“Romance: mais conhecimento que
entretenimento” – Massaud Moisés
A interpretação (de um romance ou de um
poema) é aberta, ensina Yves Bonnefoy.
Por isso é possível metermos no último romance de José Brissos-Lino uma sombra
tutelar, dessas que fazem bem.
A sugestão da visão não é assim tão ténue, o
locus da narrativa proporciona visionamentos claros pela sua contextualização
das personagens no espaço da chamada Serra Mãe, assim como o narrema (o enunciado
narrativo) nos coloca num acontecimento germinal no tempo: o ciclone e o dia 15
de Fevereiro de 1941 e, desde logo, numa linha poética: “O Sado ficou acanhado,
macambúzio e estranhamente quieto” ( pág. 9).
É na amplitude desse espaço ( Serra, Rio e
Mar ) que a diegese coloca o leitor do romance, sobretudo na serra da Arrábida.
“O que
lhe valeu foi um velho eremita que por lá encontrou (…) porque se recolhera à
Serra Mãe.” ( pág. 21)
Frei Agostinho da Cruz não é citado por
acaso, é por causa da paz interior. Sim, Agostinho Pimenta (Ponte da Barca,
1540 - Setúbal, 1619), é uma reminiscência de outros tempos que resolve, no
romance, a solidão do personagem designado por “Algarvio”, solitude ao mesmo tempo acompanhada espiritualmente.
“O Frei Agostinho da Cruz, que lhe passaria
talvez alguma paz interior de que tanto necessitava” ( pág. 20)
Acerca desta relação com a quietude da
natureza, numa perspectiva do espiritual, José Régio caracterizou a poética
final do Frei, depois das poesias profanas :
“ Não cantou senão do que lhe inspirava a contemplação da natureza, da condição
humana, e dos mistérios de Deus” (Líricas Portuguesas, Primeira Série, Portugália,
1968, pág. 169 )
Este frade “arrábido” – como lhe chamou outro
antologista, o poeta Cabral do Nascimento -, que nasceu junto do “Lima
saudoso”, trocou o vale colorido do rio minhoto pelas alturas da serra mãe de
onde divisava o mar Atlântico, desde o Convento franciscano da Arrábida.
Nas antologias disponíveis, sublinha-se a sua
poesia religiosa, mesmo aquela onde o discurso aponta para o Eu poético, que é
intimista desnudando a alma de Agostinho, “Comecei
a seguir o vicioso/ Na Vida” até à conversão e à clausura na Arrábida, consciente
do favor divino: “Enquanto me deixais
andar na terra, / Do Céu me deixareis andar mais perto”
A referência a Frei Agostinho (no capítulo 2: “O Velho Eremita”),
enquanto religioso em clausura, mas livre na natureza da serra, com seus sons
campestres a quebrarem o “silêncio sagrado”, apanhador desses ruídos de vida
enquanto poeta, vem dar realismo ao locus
a que o romancista nos conduz, para dar força a um personagem que troca as
fainas do mar pelas da terra.
De resto, o recurso à história do convento
franciscano arrábido, às suas ruínas no século passado, e à poesia inspiradora
de poesia do velho poeta-frade, dá ao leitor a possibilidade de viver uma
solidão acompanhada, em plena serra da Arrábida. Não nos situa apenas num
universo temporal contabilizável, no ingrediente tempo do romance, a década de
40, o tempo da II Guerra Mundial ( “o
mundo estava em guerra, uma guerra estúpida e louca”, pág. 20 ) mas na metafísica do tempo psicológico,
colocando-nos no interior de cada uma das personagens.
Usando a ciência da narratologia para nos
levar à poética, o autor de “Fado” traz à estrutura conflitual do seu romance,
um velho eremita, que é, salvo melhor
opinião, uma personagem reminiscência viva do Frei Agostinho, e fá-lo narrar,
na pág. 25, a sua vida num simples
soneto:
“Se eu soubesse o que sei hoje / Não tinha
gasto os meus dias / A caminhar sempre às voltas / À procura do Messias”.
Poeta e eremita que, quando descia à cidade,
vestia-se com “roupa lavada”, penteava-se, fazia a barba: “ Sou como mula
albardada” ( pág.32), a deixar aqui uma ironia poética de que se constrói
também o romance.
Desta forma, abre caminho ao leitor para a
introdução referencial de um poeta maior da nossa Literatura. Sebastião da Gama
( 1924-1952). No capítulo 3, José Brissos-Lino introduz “O Jovem Sebastião”.
A diegese decorre entre as falas do velho
eremita e o “Algarvio” no quadro da paisagem circundante, serra e mar ao longe,
que impõem quais personagens a sua presença (
“Ao longe viam-se já alguns barquitos à vela na faina”, “- Esta paisagem é
fabulosa parece quase um quadro de um grande pintor”, “- Não admira que a
Arrábida inspire tantos artistas, santos e poetas.”)
-Poetas,
pergunta o Algarvio, e aqui surge a referência a “um jovem que promete, chama-se Sebastião (…) que mora aqui na serra,
adora-a e escreve poemas sobre ela com paixão. Chama-lhe Serra Mãe.” (pág.36)
O velho eremita, que sugere conhecer a poesia
do jovem poeta de Azeitão, poesia dispersa em jornais ou revistas em 1941, uma
vez que o seu livro de estreia “Serra
Mãe” só foi publicado em 1945, afirmou que “iria
longe”, “é um homem sensível e com um grande sentido telúrico” (pág. 37 e
seguintes)
E o referencial telúrico que perpassa na
intriga do romance, pelo menos em relação ao espaço serra, e a integração das
personagens nela, e depois no espaço narrativo entre Setúbal e o Alentejo, são
uma das mais valias de “Fado”.
O espaço ( a Serra Mãe) neste romance, como ensinam as regras, é também uma extensão
das personagens, liga-as ( espaço e protagonistas) à Poesia. É de certa maneira
uma personagem, a serra, “a serra era sagrada (…).Tinha alma” ( pág.27). E a alma é o que sentimos quando um poema nos
olha do fundo infinito de uma epifania.
João Tomaz Parreira ©
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