quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Tenho tempo, Senhor!, um texto de Michel Quoist



Tenho tempo, Senhor!

 

Saí, Senhor.

Lá fora os homens saíram.

Iam. Vinham. Andavam. Corriam.

As bicicletas corriam. Os automóveis corriam. Os caminhões corriam.

A rua corria, a cidade corria, todo o mundo corria.

Corriam todos, para não perder tempo: corriam no encalço do tempo, para recuperar o tempo, para ganhar tempo.

Até logo, doutor, desculpe-me, não tenho tempo.

Passarei outra vez, não posso esperar mais - não tenho tempo.

Termino aqui esta carta, pois não tenho tempo.

Queria tanto te ajudar, mas não tenho tempo.

Não posso aceitar por falta de tempo.

Não posso refletir, nem ler... não tenho tempo.

Compreendes, Senhor, eles não têm tempo.

A criança está brincando, não tem tempo, agora mesmo... mais tarde...  

O estudante tem seus deveres a fazer, não tem tempo... mais tarde...

O universitário tem lá suas aulas, e tanto, tanto trabalho que não tem tempo... mais tarde...

O rapaz pratica esporte, não tem tempo... mais tarde...

O que casou há pouco, tem sua casa, deve organizá-la, não tem tempo... mais tarde...

O pai de família tem seus filhos, não tem tempo... mais tarde...

Os avós têm seus netos, não têm tempo... mais tarde... estão doentes.

Precisam tratar-se... não têm tempo... mais tarde...

Tarde demais, não têm tempo.

Assim correm todos os homens atrás do tempo, Senhor: apressados, atropelados, sobrecarregados, enlouquecidos, assoberbados...

Nunca chegam, falta-Ihes tempo.

Apesar de todos os esforços, falta-lhes tempo.

Falta-lhes mesmo muito tempo. Com certeza, Senhor, erraste os cálculos.

Há um engano geral: horas curtas demais; dias curtos demais; vidas curtas demais. Nesta noite eu não te peço, Senhor, o tempo de fazer isto e depois aquilo.

Peço-te a graça de fazer, conscienciosamente, no tempo que me dás, o que queres que eu faça.


sábado, 11 de dezembro de 2021

O ÚLTIMO SALTO, conto de Sammis Reachers

  


O ÚLTIMO SALTO

 

Foi duma ardência que nunca senti. Me rasgando a garganta. Sentia como o líquido ia, a um tempo, queimando e como que fazendo inchar, expandir-se, tanto a extensão de minha língua quanto as paredes da minha garganta, traqueia... 10 ml de veneno daria conta, mas eu tomei 300ml, um belo copo.

Retornei como que de ressaca. E atrasado: havia já programado uma nova morte e esta fora gestada por um mês. Custou dinheiro, tempo perdido com instrutores. O avião decolaria às 10h00. Saí do IML e peguei o primeiro ônibus.

Conheço mais IMLs do que pregadores itinerantes conhecem púlpitos de igrejas de onde vão arrancar seu ganha-pão.

Lembro-me sempre não da primeira, mas da segunda vez em que morri. Acreditei que sonhava: ainda era usuário das mesmas drogas que me mataram da primeira vez.

Na primeira, afinal, não soube sequer que havia morrido. Só me lembro de sentar-me, muito chapado, na cadeira do fundo de um ônibus, e começar a tremer, mas sem sentir frio. Acordei numa maca fria de um hospital, coberto com um lençol. Era madrugada: levantei-me e saí. Alguém detrás de um balcão, sonolento, esboçou um “Ei! Ei!”. Sonolento, creio que não ouvi.

Estava muito grogue e achava que era efeito posterior da aparente overdose que me jogara naquela maca. Ou talvez de alguma medicação. Só com o tempo e outras mortes fui perceber que sempre despertava com aquele tipo de zonzeira. Era a vida engrenando as marchas.

Curiosa a minha hipervida, não? Mas a coisa toda é simples: sou um homem que não consegue permanecer morto. Sou sempre expelido pela Morte de volta à vida. Escarrado. Não sei o motivo. Até onde eu sei, não sou vítima de nenhuma maldição, artefato místico, genética alienígena, experiência científica. Estar preso numa grande matrix, num programa simulador de realidade, claro, é uma possibilidade. Para todos nós, afinal.

Nunca utilizei meu “poder” para trazer qualquer benefício para ninguém. Creio que nem mesmo para mim. Era um drogado já com certa inclinação suicida, e ao descobrir tal dom ou maldição tudo o que fiz foi curtir, curtir ao máximo o que, ainda creio, estava vedado a qualquer outro homem: mais que sofrer, saborear a morte. Pisoteá-la, ela a tão cheia de botas.

Passei simples e sistematicamente a suicidar-me das mais diversas e criativas maneiras que me ocorriam.

Mas, e como é estar morto?, você deve estar perguntando-se. São muitas mortes, e variadas as experiências, e múltiplas as respostas. Vezes houve em que, defunto meu corpo, só vi escuridão e silêncio. Noutras, ouvi vozes, algumas conhecidas me chamando a esmo, noutras vezes gritos de dor. Vi a luz em forma de túnel. Vi a área em torno ao meu corpo, pessoas observando-o, tentando me reanimar.

Em Uganda fui estraçalhado por um leão e fiquei horas (eu ou meu espírito? Na verdade sempre meu espírito e sempre eu, pois somos espíritos, e não corpos) observando meu corpo mutilado, abandonado pelo jovem leão após se ter saciado. Quando hienas se aproximaram, meu meio corpo foi salvo por guardas florestais. De repente senti como que se lançado num torvelinho, um rodopiar do vento que aumentava sua força e girava meu espírito como uma cueca numa máquina de lavar. Despertei ensacado no jipe que levava meu corpo para a capital do país. Eu poderia relatar outras trinta experiências assim.

Você já pisou num chiclete? Aquela sensação, meio nojenta e noutra metade angustiosa, de perceber o chiclete esticando-se indefinidamente junto com seu calçado, quando este se levanta? Assim ocorre com o espírito. Ele desprende-se do corpo como um chiclete, esticando-se, grudento.

Sinto falta da sensação do desprendimento, imensa saudade de morrer. Desta única vez, ao menos, por um bom motivo.

Hoje estou preso a um corpo imóvel, o qual não posso matar. Escrevo este relato apenas com os olhos: utilizo um programa criado especialmente para pessoas em situação como a minha, tetraplégicos. Essas quase três páginas que você acabou de ler me custaram dias de trabalho, olhares e piscadelas para os sensores do monitor que me causam uma dor de cabeça terrível. Minha última aventura kamikaze deu errado, errado pois... sobrevivi. Em meia vida: O acidente lesionou minha coluna cervical, e aqui estou.

Nunca vi Deus, anjos ou demônios em minhas muitas mortes, ou nesses períodos que passo fisicamente “morto”, pois quem sou eu para saber se isso é mesmo a morte? Mas, após dois anos aqui, prisioneiro neste corpo, eu que me julgava e porventura fui o mais livre dos homens, um anárquico super-homem, viciado no próprio poder, no próprio ego, desisti de teimar. Em lágrimas sem ter quem as secasse, lembrei das conversas – perdão, das audições – com dona Solange, missionária capelã que semanalmente vem até esta ala do hospital e conversa conosco. Eu a ouvia, mais interessado em simplesmente ouvir alguém do que em ouvir o que ela estava falando.

Me lembrei de suas palavras, e sem palavras gritei o mais alto que pude por aquele Deus de quem ela fala tão feliz, esse Jesus que tanta luz e confusão trouxe ao mundo. Gritei mentalmente, gritei e gritei e chorei – um dia, dias, qual a diferença? – imóvel como um cadáver em meu corpo paralisado, até que senti sua mão em meu ombro. Senti, senti mesmo não tendo nenhuma sensação do pescoço para baixo.

- Pare de gritar.

Fiquei em “silêncio”, apenas chorando, confuso de raiva e espanto e vergonha. Raiva pela fraqueza, vergonha de chegar àquele ponto, àquele estado de miserabilidade, e espanto por ele estar ali.

- Você quer respostas, mas eu quero saber se você está realmente cansado.

- Estou, Senhor. Não aguento mais essa prisão, e nem mesmo aquele morrer e ressuscitar que me trouxe até aqui.

- Dura sorte lhe coube, pois dura sorte é sair daqui e para cá voltar, sem o beneplácito do Pai. Tudo o que você fez foi acumular pecados, e inutilizar vez após vez tudo o que eu lhe dei. Mas, se quer e se crê, um pouco mais de tempo e morrerá, e ressuscitará a ressurreição verdadeira, para nunca mais morrer, num novo corpo feito de paz e para a paz criado. Um corpo que você não poderá e nem quererá despedaçar.

Confesso que eu, habitante do inusitado, estava confuso como jamais estivera. Ideias de que aquilo era só mais um sonho ou fruto de um transe medicamentoso me solapavam sem trégua. Mas reagrupei a coragem que me fazia experimentar a morte vez após vez, e com coragem fui para o tudo ou nada, como quem salta sobre um abismo, pois sentia acima de tudo que aquele momento era um “tudo ou nada” como jamais experienciara em minha estendida existência.

- Eu quero, Senhor Jesus! Eu quero...

Fechei os olhos para que as lágrimas que embaciavam minhas órbitas fossem expelidas e escorressem, e ao abri-los já não havia ninguém lá.

 

Continuo preso; vezes há em que amaldiçoo minha existência, ou o mal uso que fiz da singularidade, buscando a morte apenas por curtição, desperdiçando o que era um verdadeiro superpoder.

Nunca mais o vi, embora o chame constantemente, e por vezes minha fé naquele dia e naquelas palavras titubeia. Mas lancei-me no tudo ou nada e, com a resignação dos prisioneiros, espero. Entendi o que dona Solange dizia tantas vezes, “é preciso ter fé, e basta ter fé”. Minha existência kamikaze me permitiu entender que a fé é um salto no escuro, que pega impulso no escuro, e mira adiante, no escuro, para alcançar além do escuro.

 Sammis Reachers

Publicado originalmente no Jornal Daki.


Este conto faz parte do livro Fabulário Índigo. Disponível em formato impresso (aqui) e e-book (pela Amazon, aqui).


terça-feira, 16 de novembro de 2021

Renato Cascão & Sammy Maluco - Uma dupla do balacobaco: Livro gratuito para download

 

Nesta obra, memória e humor se entrelaçam para narrar divertidíssimas histórias da infância de dois jovens criados num subúrbio de São Gonçalo (município da região metropolitana do Rio de Janeiro), nos duros anos da década de 80. Relatos de perrengues e peripécias, marcados pela humanidade, o bom-humor e a irreverência da prosa de Sammis Reachers, dão conta de duas pequenas vidas que poderiam ser as vidas de quaisquer moleques daquele tempo, dada sua universalidade. 

O livro é ilustrado e possui 114 págs.

O livro em pdf pode ser baixado GRATUITAMENTE, clicando AQUI.


O livro também está disponível na versão impressa, ao preço de 25 reais (o valor já inclui o frete). Caso queira adquirir, me envie um e-mail o quanto antes, pois a tiragem inicial foi bem pequena:  sreachers@gmail.com

O lançamento do livro impresso acontecerá oficialmente durante a terceira edição do FLISGO, o Festival Literário de São Gonçalo (dia 21/11, às 14h). O evento reunirá expositores literários, atividades e atrações culturais diversas, e irá dos dias 19 a 22, das 10h às 19h. O endereço é o Conjunto Residencial Venda da Cruz – Minha Casa Minha Vida – Antigo 3º. Batalhão de Infantaria, Venda da Cruz, São Gonçalo, RJ



sexta-feira, 12 de novembro de 2021

FLISGO - Festival Literário de São Gonçalo chega à sua terceira edição

 

Durante os dias 19 a 22 de novembro serei um dos participantes da terceira edição do FLISGO,  o Festival Literário de São Gonçalo. 

Organizada pelo ativista cultural Alberto Rodrigues, a FLISGO busca mobilizar a cultura gonçalense e dos municípios vizinhos, e dar espaço aos que militam pela nossa cultura, com amplo destaque para ações afirmativas e buscando a democratização da cultura ao facultar acesso aos bens culturais às camadas menos assistidas da população. 

Além dos expositores de livros, haverá diversas oficinas culturais, contação de histórias, música e muito mais. E o melhor: O evento é gratuito.

E mais: Após o evento presencial, em sequência haverá o evento online, com a transmissão de lives, saraus e oficinas.

Programação Presencial – 19 a 22 de novembro – De 10h às 19h / Totalmente Gratuito.

ENDEREÇO: Conjunto Residencial Venda da Cruz – Minha Casa Minha Vida – Antigo 3º. Batalhão de Infantaria, Venda da Cruz, São Gonçalo, RJ


Durante o evento, estarei expondo e comercializando meus livros Poemas da Guerra de InvernoRodorisos e Cartas e Retornos, e farei o lançamento de um novo livro, o misto de memórias e crônicas de humor Renato Cascão e Sammy Maluco: Uma dupla do balacobaco.

Em breve, postarei aqui mais novidades sobre o novo livro.


Abaixo, uma chamada em vídeo para o evento, bem como uma palinha sobre os livros que lá exporei.

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Ao livro CARTAS E RETORNOS, um poema de Pedro Marcos Pereira Lima

 


CARTAS E RETORNOS

                           Para o poeta Sammis Reachers

 

as cartas estão dadas –

com que sorte lançadas?

não vieram das garrafas ao mar

não foram aos meus pés jogadas

por um mensageiro ofegante moribundo

sobre seu cavalo rocinante

tendo atravessado o mundo

as cartas primeiras

as cartas estrangeiras

cartas de um correio dos céus

cartas chegadas

de um carteiro assassinado

encontradas após anos perdidas

nas catacumbas

de um sonho sepultado

no coração de um escriba apartado

cartas extraviadas

cartas devol/vidas

cartas ressuscitadas na escrita inviolada

cartas que me foram agora reveladas

cartas abertas

me falam de uma carta eterna

carta que pede

meu retorno urgente

do que me resta

ainda sobrevivente

retorna –

Vida ainda te espera

naquela tarde ruída

na mesma porteira caída


onde a deixaste

dizendo que irias logo ali

buscar a madeira para consertar

é a madeira que te escreve –

estou pronta cortada medida

aguardando seu retorno

esperando a partida

para ir no seu ombro

eu pouco ou nada peso

sou muito leve

retorna –

nossa porteira será uma janela erguida

onde Vida mais feliz que nunca

te verá chegar com olhos de primavera

nossa porteira terá uma cancela

sem ferrolho que se abrirá de longe

só com o piscar do olho

retorna –

veja atrás dessa missiva

o mapa para seu retorno

ali é dada

a estrada viva

que terás que tomar.


VIDA

VIDA

VIDAVIDAVIDA

VIDAVIDAVIDA

VIDA

VIDA

VIDA

VIDA


Pedro Marcos Pereira Lima


segunda-feira, 11 de outubro de 2021

JESUS, poema de Junquilho Lourival

 


JESUS

Senhor, ao teu desejo elevo a taça
Transbordante de fel do meu tormento!
Tua vontade sobre mim se faça
E seja o teu amor meu pensamento!

Que a minha fé, Jesus, não se desfaça,
Das perversões ante o deslumbramento!
Por mim passe a maldade como passa
O grão de poeira no fragor do vento!

Mártir da Cruz, ó símbolo da Mágoa!
Dá-me a cumprir sereno a minha pena
— Chagado o corpo e os olhos rasos d’água.

E faze que esta boca humilde e boa
Nunca maldiga ao que disser — Condena!
Mas beije os pés ao que disser — Perdoa!


Via Gaveta do Ivo.


domingo, 3 de outubro de 2021

300 Frases para o Dia da Batalha: Uma antologia de citações inspiradoras

De uma batalha campal à luta por uma promoção ou um novo emprego; de uma situação perigosa em que as circunstâncias o lançaram à solicitação, à pessoa amada, de um primeiro beijo, cada um sabe – ou logo descobrirá – quais são as batalhas de sua vida. Desafiados somos todos os dias, por situações procuradas ou inesperadas, e necessário é que nos mostremos fortes diante dos desafios e adversidades.

Aqui, neste breve volume, reunimos uma poderosa coleção de frases de inspiração e sabedoria, que falam sobre coragem e heroísmo, prudência e resiliência, estratégia, ousadia e iniciativa para enfrentarmos o dia da batalha.

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