Recebi a carta às 12h23.
Almocei um ótimo pad
thai, encomendado do restaurante tailandês da esquina. Caro, mas que
diferença isso faz?
O programa começou há dois anos, na Holanda. Nos noticiários
e meios de informação, foi fragoroso o debate. A aceitação venceu: que havia
mais a fazer?
Escrevi vinte e sete mensagens, para filhos, aproximações de
amigos, uma mulher a quem cortejava, mais por distração – para ambos.
Claro, era previsível a situação que agora aflorou junto a
este encanecido chão do sol nascente. Já desde finais do pregresso, caído
século se percebia com algum agravo a diminuição do crescimento vegetativo em
muitos países. Alguns procuraram incentivar, até financeiramente, a que seus
cidadãos procriassem. Outros tantos viram na imigração a solução paliativa para
seu problema estato-existencial.
Por tudo se pagou um preço, e o tempo, as décadas seguintes,
provaram que o paliativo era isso: alongamento tecido em pó.
No caso deste país insular, a imigração nunca foi solução que
valesse de muito. Tínhamos descendentes da diáspora de nosso povo que vinham em
busca de trabalho – mas muitos voltavam para seus países de origem. Brasileiros,
norte americanos, filipinos.
A questão foi defendida em livro bombástico, coletivo, por um
grupo envolvendo alguns dos maiores filósofos de nosso tempo. Aventadas razões
se espraiavam sobre as sociedades em debate, procurando equalizar os
descontentes.
Vou até a antiga loja de charutos. É a única de Osaka, e uma
das oito ou nove ainda presentes no país, a esta altura. Compro um charuto que
sempre cobicei, se é que um fumante esporádico pode ser um cobiçador. Embrulho
o artefato, assino o termo de segurança, em que afirmo que não irei consumir o
“produto” em locais públicos – crime grave.
Em casa, sorvo o amargor da peça. Ligo o monitor, releio a
carta do governo. Há algo de histórico nisso, ao menos – sou um dos 30
primeiros cidadãos do país a receber “A Carta”.
É estranho que um governo convide seus cidadãos para morrer.
Em tempos de guerra, era comum. Nosso Império... Mas, nesses tempos de paz, de
ruína econômica, nesses tempos em que a população economicamente ativa é tão
menor que o número de aposentados, foi a saída que a civilização, já em meados
do vigésimo primeiro século, encontrou para ajustar as coisas.
O convite, muito formal, principiava agradecendo os serviços
prestados à pátria e à sociedade. Avançava, sem estender-se em demasia, dando
conta das dificuldades, por todos conhecidas, que o maquinário previdenciário
atravessava. Tergiversava sobre sacrifício e honra, esses gêmeos siameses. Terminava
com uma despedida.
Acabei o charuto, de sabor bem pior do que eu há tanto
imaginava. Uma metáfora disso tudo. Fui até o novo edifício governamental, erigido
especialmente para isso: eutanásia coletiva de idosos e inválidos para a
economia.
Nossa cultura é conhecida e construída sobre pilares de
honra. Se toda uma sociedade milenar acredita que você deve morrer – até mesmo
alguns de seus parentes, pessoas a quem você alimentou – que saída honrosa pode
haver senão sujeitar-se em prol do bem comum?
Enquanto me deito na cadeira e aguardo o robô que aplicará a
injeção letal, ouço da senhora ao lado, que sorria sem parar enquanto falava,
que estávamos salvando nosso país, estávamos salvando a economia do Japão. Era
bom que os mais velhos deixassem a vida e o peso estatal representado por suas
aposentadorias. Era um sacrifício de “honra”.
Pensar que parte da imprensa, o que restara de humana nela,
apelidara tal recurso de Endlösung der Judenfrage, “A Solução Final”,
como aplicada por Hitler contra os judeus.
Fechei os olhos, enquanto ela continuava a sorrir e
cacarejar. Segundos depois, ainda sem abrir os olhos, pude ouvir os rolamentos
do robô deslizando pelo piso impecável. Como um samurai que meu povo desejava
que eu fosse, não esbocei reação alguma quando senti a gélida penetração da
agulha.
Sammis Reachers