quarta-feira, 29 de abril de 2020

Soneto Primeiro, poema de João Carlos Bemerguy Camerini


Soneto Primeiro

Dentro do nada está tudo.
Antes de alguém, só ninguém.
O som do silêncio, mudo,
A palavra em si contém.

O tempo vibrou, contudo.
Soprou no espaço um amém.
Potência em ato, um segundo,
Fez-se o mundo – e era bem.

Da teodiceia houve o prólogo –
Pairava a vida em suspenso,
No hiato entre o sim e o não...

Mas não parou no “Eu Penso” –
O Cogito ergueu a mão...
No Amor encarnou-se o Logos.    

sábado, 18 de abril de 2020

O Tempero Colombiano, um conto/crônica de Sammis Reachers



Nos ribombares da pandemônica década de 60, meu pai, Mário Pedro da Silva, chegou ao estado do Rio, vindo da doce e estacionária vida em Arapongas, no interior do Paraná. Vinha em busca de glória e fama: sonhava ser ator. Ou cantar no rádio. Ou uma ponte que o levasse à Hollywood. Ou você pensou que a parte carnavalesca de meu nome, “Sammis Reachers Cristence” Silva, veio de uma inspiração superior? Talvez descendente de abnegados missionários ingleses, ou colonos alemães avermelhados pelo sol e pelo solo paranaense? Que tal de Herbert Richers, o falido e antes onipresente empresário da dublagem televisa (“Versão brasileira: Herbert Richers”, lembra?). Veio dos nomes nos créditos finais dos filmes que ele, meu velho jovem pai, amava, na pacatitude da já citada Arapongas, onde o cinema era tudo o que havia, a bacia das almas.
Bem, após alguns meses desavisadamente fustigantes na efervescência da capital, a inadequação de nosso herói mambembe encontrou refrigério inesperado quando ele foi convidado para ver “aquela cidade ali, do outro lado da baía”. Atravessando as águas turvazuis da Guanabara, o jovem paranaense teve uma iluminação ao conhecer a cidade onde eu vim a nascer (epa, spoiler!). A calmaria da Niterói ainda em sua meia idade lhe lembrava de alguma forma o Paraná pacatizado, pacativante, e a paixão assomou aos olhos do aspirante a James Dean.
Em pouco tempo Mario estava de mala e calça boca de sino alugando quarto de pensão em Icaraí, naquela época o bairro (que já era nobre) que reunia o melhor consórcio de aprazibilidade e centralidade.
Estabelecido,  meu pai logo conseguiu emprego na cidade sorriso e pôs-se a fazer amigos. Na própria pensão em que se instalara, havia os mais diferentes tipos.
A tal pensão tinha sua legislação, como é (epa, ao menos era) de praxe em tais repúblicas. Nada de mulheres; nada de cozinhar nos quartos; divisão de quartos? No máximo entre dois homens.
A dona da pensão era o coração pulsante do lugar, e ela mesma uma figura da mais relevante singularidade. Bogotana, filha da Bogotá de nossa vizinha Colômbia, ninguém nunca soube o que ela viera fazer naqueles idos por aqui. A suspeita que liderava as pesquisas era que a agora velha Consuelo, jovem ainda havia se apaixonado por algum cafajeste viajor, que a trouxera para as paragens braileñas, e aqui a abandonara à própria e mala sorte.
Era ela, a querida de todos na pensão, que proporcionava o momento mágico da vida daqueles senhores, homens e rapazes que ali habitavam, durante o jantar (a pensão servia apenas café da manhã, simplório, e jantar. O almoço cada um tinha que filar ou comprar em outras paragens). A comida, sempre exuberantemente saborosa, mesmo nos dias de maior frugalidade, entorpecia os ânimos e estômagos de todos aqueles que, felizardos, a provassem. Uma cozinha primorosa, cercada como convém de segredos (era terminantemente proibido que enxeridos penetrassem na casa de dona Consuelo durante a elaboração dos pratos) e com doces toques de exotismo era ali praticada; uma cozinha que merecia até estar aberta ao público, e mais, a um público mais seleto do que àquela coletânea de solteiros que se refastelava nas panelas. Solteiros que, cientes da bênção que era sorver aquela cozinha encantadora, segredavam entre si o privilégio que era morar naquele lugar, se por mais nada, ao menos pela comida fulminante. Contrariados, evitavam estender-se em elogios, embora os mesmos fossem algo inevitáveis: temiam que a boa senhora abrisse um restaurante, caso em que certamente faria imediata fortuna, e de uma única e mesma facada lhes fosse surrupiada a estalagem e a boa comida...
Após o repasto, a alegria descia sobre os agregados; as conversas se expandiam. Tímidos passavam a palrar como canários; os já faladores eram então insuflados a animadores de auditório. As cantorias tomavam o ar de torneios, de “Festivais da Canção” onde duelavam-se sorridentes convivas. Havia algo de mágico naquele ambiente, e era sempre após o jantar que aquela magia socializadora ou destimidizadora parecia explodir.
Certa feita o silencioso Abelardo, aprendiz de oculista, e que normalmente mal despachava um “bom dia, boa noite” aos companheiros de pensão, pôs-se a rodopiar em dança, solitário, olhos cerrados, como que arrebatado; seu bailar, aplaudido pelos demais, estendeu-se portão afora da república – e lá foi o Abelardo, antes tímido que só ele, dançarolando pela calçada, ao som de algum acompanhamento musical que só ele ouvia (pois não havia música a tocar), para espanto dos poucos transeuntes daquele trecho.
E o Fernando, policial turrão e engomado, príncipe da empáfia e da arrogância militaresca, que, sempre que tocado pelos benfazejos vapores do jantar, punha-se a pedir perdão aos companheiros por seu comportamento usualmente arrogante? Certa feita receitou, de improviso, um belo poemeto em honra da amizade, declamação que o levou embaraçosamente aos soluços lacrimais.
Mas o efeito mais bizarro daquela felicidade pós-banquetal se dava sobre o Rui, pernambucano cabo da Marinha de Guerra, varonil mulherista e mui cioso de sua elevada posição (cabo, como disse) na hierarquia militar. O brincalhão e pretensamente galanteador marujo, negro de média estatura, peitoral proeminente, belos olhos de um castanho claro que ele alegava serem os terrores do mulheril, quando de barriga cheia e engolfado pelo clima descontraído que se sucedia àqueles jantares, ganhava um brilho diferente no olhar. Primeiro era seu riso, que se alongava; em seguida suas gesticulações passavam a ganhar mais vida, mais curvas; a marcialidade de seus movimentos cambiava para uma leveza quase... quase feminina. E assim, sorrindo largamente até as gargalhadas, traquejando com inesperada malemolência, o Rui, agora levantado de sua cadeira, passava então a apertar e massagear os ombros dos amigos, alisando os cabelos de um aqui, ajeitando a gola de outro ali... O que no princípio inevitavelmente descambou em algumas confusões, mas rapidamente aquela “transformação” foi absorvida pela geleia geral daquele festim diário de pós-expedientes.

O desenlace de nossa historieta teve seu início com o aperto e a correspondente esperteza de meu pai: conhecedor da proibição de cozinhar nos quartos, o jovem paranaense, talvez contaminado pela mítica malandragem carioca, resolveu transgredir a lei em nome da economia: conseguindo um pequeno fogareiro de um bocal, movido à prosaico querosene, passou a cozinhar pequenas porções de macarrão ou outras basicalidades dentro do quarto; para isso, todos os dias na hora do almoço voltava para a pensão a título de descansar justamente o “almoço” que alegara já ter consumido no centro de Niterói...
Em pouco tempo nosso herói, tão inábil na cozinha quanto um cego, passou a ressentir-se de ter que comer seu macarrão ou arroz ou o que fosse sempre maculado pela mais insossa sem-saboria. Já não sabia cozinhar; “mal” acostumado que ali fora a uma cozinha dos deuses, amargava cada colherada de sua própria comida como um condenado.
Um dia o estudante autodidata de inglês, que ainda sonhava em conhecer Hollywood, teve um insight: e se ele conseguisse dar uma expiada na dona Consuelo enquanto ela cozinhava? A velha era irredutível nesse ponto, mas ele poderia bolar algum tipo de burla para conferir como aquela maga temperava suas comidas. Não deveria ser tão difícil. Nosso mais novo malandro já não suportava a tortura de almoçar sola de sapato e jantar manjares e ambrosias...
Um belo dia meu pai saiu um pouco mais cedo do trabalho (nesta época já trabalhava como contínuo na Facit, no centro de Niterói) e dirigiu-se para a pensão. Ali, esgueirou-se pela parte detrás daquele conjunto de quartos, já com um tamborete nas mãos, para dar altura à pequena janela que fundeava a cozinha da velha, e lá se espichou ele para observar qual o segredo dos temperos da dona Consuelo. Observou por um tempo considerável enquanto a velha picava carne para um ensopadinho, cozinhava uma formidável panela de arroz e remexia um feijão que estranhamente não levava alho, mas ficava sempre delicioso. A atenção do malandrete estava concentrada no momento das temperanças, pois ali ele esperava descobrir ao menos algo que pudesse replicar, ainda que porcamente, a fim de mitigar o gosto já intragável de sua comida.
Pendurado e atento em seu tamborete, o jovem viu a idosa estrangeira sacar de dentro de um armário uma chusma de matos diversos. A velhinha pôs-se a picar bem finas algumas folhagens; meu pai estava atento: pôde reconhecer cebolinha, aipo e talvez cardamomo. Mas então a matrona bogotense ou bogotana apanhou um grande pote plástico e dele sacou uma outra erva. A velha espremeu algumas das estranhas folhas nos dedos, e pareceu sorver seu aroma por alguns instantes; depois pôs-se a arrancar pedaços daquelas folhas estreladas e jogar dentro de todas as panelas que tremelicavam no fogão.
O ex-matuto de roça e aprendiz de haute coisine já havia visto aquela erva fina, mas não fora nas pequenas roças de fundo de quintal naquela terra roxa e fértil do Paraná, nem nas vendas e armazéns, quando sua madrasta lhe mandava ir até lá comprar este ou aquele item; quem lhe mostrara aquele tipo de tempero fora Fernando, o policial ferrabrás, que certa feita exibia numa revista de sua corporação imagens daquela exótica planta, tão em moda naqueles idos da década de 60. O desconcerto da informação, sub-reptícia e algo dura de equalizar, derrubou meu jovem pai estatelado no chão.
Enquanto caia de sua banqueta, num daqueles fenômenos de slow motion que gostam de acontecer nos momentos dramáticos de nossas vidas, o jovem cinéfilo paranaense revira em flashback toda aquela espalhafatosa alegria pós-pasto; a música, as piadas, o gracejos e traquejos e a felicidade quase mágicas que assomavam a todos os republicanos da pensão de dona Consuelo. O motivo estava agora claro, pensava o magricela enquanto pranchava suas costelas contra alguns pedregulhos do chão.
Sabe-se lá por que cargas d’água (e a que custo, meu Deus, a que custo!), dona Consuelo temperava todos os seus pratos com frescas folhas de maconha...

*     *     *     *     *     *

Deglutidos os embaraços, o jovem migrante paranaense não pensou uma segunda vez. Reuniu seus vinténs e avançou ainda mais mato adentro: Comprou uma caxanguinha em nossa São Gonçalo, longe dos exóticos temperos colombianos. Bem, nem tão longe assim, mas essa história todos conhecemos...


Sammis Reachers

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Eu te agradeço, Senhor - Poema de E.E. Cummings




E.E. Cummings


Agradeço a Ti, Deus, por este dia mais assombroso:
pelos espíritos verdes e brotantes das árvores
e por um céu azul de verdadeiro sonho;
e por tudo o que é natural que é infinito que é sim

(eu que nasci estou vivo novamente hoje,
e este é o aniversário do sol; este é o dia do
nascimento da vida e do amor e das asas: e do alegre
grandioso acontecimento que é sem dúvida aterra)

como pode qualquer ser meramente humano
que saboreia toca ouve enxerga respira
 arrancado do não do nada total —
duvidar do inimaginável Vós?

(agora os ouvidos de meus ouvidos estão despertos
e agora os olhos de meus olhos estão abertos)

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Definição com um senão



Definição com um senão


Poesia, fuga
perfeita



a

bordo

de

um

ô n i b u s

v   a   z   i   o


Sammis Reachers

quarta-feira, 25 de março de 2020

Gambá e o Gran Cassino Palha Seca - Uma crônica bem-humorada de Sammis Reachers



Todo bairro tem suas histórias, seus mitos, seu fabulário.
O bairro do Palha Seca, aqui em São Gonçalo, não foge à regra. Recentemente, ao ver uma notícia inusitada circulando na internet, lembrei-me de uma história acontecida por cá, nos estertores finais da década de oitenta.
Em frente à minha casa morava com sua família cidadão de fácil amizade, mineiro como minha mãe, dado porém a uma vida irregular, mantida à base de escambos (o famoso troca-troca de mercadorias). Era um passarinho por uma carroça, uma carroça por uma geladeira e mais um dinheirinho de volta, uma geladeira por um trezoitão capenga da Taurus... E assim esse “malandro”, na boa acepção do termo, ia sobrevivendo.
Para auxiliar nas despesas trazidas pelos quatro filhos (um rapaz, duas moças e uma menininha quase temporã), o bom vizinho abrira uma vendinha, uma birosca, uma “barraca”, como chamávamos, naqueles idos, aqueles pequenos comércios de bairro.
Ao lado disso, o nosso empreendedor palhassequense, desconhecedor ou desrespeitador da lei, esse misto de salvaguarda social e grande estraga-prazeres, resolveu iniciar, dentro de sua casa e no convívio de sua família, uma, depois duas mesas de jogo. Isso mesmo: o homem das transações resolvera instalar um “cassino” em pleno Jardim Nazaré, que é o nome verdadeiro e honrado do nosso hoje difamado Palha Seca. Um rodízio entre variados jogos de baralho (da ronda ao truco, do buraco ao vinte-e-um) e ainda dados e dominó, quando não a prosaica purrinha, que eram praticados à exaustão, indo por vezes madrugada à dentro, e sempre valendo dinheiro. Nada de à brinca, ali era à vera. Na época cheguei a ver gente entrar ali lá pelas 21 horas e, lá pelas 2h da madruga, sair literalmente pelado – isso mesmo, peladão – pois apostara a ROUPA DO CORPO e, não sendo usuário de cuecas, teve que sair pelado, correndo pela night até sua casa...
Bem, toda essa confraternização era regada à muita cachaça, o hidromel dos deuses morenos dos trópicos. Assim nosso amigo gerente de cassinos complementava a renda, e também vendendo os tarimbados tira-gostos do tempo: linguiça frita, ovo cozido, torresmo e vez por outra um caldo ou mocotó.
Numa dessas noitadas no cassino da favelinha Beira do Rio, ainda nos inícios dos trabalhos, que religiosamente se iniciavam às 21h, um dos habitués do local resolveu fazer uma “presença”, um mimo aos amigos de copo e (má) sorte, e trouxe uma grande panela de frango à passarinho para servir aos convivas da casa. A novidade foi celebrada: Era realmente muita carne, bem picadinha e odorosa. O benemérito dissera ter matado três das galinhas do quintal, patrimônio de sua velha mãe, e propusera que, já que ele estava botando o tira-gosto, que os amigos lhe pagassem cachaça, muita cachaça. Sem problemas, pois.
Cada um que chegava ia se fartando naquela riqueza, bem fritinha e espantosamente gratuita. Até a família do amigo – sim, a criança e as mocinhas eram obrigadas a conviver e interagir com aquele ambiente sinistro em sua própria sala – também se serviram a gosto.
Enquanto isso, o nosso amigo aproveitava para pedir, na conta dos demais, boas doses de cachaça e suas variantes destiladas – uma verdinha aqui, um Domecq ali, um licorzinho de coco acolá. Os jogos iam animados e os ânimos, turbados pelo álcool, explodiam em sorrisos naquele miserável lazer suburbano. Foi quando alguém, sem qualquer maldade, perguntou ao indivíduo que lhes fornira com tão saboroso e farto repasto:
- Ô Gambá, você não vai comer não?
Pego assim de surpresa, enquanto tomava um dedo de Catuaba, que era para tonificar o espírito, nosso amigo alegou:
- Ciço, já comi muito em casa, enquanto estava cozinhando. Tô legal...
- Pô, mas já são quase duas da manhã. Desde que você chegou não comeu nada, e sempre come bem...  
- Que nada meu cumpadre, comi bastante em casa mermo, fica tranquilo. Hoje eu só quero beber. Ô Dudu, bota mais um dedinho de Catuaba aqui pro seu amigo.
Ao longo de todo o seu período de permanência ali no “estabelecimento”, Gambá (esse era o apelido do bruto, um sarará parrudo, baixinho, morador do Campo Novo) era o mais feliz, e isso entre felizes. Sorria como um palhaço, enquanto via os amigos fartarem-se com aquela iguaria preparada com carinho. Um coração de ouro o Gambá, quase santo, digno filho de São Gonçalo.
Após o diálogo acima, travado com o Ciço, o embriagado Gambá, que passara da conta habitual valendo-se da boa-vontade alheia em pagar pela bebida, passou a sorrir ainda mais. A cada vez que alguém pegava um daqueles últimos pedaços de frango, ele, com aquele brilho mortiço no olhar, comum aos ébrios, sorria com gosto – ou quase com cinismo, diria algum espírito de porco...
Ao ser fisgado o último pedaço de carne daquela grande e encardida panela, estando todos já afogados nos humores e vapores alcoólicos, um dos convivas reforçou o argumento de Ciço:
- Aí, acabou o frango e Gambá mesmo não comeu nem um pedaço...
Aproveitando o oportuno da ocasião, o malandrim resolveu abrir seu coração, e expor a inocente, inofensiva eu diria, brincadeira:
- Amigos, eu não comi nenhum pedaço pois essa carne que preparei para vocês não era bem das galinhas da mamãe. Era na verdade um urubu, um baita urubu que matei ali na Ponte Caída.
E antes mesmo que a surpresa, a dúvida e a descrença pudessem manifestar suas máscaras características na audiência humilde e chapada, o sarará de olhos cor de mel entregou a sordidez de alguns detalhes:
- Rapaz, o bicho é ruim de morrer! Carne dura! E na panela?!! Foram duas horas, duas horas malandro, na panela de pressão! – completou, explodindo numa gargalhada carnavalesca.
Gambá, boníssimo coração, acreditou na sorte, sorte que poucas vezes o visitara naquelas mesas de jogo. Imaginou que, dado o inusitado da situação, e o teor alcoólico imenso reinante nas veias dos presentes, todos levariam aquilo na direção do que aquilo era afinal – uma grande brincadeira.
Mas alguém antecipou-se, e passou a chave na porta, a única porta do casebre...
O que se seguiu foi uma prolongada sessão – desengonçada, hilária, ridícula, mas também cruel, medieval, horripilante – de espancamento. Os gritos do bom Gambá, Macunaíma gonçalense, sendo socado e golpeado com tudo que as trêmulas mãos dos bebuns alcançavam, acordaram meia vizinhança. O bitelo apanhou, e apanhou, e apanhou ainda um pouco mais. Sabe-se lá de onde aquele grupo de mamados encontrou forças para o linchamento; talvez do próprio Satã.
Desfeita a graça e também a consciência de Gambá, o corpo desmaiado foi jogado para fora, estabacando-se na rua de chão.
Sabe-se lá como Gambá chegou em sua casinha. O que se soube é que ele lá chegou já com um aviso: nunca mais deveria passar pela rua principal do Palha Seca – justamente o único caminho que ele tinha para ir trabalhar, pois andava dois quilômetros de sua casa para o ponto de ônibus, para pegar a viação que o deixava em Alcântara – sob a pena de ser, bem, literalmente despachado desta vida, como fora o pobre urubu, de tão dura –  mas saborosa, alguns depois o confessaram – carne.
Resultado: Além das amizades desfeitas, foram anos e anos andando não dois, mas (agora na direção contrária) coisa de cinco quilômetros, de sua casa até Maria Paula, onde podia pegar outra viação para levá-lo ao batente.
Amargurado por cicatrizes de corpo e alma, ferido em seu brio e espírito fraternal, Gambá, nosso Macunaíma, nunca entendeu o motivo da brutal falta de senso de humor de seus antigos companheiros de jogatina...


Sammis Reachers

terça-feira, 10 de março de 2020

Daimon Ex Machina (Demônio na máquina) - Um conto de Sammis Reachers



Daimon Ex Machina (Demônio na máquina)

- É a sua primeira vez?

Algo no olhar dela me desagradou. Quem ela pensa que é para andar por aí sorrindo assim? Batom exagerado numa boca grande demais. Baton sempre sepulta as bocas grandes demais. Ninguém nunca avisa essas mulheres? E eu não vim aqui para conversar. A mulher é persistente:
- Amigo, entendo sua mágoa. Sorria! Estamos todos no mesmo barco, e se estamos aqui é sinal de que buscamos a felicidade! Ela mora aí dentro! Falando nisso, você já usou a serra elétrica de titânio?
Jeito estranho de falar, e mais ainda de raciocinar. “A felicidade mora aí dentro”... Mas ela tem alguma razão. Um tipo sinistro de felicidade mora aí dentro sim, mas é quase um pecado chamar isso de felicidade. Catarse é que se fala? Tem outra palavra... Êxtase? Não... Que se exploda! ...é isso, é uma explosão o que acontece aí. A gente paga pra explodir.
- Boa tarde. Tem cadastro?
- Não.
- Três, seis ou nove pequenos, um ou dois grandes, drones, o que vai querer hoje, senhor? Agora temos pacotes de dois a seis drones. Temos a nova promoção temática, com configurações contextualizadas envolvendo salas e maquinários, nas temáticas alemã, japonesa, chinesa e americana.
- Um grande só, por favor. Sala simples.
- Bem, está ótimo. Vejamos aqui... sala 203, oitava porta à esquerda.

********

Colocaram novas armas na sala. Era apenas um modelo de furadeira, agora são quatro; colocaram ainda chicotes. Deus, o que pode um chicote contra o maldito metal?!?
Apanho um grande porrete, uma espécie de taco de baseball com calombos na ponta, como uma maça de um cavaleiro medieval.
O robô é até bem grande. Uma espécie de robô de linha de montagem. Pelo tamanho, quase dois de altura e com um braço em pinça de mais de três metros, deveria ser da indústria automotiva, ou de alguma linha de montagem de grandes itens.
Dou a primeira porrada na pontinha da pinça. Sempre começo por extremidades, que é para poder degustar. Dou uma segunda pancada em rodopio, acertando pouco acima do local do outro golpe, agora terminando de arrancar a ponta que ficara pendurada. Sigo então o ritual de golpear e xingar, golpear e xingar. Na parte do “tronco” da maldita máquina, encontro resistência, e as pancadas não surtem tanto efeito. O bastão, metálico, chega a estar quente.
Apanho uma das tais serras elétricas. Mas não vou cortar e derrubar o que restou do construto, não; dou pequenos talhos aleatórios, no objetivo de enfraquecer sua estrutura. Pego então outro porrete. E recomeço a desferir pancadas, uma tempestade delas. Minhas mãos grossas ganham novos calos, perceptíveis pela ardência característica. Sempre acontece.
Paro para respirar, observando os frangalhos do demônio.

**********

O primeiro a perder o emprego para uma máquina foi meu avô. Estamos em 2036, e isso foi lá nos idos de 1989. Ele era montador numa indústria de geladeiras na extinta Zona Franca de Manaus. Sem chances no Amazonas, o velho veio para o Rio de Janeiro tentar sobrevida.
Conturbados anos depois foi a vez de minha mãe, profissional de telemarketing, substituída por um programa, um robô com “a voz da Cláudia Raia”, uma atriz famosa na época. Meu pai era mesmo quem mantinha a casa; minha mãe, com problemas de coluna herdados do tempo de horas diárias sentada como telefonista, não conseguindo e nem podendo arrumar outra colocação no mercado, voltou a ser “do lar”, que era uma forma antiga e não-remunerada de aniquilar-se em trabalhos.
Mas, anos depois o demônio da máquina deu sua lapada no arrimo da família: meu pai, a oito anos da aposentadoria, foi dispensado de seu emprego no Banco Bradesco, em virtude da crescente automatização do setor bancário via caixas eletrônicos e virtual banking.
No vendaval dos pesares, ou apesar dos mesmos, meus pais me deram uma excelente educação. Estudei arquitetura na UERJ. Após formado, comecei trabalhando para um escritório que pertencia a um professor. Anos depois, os ganhos do escritório estavam em queda, e eu já havia mesmo adquirido a experiência que buscava. De tanto o “patrão” reclamar das contas, ofereci-me para deixar a empresa: os outros dois arquitetos da equipe eram pais de família, afinal.
Abri meu negócio, fui aos trancos, até que um formidável barranco me lançou numa provável falência; me dei por vencido antes disso. Saldei as dívidas, encerrei o escritório e após alguns meses consegui aprovação num concurso público.
A sinistra história de minha família fez as vezes com uma precisão macabra: exatamente como meu pai, a oito anos para minha aposentadoria, fui substituído por um software de arquitetura baseado em inteligência artificial, uma maravilha da tecnarquia capitalista. Desde 2023, funcionários públicos já não gozavam de estabilidade, e fui demitido sem cerimônias.

**********

Esta empresa cumpre um propósito quase fundamental, num nicho que cresce à exaustão. Eles oferecem às pessoas suas clientes a possibilidade de vir aqui e quebrar máquinas – isso mesmo, pagamos pelo simples prazer, ou mais que prazer, em meu caso uma necessidade, de destruir esses demônios, esses vírus do “avanço”, do “progresso”, da fome. Há desde robôs de variados formatos e tamanhos, o que é a especialidade desta casa, mas em outras há também computadores de muitos feitios, aparelhos de comunicação, todo tipo de máquina, de sucata dessa indústria imparável da cibermecanização e sua força vital, a obsolescência programada. Na Europa, em Mônaco, há mesmo uma dessas casas de luxo, onde se destroem não sucatas, mas máquinas “acabadas de sair da prancheta dos projetistas”, conforme as peças de marketing apregoam. Quem me dera.
Bem, é aqui que eu extravaso, que eu explodo. Três gerações, você dirá, usufruindo as loas do progresso. Na verdade, foram, somos, pois ainda sobrevivo, três gerações prostituídas, varadas pela máquina, esse dente canino da mais-valia que se faz “só-valia” nas mãos dos potentados e privilegiados.
Amanhã voltarei a exercitar os calos de minha mão na indústria da construção civil. Sou um pedreiro agora, ou quando dá. Quando não dá aceito ser ajudante.
Outros possuem vícios em pornografia ou sonham comprar sua assistente sexual cibernética; muitos gastam tudo o que têm nas novas drogas personofásicas, que prometem levar os usuários a vivenciarem “novas personas/personalidades”. Meu vício é este: a prática de exorcismo. Junto dinheiro até poder vir aqui e me vingar. Aos poucos que sabem dessa minha, segundo um amigo, “extravagância”, digo que é fácil me julgar de barriga cheia e estando no controle da máquina. Mas a facilidade é temporária, assim como a ilusão de controle, pois a máquina cedo ou tarde fará de todos nós, seus “cavaleiros”, apenas cavalos de seu Reich, seu tecnorreino sem fim.

**********

Saio da loja limpando meu suor, sob o olhar sorridente da atendente, satisfeita.
Há um demônio na máquina, um que a humanidade não equalizou e que assim a vencerá; um cujo o exorcismo tosco que pratico não pode exorcizar. Há um demônio na máquina e/ou surgido da máquina, um daemon ex machina, assim como há um Deus além das máquinas, um Deus que parece que perdemos em algum lugar, como um desempregado (pela máquina?) – ou um apetrecho obsoleto. Será ainda possível encontrá-lo?

 Sammis Reachers

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Três poemas de Emílio Moura


GÊNESE

Há sempre uma hora,
uma hora densa,
uma hora inesperada,
em que a paisagem mais inocente
tem o fulgor de um fiat.
O tempo sonha que é espaço,
o espaço sonha que é tempo,
a realidade se compenetra de sua irrealidade.
O homem repensa o mundo.
O mundo se recompõe em sua nostalgia de Deus.




SÚPLICA


Os inquietados, os loucos, os que ainda
não Te descobriram, e os que nada compreendem,
os que pararam e os que jamais tentaram a grande jornada,
todos eles, Senhor, estão comigo neste momento.
Comigo estão todos os que perderam a grande partida.
Comigo estão, Senhor, todos os que Te deixaram
e os que não souberam amar-Te.
Comigo estão os que não Te amam nem Te compreendem,
os que te negam porque são felizes,
e os que te negam por que são infelizes.
Senhor, todos eles estão agora
na minha insônia e na minha desolação, como a presença
da morte está na máscara dos que nada esperam.
Matai-os em mim, Senhor.



POEMA

Quantas vezes te destruí em mim para te criar de novo?
Quantas vezes te considerei mito, estrela desterrada de
                               sua constelação, símbolo e chama?
De onde tirei a tua forma?
Dos mitos que me sustentaram antes de tua vinda, ou de
                                       minha  própria sede de poesia?
Mito! Eras mito e eu te esperava.
Estrela desgarrada, e meus olhos te reintegraram em tua
                                                        constelação mágica.



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