuvoso outono
E perambulei sem rumo sob o aguaceiro de todos os meus dias.
A garça e a maré alta mergulhavam quando tomei a estrada
Acima da divisa
E as portas da cidade
Ainda estavam fechadas enquanto o povo despertava.
Toda uma primavera de cotovias numa nuvem rodopiante
E os arbustos à beira da estrada transbordante de gorjeios
De melros e o sol de outubro
Estival
Sobre os ombros da colina,
Eram climas amorosos e houve doces cantores
Que chegaram de repente na manhã pela qual eu vagava e ouvia
Como se retorcia a chuva
O vento soprava frio No bosque ao longe que jazia a meus pés.

Pálida chuva sobre o porto que encolhia
E sobre o mar que umedecia a igreja do tamanho de um caracol
Com seus cornos através da névoa e do castelo
Encardido como as corujas Mas todos os jardins
Da primavera e do verão floresciam nos contos fantásticos
Para além da divisa e sob a nuvem apinhada de cotovias.
Ali podia eu maravilhar-me
Meu aniversário Ia adiante mas o tempo girava em derredor.
Ao girar me afastava do país em júbilo
E através do ar transfigurado e do céu cujo azul se matizava
Fluía novamente um prodígio do verão
Com maçãs
Pêras e groselhas encarnadas
E no girar do tempo vi tão claro quanto uma criança
Aquelas esquecidas manhãs em que o menino passeava com sua mãe Em meio às parábolas
Da luz solar
E às lendas da verde capela
E pêlos campos da infância duas vezes descritos
Pois suas lágrimas me queimavam as faces e seu coração
se enternecia em mim.
Esses eram os bosques e o rio e o mar
Ali onde um menino
À escuta
Do verão dos mortos sussurrava a verdade de seu êxtase
Às árvores e às pedras e ao peixe na maré.
E todavia o mistério
Pulsava vivo Na água e nos pássaros canoros.
E ali podia eu maravilhar-me com meu aniversário
Que fugia, enquanto o tempo girava em derredor. Mas a verdadeira
Alegria da criança há tanto tempo morta cantava
Ardendo ao sol.
Era o meu trigésimo ano
Rumo ao céu que então se imobilizara no meio-dia do verão
Embora a cidade repousasse lá embaixo coberta de folhas no sangue de outubro.
Oh, pudesse a verdade de meu coração
Ser ainda cantada
Nessa alta colina um ano depois.



CONTO DE INVERNO

É um conto de inverno
Que o cego crepúsculo de neve transporta sobre os lagos
E os flutuantes campos da fazenda na taça dos vales,
Deslizando tranquilo entre os flocos agarrados com a mão,
Sobre o pálido bafio do rebanho junto à vela furtiva,

E as estrelas que caem frias,
E o cheiro do feno em meio à neve, e a distante coruja
Que adverte entre os apriscos e o gélido refúgio
Agarrado à fumaça branco-ovelha da chaminé da estância
Nos vales cruzados pelo rio onde a história é contada.

Outrora, quando o mundo envelheceu
Numa estrela de fé pura como o pão que boiava sem destino,
Como o alimento e as chamas da neve, um homem desenrolou
Os pergaminhos de fogo que ardiam em sua cabeça e em seu coração
Rasgados e esquecidos numa casa sobre uma dobra da campina.

E ardendo então
Em sua ilha flamejante cingida pela neve alada
E as esterqueiras brancas como a lã e os poleiros das galinhas
Que dormiam enregeladas até que a chama da aurora
Penteasse os pátios encapotados e os homens da manhã

Tropeçassem nas enxadas,
E o rebanho espreguiçasse, e o gato arisco perseguisse o rato,
E os pássaros eriçados saltassem para caçar, e as suaves
Ordenhadoras arrastassem seus tamancos sobre o céu desmoronado,
E toda a fazenda despertasse em seus brancos afazeres,

Ele se ajoelhou, chorou, rezou,
Junto ao assador e à caneca escura sob a faiscante luz da lenha
E à xícara e ao pão partido entre as sombras bailarinas,
Na casa abafada, no decorrer da noite,
À beira do amor, apreensivo e atraiçoado.

Ajoelhou-se sobre as pedras frias,
Chorou desde a crista da dor, rezou ao céu nublado
Para que a fome fosse embora uivando sobre alvos ossos nus
Além das estátuas dos estábulos e das pocilgas com tetos celestes
E do cristal da lagoa dos patos e dos ofuscantes currais solitários

Até o lugar das orações
E das chamas, onde pudesse vagar sob a nuvem
De seu amor cego pela neve e precipitar-se para as brancas tocas.
Sua miséria desnuda o golpeava e, arqueado, ele uivava
Embora som algum flutuasse no ar enrugado em sua mão

A não ser o vento que excitava
A fome dos pássaros nos campos do pão, da água, lançados
Nos altos trigais e a colheita a derreter-se em suas línguas.
E sua anónima miséria o enlaçava e ele ardia extraviado
Quando, frio como a neve, tinha de correr entre os vales cruzados

Pelos rios que desaguam na noite,
E afogar-se nos torvelinhos de sua miséria, e estender-se enrolado,
Agarrado ao centro desde sempre desejado do branco
Berço desumano e do leito nupcial eternamente procurado
Pelo crente perdido e o proscrito expurgado da luz.

Liberta-o, gritava,
Perdendo-o de todo no amor, e arroja a sua miséria
Nua e solitária na engolfante noiva
Para que ela nunca germine nos campos da branca semente
Ou floresça escarranchada na carne agonizante.

Escuta. Cantam os trovadores
Nas aldeias mortas. O rouxinol,
Poeira nos bosques sepultos, voa com os órgãos de suas asas
E soletra o seu canto de inverno aos ventos dos mortos.
A voz da poeira líquida que vem das fontes extintas

Está falando. O córrego seco
Salta com balidos e latidos aquáticos. O orvalho repica
Nas folhas trituradas e nos reflexos que há muito já não brilham
Da paróquia de neve. As bocas entalhadas na rocha são
cordas tangidas pelo vento.
O tempo canta por entre as obscuras campânulas mortas. Escuta.

Foi um som ou certa mão
Que abriu de par em par a tenebrosa porta na terra de outrora
E lá fora, sobre o pão do solo,
Uma ave se ergueu radiante como uma noiva em chamas,
Uma ave amanheceu, e seu peito se emplumou de neve e escarlate.

Olha. E os bailarinos se movem
Sobre os mortos, a neve se vestiu de verde, liberta ao luar
Com uma revoada de pombos. Exultantes, os cavalos de cascos solenes,
Centauros mortos, regressam e percorrem os alvos pastos alagados
Nas fazendas dos pássaros. O carvalho morto sai em busca do amor.

Os membros esculpidos na rocha
Saltam como ao som das trombetas. A caligrafia das velhas folhas
Está dançando. Os traços da idade sobre a pedra se entrelaçam num rebanho.
A voz de harpa da poeira das águas se desgarra de uma dobra das campinas.
Em busca do amor, alça seu voo a ave de outrora. Olha.

E as asas selvagens se elevaram
Sobre a sua cabeça enrugada, e a doce voz das plumas
Esvoaçou pela casa como se o pássaro entoasse louvores
E todos os elementos da lenta queda se rejubilassem
Porque um homem solitário se ajoelhara na taça dos vales,

Sob o manto, em sossego,
Junto ao assador e à caneca escura sob a faiscante luz da lenha,
E o céu dos pássaros com a voz emplumada o erguia ao sortilégio
E ele corria como o vento atrás do voo em chamas
Para além dos celeiros sem luz e dos currais da fazenda em calma.

Nos pólos do ano
Quando os melros morriam como sacerdotes nas sebes embuçadas
E as distantes colinas tangenciavam o tecido dos condados,
Sob as árvores de uma só folha corria um espantalho de neve,
Precipitando-se por entre os torvelinhos das moitas esgalhadas como cervos,

Andrajos e orações caíam sobre
As colinas ajoelhadas e ecoavam nos lagos adormecidos,
Perdidos a noite inteira e a vagar por muito tempo no despertar
Da ave através dos tempos, das terras e dos flocos de neve.
Escuta e olha por onde ela navega no mar agitado pêlos gansos,

O céu, o pássaro, a noiva,
A nuvem, a miséria, as estrelas fincadas no azul, o júbilo
Para além dos campos semeados e o tempo escarranchado na carne agonizante,
E os céus, o céu, a tumba, a ardente pia batismal.
Na terra que já fora, a porta de sua morte se abriu de par em par

E o pássaro desceu
Numa colina branca como o pão sobre a concha da fazenda
E os lagos e os campos flutuantes e os vales cruzados pelo rio
Onde ele rezava para alcançar o derradeiro prejuízo
E a casa das preces e do fogo, já terminado o conto.

A dança se extingue
Na brancura que já não reverdece, e, morto o trovador,
Aflora o canto nas aldeias de desejos calçados pela neve
Que outrora entalharam as silhuetas dos pássaros no pão profundo
E fizeram deslizar as formas dos peixes voadores sobre os lagos de cristal

Degolou-se o ritual
Do rouxinol e do centauro morto. As fontes voltam a secar.
Os traços da idade dormem na pedra até que a aurora se anuncie.
Jaz o júbilo. O tempo sepulta o clima da primavera
Que retinha e saltava com o fóssil e o orvalho renascido.

Porque a ave se deitara
Num coro de asas, como se estivesse morta ou adormecida,
E as asas se movessem em surdina e ele se sentisse louvado e casado,
E por entre as coxas da noiva envolvente,
A mulher com seus seios e o pássaro de crista celestial,

Foi ele enfim derrubado Ardendo no leito nupcial do amor,
No torvelinho do centro desejado, nas dobras
Do paraíso, no botão rodopiante do universo.
E ela se ergueu com ele florescendo em sua neve derretida.



Poema em seu aniversário

No sol cor semente de mostarda
Junto ao caudaloso rio em declive e o ziguezague do mar
Onde correm os corvos-marinhos,
Em sua casa sobre estacas, entre os bicos
E o palavrório dos pássaros
Nesse dia como grão de areia na tumba arqueada da baía,
Ele celebra e desdenha
Seus trinta e cinco anos de despojos que o vento amadureceu;
As garças se aguçam e chuçam.
Abaixo e à sua volta fluem
Os linguados, as gaivotas, em suas frias e agônicas trilhas,
Cumprindo o que disseram,
Ruidosos maçaricos nas ondas apinhadas de moréias
Mourejam em seus caminhos para a morte,
E o poeta no quarto de esguia língua ferina,
Que tange o sino de seu aniversário,
Se esfalfa em direção à tocaia de suas chagas;
As garças, agulhas em riste, o abençoam.
No outono dos cardos,
Ele canta para a angústia; os tentilhões voam
Entre os rastros afiados dos falcões
Num céu de rapina; deslizam peixes miúdos
Pelas vielas e as conchas de cidades
Afogadas de barcos até os pastos de lontras submarinas.
Em sua oblíqua casa de suplícios
E nas puídas espirais de seu ofício, ele percebe
As garças que caminham em seu sudário.
A túnica infindável do rio
De vairões se tece ao redor de suas preces;
E lá longe, no mar, ele conhece
Aquele que escraviza o seu fim genuflexo
Sob uma nuvem de serpentes,
Mergulham golfinhos na poeira dos naufrágios,
As rugosas focas arremetem
Para matar e sua própria maré untada de sangue
Resvala suavemente em sua boca macia.
Num silêncio de onda, cavernoso
E oscilante, choram os alvos dobres do ângelus.
Trinta e cinco sinos brandiram seu repique
Sobre o crânio e a cicatriz onde jazem seus amores em ruínas,
Guiados por estrelas cadentes.
E o amanhã soluça numa jaula cega
Que o terror enfurecido há de isolar
Até que os grilhões se quebrem sob martelos em chamas
E o amor dilacere as trevas
E em liberdade ele se perca
Na famosa luz desconhecida do grande
E fabuloso Deus amado.
A treva é um caminho e a luz um lugar,
O céu que nunca existiu
Nem existirá jamais é sempre verdadeiro,
E, nesse espinhoso vazio,
Farto de amoras em seus bosques,
Os mortos crescem para o Seu júbilo.
Ali, desnudo, ele erraria
Com os espíritos da baía que se curva em ferradura
Ou os mortos na praia de estrelas,
Com a medula das águias, as raízes das baleias
E a fúrcula dos gansos selvagens,
Com o Deus abençoado que jamais nasceu e o Seu Espírito,
E com cada alma Seu sacerdote,
Enganada e cantante na jovem dobra do Céu,
Junto à trêmula paz das nuvens.
Mas a treva é um longo caminho.
Ele, sobre a terra da noite, a sós
Com tudo o que vive, reza,
Ele, consciente de que o vento faiscante há de soprar,
Lançando os ossos para além das colinas,
E que as pedras feridas à foice hão de sangrar, e as últimas
Águas despedaçadas pelo ódio hão de arremessar
Os mastros e os peixes às silenciosas estrelas vivas,
Sem nenhuma fé até Aquele
Que é a luz do velho e aéreo
Céu, onde as almas crescem selvagens
Como cavalos na espuma:
Oh, enluta-me na metade da vida junto às relíquias
E aos juramentos das garças-druidas
Durante a viagem que terei de fazer até a ruína,
Entre barcos desvalidos e encalhados;
Ainda que eu grite, todavia, com a língua quase a cair,
E conte em voz alta as minhas chagas:
Quatro são os elementos e cinco
Os sentidos, e o homem uma alma enamorada
Que se enreda através dessa lama rodopiante
Até chegar ao seu reino frio, coroado de sinos
E de enluaradas cúpulas perdidas,
E o mar que oculta suas secretas criaturas
Nas profundezas de seus negros ossos abjetos,
Acalanto de astros na carne calcária do mar,
E essa Suprema bênção derradeira,
Pois quanto mais caminho
Para a morte, um homem com os cascos gretados,
Mais sonoro o sol floresce
E o mar confuso e esquartejado exulta;
E cada onda no caminho
E cada vendaval que enfrento, e todo o mundo então,
Com a fé mais triunfante
Do que nunca desde que se proclamou o mundo,
Faz girar sua manhã de louvores,
Ouço as colinas ondulantes
Inflar-se de cotovias e reverdecer no outono
Turvo de amoras, e as cotovias do orvalho cantam
Mais alto que essa primavera trovejante
E as ferozes ilhas de alma humana
Quanto mais próximas dos anjos flutuam!
Oh, seus olhos tornam-se então mais sagrados
E meus homens cintilantes não estão sós
Enquanto eu navego para a morte.

In Dylan Thomas / Poemas Reunidos (1934/1953),
com tradução de Ivan Junqueira, publicado pela José Olympo Editora

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