sábado, 27 de março de 2021

CARTAS E RETORNOS, novo livro de Sammis Reachers

 



O seminal poeta curitibano Paulo Leminski é autor, dentre outros, do livro Distraídos Venceremos. Tal título ou expressão singular me veio à memória ao refletir sobre o volume que o leitor agora tem em mãos: Foi sem perceber ou dar-me conta, assim, distraidamente, que cheguei a este meu décimo livro de poesias. A surpresa deve-se ao fato de que sempre consegui maior prazer atuando como antologista e editor do trabalho alheio do que focalizando minha produção autoral, que correu como que por fora, nesses pouco mais de vinte anos de atividade literária.

Neste Cartas e Retornos, o leitor perceberá que busquei construir fundamentalmente um livro de adjetivações, frutos – ou sementes? – de uma poesia onírico-descritiva, arte/artesanato sequencial de definições poéticas sobre temas ou objetos variados, os “destinatários” aos quais as cartas fazem referência.

Nessa busca de comunicar a magnificação de cada destinatário, não apenas imagens, mas, fazendo jus à licença que pesa sobre os poetas, palavras precisaram ser criadas, seja em neologismo, seja numa das muitas outras formas de parto de palavras que nossa língua conhece e experimenta. Um experimentalismo não de sabor insosso como por vezes vemos sendo praticado mas, sim, uma prazerosa peregrinação em busca do surpreendente – amparada em palavras e expressões que o suportem.

Desde muito jovem tomei para mim uma assertiva do filósofo brasileiro Vilém Flusser: “A poesia aumenta o campo do pensável”. Deste esforço de expandir percepções, de aumentar as formas de bombear de um coração com o sangue dos signos, jamais pude me libertar, malgrado minhas humildes possibilidades criativas.

Às mais de cinquenta Cartas, diversas, como dito, em tema ou objeto, seguem-se alguns Retornos: Poemas de maior hermetismo, onde o jogo de luzes e sombras (chiaroscuro) ganha maiores ares. O livro se conclui com poemas outros, de variada temática e envergadura.

Que este humilde livro possa, com sua carga onírica e algo perturbadora, balançar alegremente suas percepções e empurrá-las, assim, como quem não quer nada, para a expansão.

O livro impresso possui 110 páginas, e está disponível ao preço de R$ 22,00, JÁ com o valor do frete por Correios incluído. 

Para adquirir o seu, escreva para o e-mail:  sreachers@gmail.com

E mais, o PDF do livro é GRATUITO. Para baixar seu exemplar, CLIQUE AQUI.


Alguns poemas do livro:


Carta à Biblioteca

 

Hangar

Antropopeia

 

Sala de se estar

Lar dos abraços perenais

Casa de Deus quando de passagem

 

Sapiarquia

         Vestido de vestígios

                      De Adão a este dia

 

Estratificada usina de desestratificar

O oceano das coisas

 

Baralho de cismas

             Tarô triliardário

Cartório de máscaras

Mausoléu-berçário e

Fabulário e cais de tudo

 

“Dispensa das almas”,

            Ordenha das almas

                                  Casa de máquinas da alma

 

                            Avesso da caverna platônica,

                                                       Lócus de resistência:

                                            (Toda biblioteca é uma) Trincheira

 

Abraçai toda a esperança

Vós que entrais

 


Carta à Chuva

 

Coração do ciclo

escada de Jacó

sagrado elo dos elos da atmosfera

 

maré vertical

megaérea foz

 

vivificadora dos que vivem

lânguida metralha

 

terapia de tudo

imperatriz perfuratriz

perfuumidificadora

 

poliárquica beijoqueira

reordenadora dos relevos

facilitadora dos aconchegos

 

debeladora das chamas da morte

 

apressadora dos desavisados

festim dos pueris, dos pu(e)rificados

de idade ou espírito

 

cascata multitudinária

catarse líquida

 

não aparte de nós

sua presença transitiva

nem sobeje

sobre nossas ruas impermeabilizadas

 


Carta à Cidade Engrandecida

 

triturandário

labirintopia

 

indústria encapatória

Saloon dos Emancipados

grande cabeça-de-ponte-para-trás, retorno ao útero

caixa rotatória

 

jogo do fasto e do nefasto

skyline das mais altas

                                   empáfias

veneno de rato pra finalizar os pequenos

                                 marsupiais

chamados de empatia

 

ultraurbe

gestante duma gravidez de risco

cujo parto nunca acontece

mas todo dia quase

 

o dia todo um susto

saciado a pão e circo e cocaína

 

(r)efervescência, prostituição

do espaço em esmerada arquitetura

prostituição dos últimos,

teus pilares:

quebra sistêmica da cadeia fraternal

ilha fiscal

solidão arquitetada

fogo frio

heterotumba de LED

dos mortos-vivos

despátria púnica



Carta à Lusofonia (e à Língua Portuguesa)

 

Nau Saudade

Sóror Encantamento

por mares nunca dantes navegados,

nos conquistastes: eis-nos,

varões e varoas assinalados,

vassalos teus, por ti soprados

ó bruma diaspórica e multitudinária

 

Lubrica nau, rubra e rotunda,

fremente e hiper étnica,

alonjada dos de sangue frio e caucasio-torpe

desnuda das frescuras de francos e teutões

de ingleses e mais vis quetais

 

Honramos teu

código circunvalioso

barroco, rococó, léxico de alumbrar

renitente emissária da cruz

derradeira vindima do Latim, flor

última do Lácio, inculta a despudorada

transcontinental oráculo camoniano,

sibila de um panteão de párias,

silabário da paixão, pacto

firmado sob o sangue dos morfemas

berçário de crioulos e pidgins*

 

marinhagem, malandragem, madrigal

prosódia de abraçar

 

ônibus, autocarro, machimbombo, toca-toca, otocarro, microlete*

veículo de 250 milhões de almas, sob cujo conjunto

jamais o sol se põe


*Designação dos ônibus respectivamente em Brasil, Portugal, Angola/Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau/São Tomé e Príncipe, e Timor Leste.



segunda-feira, 15 de março de 2021

Pai Nosso, Mãe Nossa – Um texto de Rubem Alves

 


Pai Nosso... Mãe Nossa...  


Pai... Mãe... de olhos mansos,

sei que estás invisível em todas as coisas.

Que o teu nome me seja doce, a alegria do meu mundo.

Traze-nos as coisas boas em que tens prazer:

o jardim as fontes,

as crianças,

o pão e o vinho,

os gestos temos, as mãos desarmadas,

os corpos abraçados...

Sei que desejas dar-me o meu desejo mais fundo,

desejo cujo nome esqueci... mas tu não esqueces nunca.

Realiza pois o teu desejo para que eu possa rir.

Que o teu desejo se realize em nosso mundo,

da mesma forma como ele pulsa em ti.

Concede-nos contentamento nas alegrias de hoje:

o pão, a água, o sono...

Que sejamos livres da ansiedade.

Que nossos olhos sejam tão mansos para com os outros

como os teus o são para conosco.

Porque,

se formos ferozes,

não poderemos acolhera tua bondade.

E ajuda-nos

para que não sejamos enganados pelos desejos maus.

E livra-nos

daquele que carrega a morte dentro dos próprios olhos.

Amém.


Do livro Transparências da Eternidade (Ed. Verus, 2002)


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