Pelos Rios ao Sabor da Fruta é um convite inusitado: Um convite a juntarmo-nos, como viajores agregados ou clandestinos, numa viagem que atravessa, ao ritmo das estradas de chão e d'água, o Brasil longitudinalmente, desde o Acre até o Ceará.
Esta aprazível viagem de oeste a leste do Brasil é empreendida pela autora, Eliana de Castela, acompanhada por seu companheiro Jorge de Oliveira (Mané do Café). Ambos artistas e escritores, pesquisadores das coisas da Terra e do homem.
Em busca de sua(s) ancestralidade(s), a autora - filha de um cearense que, assim como tantos conterrâneos, migrou para o Acre nos tempos áureos da borracha - vai tecendo impressões enquanto absorve paisagens, cria ou vivifica amizades, e experimenta as frutas de cada terra por que passa. Não se trata aqui de um romancear a realidade: As mazelas desses muitos Brasis são percebidas e discutidas pela autora, ciente de seu papel como observadora crítica e ativa das realidades com que se depara.
O livro, ilustrado, possui 130 páginas e foi publicado pela prestigiosa editora portuguesa Chiado. Para os que desejarem adquirir, podem acessar o site da editora, aqui.
Aqui um dos capítulos do livro,
O Cariri que nos habita
"Só deixo o meu Carirí,
no último pau de arara.
Enquanto a minha vaquinha,
Tiver o couro e o osso,
e puder com o chocalho,
Pendurado no pescoço,
Eu vou ficando por aqui..."
A música, de José Guimarães, Corumba e Venâncio, que foi
cantada por Luiz Gonzaga e Fagner, entre outros grandes cantores da música
nordestina, que trago um pequeno trecho, abrindo esse capítulo, faz parte do
meu imaginário infantil. A música deu asas ao pensamento, que ficava como dunas
ao sabor do vento, fazendo e desfazendo imagens sobre o Nordeste brasileiro,
especialmente o Ceará, antes de eu conhecer aquele pedaço do Brasil.
Assim como a música, também os livros, O Quinze, de Raquel de
Queiroz e Vidas Secas, de Graciliano Ramos, colaboraram com o sentimento de
carinho para com aquela região. É a arte e a literatura dando beleza na
representação do sofrimento humano. Tais obras, a qualquer leitor, mesmo aquele
que nunca tenha pisado o sertão, faz sentir a aridez do ambiente, o sofrimento
e o apego dos sertanejos ao lugar, bem como, desperta curiosidade de desvendar
quais são os motivos que fazem o sertanejo ali permanecer em meio a tanto
sofrimento.
Completando a lista dos escritores que construíram o meu
imaginário sobre o sertão nordestino, destaco o poeta cearense, Fernando cie
Castela, que por muitos dias de nossa infância — minha e de meus irmãos —
ilustrou com seus poemas c causos, a vida das famílias, na peleja com a seca, a
roça que não vinga e o gado que perece. Assim como as histórias das longas
caminhadas pela caatinga, de homens sem esperança, com seus filhos desfigurados
pela fome, de mulheres que têm os rostos tão áridos, quanto as gretas de
concreção que se formam no chão daquelas terras. É a chuva, um dos motes da
poesia matuta, de Fernando de Castela, que nos faz entender um pouquinho
daquele lugar:
"...Tá chuvendo em minha terra!
Chove no meu Ceará...
Meu., irmão arretirante
qui fugira do sertão
tão vortando em arvoroço.
Festa de viola e sanfona
dentro dos seus coração.
Tá chuvendo em minha terra,
tá chuvendo no sertão..."
As pessoas resistem à espera da chuva, enganam-se com o
desejo de uma nova aurora, partem, mas afirmam que retornarão para casa se a
chuva cair... Quimeras, apenas quimeras. Elas não deixam o seu cantinho,
enquanto há um fio de esperança. Mas por que é assim? Essa intrigante pergunta
que muitos devem fazer e que eu me fiz sempre, foi encontrando respostas ao
longo da vida e de forma mais aprofundada, quando visitei o Cariri. Mas nem
tudo resposta e outras perguntas surgem.
Aquele lugar árido, que a plantação não vinga, que a criação
morre, que as crianças choram de fome, tem o mesmo encanto, riqueza e beleza,
para o sertanejo, assim como tem para as pessoas que nasceram e vivem, num
lugar de fartura. A nossa aldeia, seja no Cariri, seja na Amazônia ou no
litoral do Ceará, é o lugar que alimenta os sonhos e que convida os filhos a
ficarem. Para quem é do Cariri, é lá que se adquire o sentido de pertencimento
e de identidade com aquele todo, seja o prazer ou a dor. São estes alguns dos
fatores, não determinantes, mas hierarquicamente superiores, para a decisão de
não partir.
Ao longo da viagem, outros momentos e questionamentos
fortaleceram a compreensão de pertencimentos, como aconteceu quando alguém me
perguntou — o que tem de interessante no Acre para se visitar? Qual é o
atrativo turístico que convida os visitantes? Parei por um instante, depois de
pensar na família e nas pessoas amigas, rapidamente o meu pensamento percorreu
florestas, que tantas vezes admirei e que me inspiraram a escrever poemas,
igarapés que me refrescaram nas horas de lazer, de tantos fins de semanas, o
rio da minha aldeia, hoje assoreado e poluído, mas foi dele, antes de tanta
poluição, que emergiram ideias, para o trabalho e para o lazer.
Continuei listando mentalmente, as incontáveis horas de banhos
no rio, alheia à preocupação da minha mãe e dos riscos prováveis, movida pela
ânsia de brincar, juntamente com outras crianças, as trocas, pois as
brincadeiras das crianças dão sentido ao rio. As praias do centro da cidade,
hoje não são mais apropriadas ao banho, mas foi nelas que eu brinquei, antes de
serem descoloridas pelos esgotos. Quando olho para as praias hoje, vejo o
passado e idealizo o futuro. A infinidade de sentidos vai além do rio, está nas
comidas, nas praças, ruas... Tudo do lugar, é a referência e parâmetro, até
mesmo para me sentir em casa, em qualquer outro lugar do mundo, o que pode
parecer contraditório. É por isso, que o nordestino só deixa o seu "Cariri
no último pau de arara".
A região do Cariri, assim como muitas outras por onde
passamos, tem denominação de origem indígena. O povo Kariri ou Quiriri, embora
tenha resistido e lutado contra os invasores, foi escravizado, roubado e morto.
Seus territórios foram ocupados pelas cidades, atualmente com várias
denominações indígenas.
A região do Cariri abriga um importante sítio arqueológico,
onde se encontra soterrada grande parte da história dos juntamente com a
cerâmica e outros utensílios. Muitas dessas peças de cerâmica extraídas cio
sítio arqueológico estão expostas nos centros culturais, constituindo
importante atrativo turístico. Quanta contradição!
O Cariri foi o sítio por nós escolhido para sentir um pouco
da vida do sertão do Ceará. Mas a região abrange também, alguns municípios de
Pernambuco, Paraíba e Piauí. Dos nove municípios do Ceará que integram a Região
Metropolitana do Cariri, visitamos apenas quatro cidades. O Crato foi o local
escolhido para pouso, face à centralidade em relação às demais cidades
visitadas - Juazeiro do Norte, Nova Olinda e Santana do Cariri onde fatos
interessantes ilustraram nossos dias, justificando o registro.
Andar no rastro dos antepassados, que vieram do Ceará para o
Acre, foi como se eu tivesse ido à "escavação arqueológica" sem
instrumentos adequados, por não dispor de referências, na procura de vestígios
que identificassem minhas ligações com eles, foi algo quixotesco. Não elaborei
nenhum projeto de pesquisa, nem sequer um roteiro para isso, tudo foi feito no
campo das elucubrações. O instrumento investigativo, que considerei uma
brincadeira foi a percepção, os sentidos aguçados, para perceber qualquer coisa
que remetesse ao que ouvi quando criança. Comecei então, a estabelecer urna
relação das frutas com as pessoas e os fatos.
O meu pai dizia que no quintal da sua casa, quando ele era
criança, tinha frutas que ele só poderia comer se "roubasse" e citava
as frutas. Já a minha mãe contava que ela e os seus irmãos brincavam com as
melancias, na praia do rio Taco, jogando urna contra outra para parti-la, comer
e até desperdiçar. Minha mãe viveu em grande fartura alimentar, sempre deu
destaque a isso, diferente da vida do meu pai, que sempre deu destaque à fome.
Seriguela, sapoti, umbu, umbu-cajá, tamarindo... É como se eu
quisesse ao comer a fruta, fazer uma viagem ao passado através do paladar,
desvendar os mistérios e destruir os hiatos deixados pelo tempo, revelando
histórias não contadas. Tudo ao sabor das frutas, como as beberagens e o rapé
dos pajés, trazer à luz, o que é preciso saber para a vida.
Mas para que isso tudo? Talvez porque a busca pela
ancestralidade seja a tentativa de conhecer a nós próprios. Porém o caminho da
busca ancestral, às vezes é temeroso de ser inútil, de continuar
incompreendido, de poder nos levar a um passado mais profundo, no momento que
não encontramos as respostas. O melhor é desfazer as dúvidas. porque o caminho
do conhecimento é hipotético. As reflexões surgiram quando cheguei ao Ceará,
mas eu apenas segui, elas foram aprofundadas ao escrever.