Deixou-nos um grande, enorme, dos maiores que
a Língua e a Literatura Portuguesa, e mundial, já tiveram. Poesia muito tensa,
de inesperadas associações, de encantação na pura viagem das palavras, umas com
as outras. Lê-lo é aprender a amar, a descobrir a surpresa que é a poesia.
Até sempre, ARR.
UMA VOZ
Quero pertencer à abóbada escura como um
amante inerme
e ser o alento do silêncio sobre os ombros
das nuvens.
Quero aderir à sombra das palavras da
folhagem
e compreender a terra na selvagem seda do
desejo.
UNE VOIX
Je veux appartenir à la voûte obscure comme
uns amant désarmé
devenir le souffle du silence sur les épaules
des nuages.
Je veux adhérer à l'ombre des paroles du
feuillage
et comprendre la terre dans la soie farouche
du désir
(trad. de Michel Chandeigne © Gallimard)
DEUS VÊ TALVEZ COM AS PÁLPEBRAS DESCIDAS
Deus vê talvez com as pálpebras descidas
e assim vê o nosso espírito como um halo ténue
ou uma sombra que estremece mas contínuamente se
levanta
É ele que sustenta a nossa integridade vertical
com a sua imóvel respiração incessante
Que dificil é ser o alvo desta atenção divina
como se fôssemos apenas o aro vazio de um puro
abandono
Mas é nesta entrega passiva que nós somos
mais do que órfãos de um útero materno
e nos erguemos à transparente pedra
da nossa renovada identidade
Só nesse cimo branco renascemos livres
porque nos entregamos à silenciosa respiração
do ser divino que atravessa o nosso sono
e faz resplandecer a nossa incerta ignorância
ATÉ ONDE VÓS ESTAIS
Oh, presenças amigas, ó momento
em que alongo o braço e toco em cheio os
rostos
A minha língua abriu-se para dizer a
face
do vento que percorre as vossas vidas.
Estou perante a noite mais profunda,
a delicada noite das raízes: vejo
rostos
vejo os sinais e os suores das vossas
vidas.
Atravesso árvores submersas, ruas
obscuras,
poços de água verde, e vou convosco
ter,
minhas faces lívidas, mãe, amigos,
amores.
A terra que penetro é este chão de
terra
com as raízes feridas, com os ferozes
pulsos,
A vertente que desço é uma subida às vossas
vidas.
NÃO POSSO ADIAR O AMOR
Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas
Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio
Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as
costas
e a aurora indecisa demore.
não posso adiar para outro século a minha
vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação.
Não posso adiar o coração.
ESCREVO-TE COM O FOGO E A ÁGUA
Escrevo-te com o fogo e a água. Escrevo-te
no sossego feliz das folhas e das sombras.
Escrevo-te quando o saber é sabor, quando
tudo é surpresa.
Vejo o rosto escuro da terra em confins
indolentes.
Estou perto e estou longe num planeta imenso
e verde.
O que procuro é um coração pequeno, um animal
perfeito e suave. Um fruto repousado,
uma forma que não nasceu, um torso
ensanguentado,
uma pergunta que não ouvi no inanimado,
um arabesco talvez de mágica leveza.
Quem ignora o sulco entre a sombra e a
espuma?
Apaga-se um planeta, acende-se uma árvore.
As colinas inclinam-se na embriaguez dos
barcos.
O vento abriu-me os olhos, vi.
UM CORPO QUE SE AMA
Um corpo que se ama é uma nascente viva
que de cada poro irrompe irreprimivel
e toda a sua violência é a energia ardente
que gerou o universo e a fantasia dos deuses.
Tudo num corpo que se ama é adorável
na integridade viva de um mistério
na evidência assombrosa da beleza
que se nos oferece inteiramente nua.
Não há visão mais lúcida do que a do desejo
e só para ela a nudez é sagrada
como uma torrente vertiginosa ou uma oferenda solar.
Esse olhar vê-o inteiro na perfeição terrestre.