terça-feira, 21 de setembro de 2021

A Concha Azul - Mistério, Aventura e Pirataria na Baía de Guanabara, um conto de Sammis Reachers

 


Um conto de fantasia histórica e mistério tendo por pano de fundo a Baía de Guanabara dos séculos XXI e XVIII. Uma concha enigmática arroja três mergulhadores da Petrobrás a séculos no passado - para uma aventura que lhes custará praticamente tudo.

Transformei este conto num pequenino e-book, de vinte páginas. Você pode baixá-lo (em formato PDF) pelo Google Drive, CLICANDO AQUI.

Ou pode ler o conto aqui abaixo.


A Concha Azul

 

Mistério e aventura

na Baía de Guanabara

Os oito mil reais mensais auferidos por seu trabalho como mergulhador da Petrobrás permitiam a Juliano oferecer uma muito cômoda vida à sua família. A profissão de mergulhador, para além disso, o levara a conhecer quase meio mundo. O regime de trabalho, por plantões, lhe permitia muito tempo livre, que dedicara ao seu crescimento pessoal, com viagens e duas graduações – em História e Filosofia – que ele fizera apenas pelo prazer da realização intelectual.

Nos últimos tempos Juliano estava à frente de uma pequena equipe especializada em realizar sondagens e pequenos reparos em plataformas petrolíferas, mas já não indo até elas: elas é que “vinham” a eles. A Petrobrás passara a ancorar plataformas petrolíferas a serem consertadas ou aprimoradas dentro da Baía de Guanabara – dita Iguaá-Mbara pelos primeiros índios que habitaram seu entorno – o que permitia aos mergulhadores daquela equipe privilegiada não ter que viajar constantemente.

Numa dessas missões, a equipe se dirigira para o litoral da cidade de Niterói, um dos sete municípios que compõem o circuito litorâneo da Baía. A bordo de uma pequena lancha, amparados por uma equipe de três tripulantes e um engenheiro naval, os três mergulhadores submergiram próximo aos bairros niteroienses de Boa Viagem e Gragoatá, local onde estava fundeada a plataforma que seria avaliada.

Os mergulhadores iniciaram as inspeções de rotina, observando coluna por coluna de sustentação dos flutuadores daquela imensa estrutura metálica semissubmersível. Foi quando, na terceira das colunas vistoriadas, o mergulhador experimentado que encabeçava a equipe viu aquela concha. Azul rutilante entre o caos calcário das cracas e algas, aquilo era uma impossibilidade mineralógica intuível até por um leigo. Era mesmo como se aquela concha, dentre a profusão turva de dejetos, pulsasse. Juliano fez sinal para Edvaldo, que carregava sua máquina fotográfica padrão. Deixando seu afazer, aproximou-se e fotografou a concha. Fez um sinal de OK com os dedos para Juliano, que sorriu para si dentro de seu snorkel. Belíssima foto.

Enquanto Juliano e Edvaldo se comunicavam por sinais, o terceiro membro da equipe, Mauro, que fora alertado pelo flash da máquina fotográfica, se aproximou da esplendorosa carcaça do crustáceo, e puxou-a.

Não se saberá jamais se foi o simples toque naquele objeto, ou se o fato dele ter sido arrancado da cracaria o que deflagrara um tipo de gatilho: um clarão azul inundou o entorno, fremente como uma onda de choque, adensando por um instante a água com seu pulso, cegando e atordoando os três mergulhadores. Após dissipar-se, não havia mais turbidez maculando a água, agora límpida. Junto com a poeirenta fuligem marinha, desaparecera a própria plataforma.

- O que você fez? – gritou Juliano pelo rádio. Mauro, desnorteado e com a concha nas mãos, não podia falar, e com a mão livre fez sinal de espalmá-la na horizontal, como quem diz “não sei!”

Edvaldo, após olhar em todas as direções, comunicou o sumiço da plataforma.

- A plataforma sumiu! Será que a explosão nos lançou para longe dela?

Mas aquela explosão fora mais de luz do que de ondas de choque. Juliano instintivamente apertou com mais força a coronha de seu arpão.

A tentativa de comunicação via rádio com a superfície redundara apenas em silêncio. Sequer as mudanças de frequência do rádio davam algum sinal. Juliano, líder da equipe, fez sinal para o grupo emergir.

Além do espelho d’água, uma paisagem arcana, feita de azuis e matas intactas, os saudara. Nenhum navio, nenhum edifício. Um horror frágil e desconcertante tomou conta dos mergulhadores, emudecendo-os.

Ao longe, divisaram a luz de uma fogueira, que ardia apesar do sol que ainda brilhava naquele final de tarde. Juliano fez sinal para que eles avançassem para a praia.

Mauro, menos experiente, não se conteve:

– Juliano, o que está acontecendo? Fomos jogados pra longe? Cara, olhe para o outro lado da baía!!!

Somente então, alguns minutos depois de emergirem da deflagração daquela singularidade que os atordoara, puderam divisar à distância o contorno do Pão de Açúcar. Se não havia respostas, tampouco dúvidas restavam: estavam no mesmo lugar em que haviam mergulhado, às margens da praia de Gragoatá, em Niterói. Mas o contorno da orla estava diferente: a praia era muito mais longa, pois os imensos aterros que expandiram a região do centro de Niterói, mar adentro, inexistiam; o pequeno Forte do Gragoatá, única construção visível naquelas margens verdejantes, estava algo diferente, derramado por sobre uma grande pedra. Nenhuma sentinela ou vivalma que fosse era visível por sobre as amuradas. O que era tudo aquilo?

Do outro lado da baía de Guanabara, o que fora ou seria um dia o Rio de Janeiro refulgia em seu esplendor de rocha e mata. Praticamente nenhum prédio, nenhum construto humano era visível.

Um breve diálogo de horror se estabeleceu e morreu entre os três mergulhadores. Se não havia respostas, havia a fogueira, sinal humano, e onde há homens há esclarecimentos – ou ao menos essa era a intuição que lhes animava.

Ao aproximarem-se um quilômetro mais daquela grande fogueira, notaram figuras humanas em seu derredor. Avançando agora em cautela, logo perceberam que eram indígenas. Índios aprisionados. Em torno de 15 indivíduos, dentre aparentemente homens, mulheres e crianças, estavam de pé, e amarrados com uma mesma e longa corda, que lhes cruzava os pulsos e pescoços, formando uma sinistra corrente humana.

O relevo sobre o qual os mergulhadores avançavam margeava em curva a linha do litoral. A princípio se perguntaram o porquê de os aprisionados não se moverem, ou buscarem escapar. Mas ao seguir sua marcha em curva, logo receberam, dum único golpe, as respostas àquelas dúvidas. A alguns metros do grupo indígena que circundava a grande fogueira, seis indivíduos brancos faziam guarda, quatro em pé, dois sentados, aparentemente manuseando seus armamentos. E, na ponta de seu campo visual, viram um grande navio, velha caravela de escura madeira.

Os três abrigaram-se sob a capa de um arbusto e debateram sobre o que fazer. Edvaldo falou que estava claro que haviam viajado no tempo. Mauro apenas ria e chorava de nervoso. Juliano, o silencioso líder, soltou alguns resmungos e disse que poderiam estar talvez numa outra dimensão. Falou também o que deveriam fazer: Esconder o máximo possível de apetrechos e trajes que causassem estranhamento naquelas pessoas, e avançar até elas, contando alguma história sobre serem de algum povo do interior, fruto talvez de uma incursão de algum desbravador português. Sim, pois certamente aqueles eram portugueses; e estranhariam o sotaque dos três desterrados do tempo ou do espaço multidimensional.

Ao aproximarem-se ainda mais, sempre às ocultas, o experimentado Juliano julgou ouvir alguns gritos. Observando, percebeu que um dos brancos gritava ordens a um outro, fora do campo de visão, talvez vindo da direção em que estava fundeado o navio deles. Uma nova pausa, enquanto ouvia atento, foi seguida de um novo descarte de impropérios e palavrões. Juliano ouvira bem diversas das palavras gritadas, mas nenhuma delas soava em português. Se não compreendeu perfeitamente o que era falado, ao menos a língua ficou logo clara, a velha língua dos francos. Eram franceses aqueles captores de indígenas. O líder da equipe falava algo da língua, de quando trabalhara na Líbia, no início de sua carreira como mergulhador. Mas havia algo diferente dos diversos sotaques franceses com que lidara naqueles quase nova anos de trabalho: aqueles indivíduos eram falantes de um francês acobreado, crioulo, um francês calcinado pela maresia.

O mergulhador soltou mais alguns palavrões.

Na verdade, era o historiador nele quem vomitava impropérios, pois, passado o primeiro susto, um horror mais calmo se estabeleceu, uma fagulha de compreensão.

Juliano se graduara em História e era bom leitor, mas não um especialista naquele período. No entanto, as vestimentas daqueles prováveis franceses, a forma com que caçoavam uns dos outros, enquanto bebiam o líquido rubro de algumas garrafas, possivelmente algum destilado, levou Juliano a sugerir que se tratavam na verdade de piratas.

Nesse caso, o risco de uma aproximação era muito maior. Bem fariam em dar meia volta e procurar alguma povoação, ou simplesmente tentar a sobrevivência em meio à mata, pois a noite já descia seu véu negro sobre a paisagem.

Juliano bem sabia que a Baía de Guanabara é cercada por fortes. O Forte do Gragoatá, embora um pouco diferente do que ele conhecia, ali estava como prova. Eram o instrumento de defesa – nem sempre efetivo – contra incursões de conquistadores ou corsários.

Tudo de que ele se lembrava era que aconteceram ao menos duas grandes incursões de corsários franceses seguidas na Guanabara, a primeira sendo rechaçada, o que induziu o governo colonial a erro acreditando que as fortalezas que guarneciam a entrada ou barra da baía eram inexpugnáveis; no ano seguinte, uma armada mais poderosa em homens e em armas, e chefiada por um pirata de maiores capacidades, de cujo maldito nome Juliano não conseguia se lembrar, apanhou a cidade de calças arriadas, e permaneceu aqui certo tempo, só saindo após obter duro resgate.

Só agora ocorria ao historiador que nada aprendera sobre alguma eventual chegada dos franceses à Vila Real da Praia Grande, a que hoje é Niterói. Mas seria natural que, em busca de saques e de debelar focos de resistência como aquele forte, eles chegassem ao outro lado da Baía, sendo tão próximo da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Seriam assim aqueles lobos do mar membros da armada que tomara a cidade do Rio?

Enquanto confabulavam, Juliano mantinha o olhar fixo na movimentação daquela clareira. Foi quando percebeu que um dos indígenas, aparentemente um idoso, devido aos seus longos cabelos brancos, estava virado na direção em que eles se encontravam, e parecia mesmo observar fixamente aquela posição. Mesmo a boa distância, esse breve momento de cruzamento de olhares fez o velho, que tinha como os demais as duas mãos amarradas à frente de seu corpo, abrir uma de suas mãos, de onde deixou escapar um fulgor azul de grande singularidade. Era a concha! A concha que os jogara naquele pesadelo brilhava nas mãos do índio que dera as costas aos franceses e parecia ter certeza de que alguém estava ali, naquela mata, observando-os.

Havia algo familiar no olhar daquele ancião. E havia algo de sinistro no fato dele não suspender os olhos que pesavam sem cessar sobre a figura de Juliano – e como que apenas sobre a dele.

Agora o mistério ganhava novas cores; melhor, uma única e fulminante cor azul, uma concha ou gema ou olho-do-diabo ou que diabos fosse que tinha ou precisava ter a resposta. A explicação para tudo aquilo poderia esperar, mesmo que pelas eternidades. Mas era preciso apossar-se da concha; ela os lançara naquele sonho-pesadelo, e talvez fosse a porta de saída. No entanto, para isso talvez fosse necessário não apenas aproximar-se mais do grupo de índios, mas provavelmente libertá-los – pois o velho exibira a concha como um chamariz –, o que aconteceria não sem luta contra aquele corpo de piratas, que eles sequer sabiam quantos eram. O que quer que fosse toda aquela desgraça, a maldita concha era o graal a ser reconquistado.

Edvaldo, exausto, propôs que esperassem o dia seguinte e o andamento da situação, para analisar uma melhor maneira de proceder. Mas a questão era clara para Juliano: eles estavam favoravelmente próximos do pequeno acampamento pirata, e a noite já caíra. Era preciso se aproximar e soltar os índios, e apanhar a concha daquele estranho personagem, e se necessário fosse, dar cabo daquelas brancas ratazanas do mar.

Juliano perguntou se algum de seus companheiros já havia matado alguém. Espantadas, cabeças balançaram-se lateralmente em resposta. De toda forma, ambos foram militares antes de optarem pela mais rentável profissão de mergulhadores civis da Petrobrás. Ao menos possuíam treinamento militar.

*    *      *

 

O trio esperou por horas até que a maior parte dos franceses de guarda adormecesse.

Ao perceber a aproximação do grupo, o velho, como quem já aguardasse aquele movimento, cutucou alguns dos outros índios que lhe estavam próximos, acordando-os. Com sua faca de mergulho Morakniv, por acaso comprada numa loja de militaria nesta mesma futura cidade de Niterói, Juliano cortou primeiro as cordas de seu pulso. Rapidamente outros foram desenlaçando-se.

Enquanto isso, os dois vigias que montavam guarda mais próximos aos indígenas foram alcançados pelos demais mergulhadores. Edvaldo não hesitou em cortar, mesmo desajeitado, a garganta do francês, adormecido sobre uma pedra de granito.

Foi o jovem Mauro, mais uma vez, quem pôs tudo a perder. Ao aproximar a faca da garganta do embriagado francês, Mauro cometera o erro de puxar primeiro sua cabeça, agarrando-o pela farta cabeleira, como se desejando melhor expor o alvo de sua navalhada. Aquilo foi o suficiente para o pirata despertar em susto e em ação, dirigindo um soco para trás, que, embora pegasse de raspão no rosto de Mauro, lhe atrapalhou o movimento de corte. O que se seguiu foi uma luta corporal, barulhenta pelos gritos do francês.

Juliano foi pego de surpresa pela gritaria; estava absorto e algo desesperado não tanto em libertar os demais indígenas, mas em inquirir, mesmo sem palavras, ao velho índio que aparentemente, ao abrir as mãos, não mostrava mais a maldita concha. Outros gritos em francês se fizeram ouvir à distância. Agora era tarde para dar atenção ao velho. Gritando, Juliano alertou Edvaldo:

– Apanhe a espada do francês e vá ajudar Mauro! Depois recuem!

De posse da gasta espada do corsário que abatera, afoito e tremendo pelo desespero da situação, Edvaldo lançou-se sobre os dois corpos que se engalfinhavam na escuridão, atravessando a barriga do francês bem à direita de seu umbigo, mas causando um pequeno talho num dos braços de Mauro.

O primeiro clarão espocou pela noite da Guanabara, detonado a partir do bacamarte de uma sentinela dos sicários.

Dando a mão ao igualmente trêmulo Mauro, Edvaldo o puxou para junto de si e ambos correram em desabalada carreira em direção a Juliano e alguns indígenas. A maioria dos quais havia fugido, mas sete deles permaneceram e, apanhando paus e pedras, faziam menção de oferecer combate aos seus captores.

No entanto, em campo aberto e contra o fogo de bacamartes, a causa estaria perdida. Assim, Juliano, tocando o idoso e o forte índio de meia idade que parecia ser o líder daqueles que ficaram, apontou para um amontoado de arbustos a alguma distância, justamente de onde ele e seus companheiros vieram, antes de iniciar o assalto ao acampamento.

Agora eram já diversos os franceses que vinham em socorro de seus companheiros. Da mata, sem condições, pela geografia do lugar, de prosseguir na fuga, os fugitivos espreitavam o avanço dos franceses.

Nesse entrevero, Juliano, sempre perseguido pelo olhar severo do velho, que talvez fosse um pajé, pelo diferenciado de plumas que tinha enfeixado em pulseiras em seus braços, apanhou a mão do ancião e fez o movimento que o mesmo fizera antes, exibindo a concha à distância. Em resposta, o velho, que não emitia palavra, balançou a cabeça negativamente, enquanto Juliano se enchia de fúria. Num rompante, garroteou o pescoço do velho com uma de suas fortes mãos, enquanto seus olhos se cruzavam, uma vez mais, em silêncio. O velho não tentou se desvencilhar, e manteve sua expressão impassível, como que em desafio. Mas, daquele olhar firme, porém cansado, um brilho diferente refletiu a suave luz da lua minguante que abraçava os céus daquela noite fantástica. Eram lágrimas.

Foi então que Juliano sentiu o maior dos desconcertos. Havia algo de familiar naquele olhar mudo. Familiar o bastante para o fazer afrouxar sua pegada, e por fim soltar o velho.

Em meio à confusão, uma outra ação precipitada pôs novamente tudo em risco: vendo a aproximação de dois franceses, que se achegavam à posição em que se acoitavam, três dos indígenas, ao invés de aguardarem uma maior proximidade, lançaram-se em ataque sobre a dupla, emitindo gritos de guerra. Dois deles atiraram pedras, uma das quais logrou atingir o ombro de um dos corsários, mas o golpe foi impotente para derrubá-lo ou tirá-lo de combate. Em resposta, os franceses dispararam suas garruchas, atingindo um dos atacantes. Sacando logo suas espadas, os navegantes habituados a sangue rapidamente perfuraram os dois indígenas da vanguarda, cujos paus foram impotentes para impedir os golpes fulminantes dos floretes.

Apanhados pela ação temerária dos índios, Mauro e Edvaldo lançaram-se em socorro aos companheiros. Uma batalha de floretes, paus e socos se seguiu; ao custo de mais uma vida indígena, e um belo corte na perna de Edvaldo, os piratas foram sobrepujados.

Mas agora sua posição estava descoberta; pelo menos quatro outros franceses avançavam sobre o grupo formado pelos dois mergulhadores e o indígena restante. Era tarde demais para recuos; Juliano despediu-se de entre as moitas em direção aos seus companheiros, ansioso por chegar a um dos corpos franceses – e a uma das espadas, pois tudo que portava era uma faca – antes da aproximação dos demais atacantes.

Por sorte, apenas um elemento dessa nova leva de piratas portava uma garrucha, que disparou a esmo, sem acertar ninguém. Juliano, alcançando um dos corpos, apanhou a espada e cerrou fileira, lâmina em punho, ao lado de Mauro e Edvaldo, como três desmazelados ou ao menos improvisados mosqueteiros. O índio que os acompanhava apanhou um pedaço de pau; outros dois indígenas que seguiram Juliano logo se juntaram ao corpo de resistentes, um deles apanhando também uma das espadas. O velho, débil demais para combater, ficara sob a cobertura das moitas.

A luta que se seguiu, talhada pela penumbra, foi marcada pelo despreparo dos mergulhadores no manejo da espada, o que foi suprido pela fúria dos indígenas, que lutavam com um furor surpreendente, como se fossem vikings ou guerreiros berserkers normandos. Corsários, indígenas e aqueles viajantes temporais, dimensionais ou egressos do sonho se engalfinharam num amontoado de faíscas, gritos e sangue.

Dos mergulhadores, o primeiro a tombar fora Edvaldo; sua barriga fora rasgada. Sentindo uma dor excruciante, caíra ao chão enquanto segurava tecidos pegajosos e quentes – suas vísceras. Impossibilitado de levantar-se, era pisoteado pelos combatentes, e enquanto o tempo transcorria ele se espantava, segundo a segundo, do fato de que ainda não morrera. Se era um sonho tudo aquilo, ele não devia ter acordado?

Apoiado por dois dos indígenas, que se atracaram a um dos franceses, Mauro conseguira desferir uma estocada certeira no rosto de seu oponente; mas a inexperiência em batalha o fizera baixar a guarda, acreditando estar vencido o inimigo. Avançando como um touro, mesmo tendo um dos índios agarrado em seu cangote, antes de tombar sem forças o ferido francês estocou de raspão o pescoço de Mauro, cujo sangue passou a jorrar. Empapado pelo sangue que mal podia divisar num momento em que nuvens cobriam a fraca luz da lua, Mauro cruzava finalmente a tênue linha vermelha que separa a sanidade da loucura.  Desnorteado e gritando palavras desconexas, pensava apenas em fugir. Retornar ao mar, mergulhar em busca daquela estranha concha, aquela que deflagrara o clarão. E foi o que fez: correu para a praia, correu em busca do mar que nunca esquece os seus. Seu sangue esvaía-se como petróleo ruim, fino, enquanto as águas já lineavam seus joelhos. “A concha, a concha!”, gritava enquanto misturava seu sangue com a água salgada; a concha que ele morreria antes de encontrar...

Ocupado em duelar contra o último dos franceses em pé, Juliano nada pôde fazer pelo amigo; enquanto mais dois franceses se aproximavam, nosso involuntário libertador de escravos contabilizava as baixas: seus dois companheiros aparentemente se haviam perdido; dos seis indígenas combatentes, apenas dois deles estavam ainda em pé, um deles amargando uma profunda ferida na costela, enquanto, armado com um florete, fazia cerco ao francês. Aproveitando o momento de pausa, enquanto os quatro combatentes se mediam, Juliano apanhou mais uma espada, ocupando agora suas duas mãos. Era preciso eliminar aquele francês antes que os outros chegassem ao teatro de batalha; imediatamente avançou contra seu oponente, sendo seguido pelos dois indígenas. Aproveitando-se das duas espadas, após o primeiro ataque, a título de distração, executou um movimento em forma de X, recebendo – como imaginara – o contra-ataque do francês, prendendo momentaneamente sua lâmina. O suficiente para um ataque do indígena, que, se errou seu golpe, ao menos distraiu o oponente o suficiente para que Juliano lhe apunhalasse no peito.

À distância, um dos franceses que acorriam em socorro de seus comparsas, armado com um bacamarte, ajoelhou-se para fazer pontaria e disparou. O instintivo grito de “abaixem-se” de Juliano não surtiu efeito algum sobre seus companheiros, falantes talvez de alguma língua do tronco tupi-guarani; um deles foi atingido. O outro dos franceses, armado de uma garrucha, seguia avançando, enquanto seu companheiro parecia estar já recarregando a arma.

Era o momento da verdade; apanhando as duas espadas numa única mão, Juliano arremeteu contra o francês, correndo à toda, no que foi seguido pelo índio que sobrevivera.

A certa distância, enquanto o francês tentava fazer pontaria enquanto corria, Juliano aproveitou sua mão livre – para isso a deixara vaga – para lançar sua faca de mergulho como um dardo em direção ao seu oponente. A faca acertou o gorducho pirata num dos braços, por sorte o que empunhava a garrucha. O francês a soltou, mas imediatamente se pôs a catá-la por entre as moitas. Antes que pudesse encontrá-la, Juliano já saltava sobre o sicário com suas duas espadas, atravessando-o em pontos paralelos, pouco abaixo do pescoço. O homem que sempre fora um bom aprendiz no que quer que se propusesse a fazer, demonstrava já uma insuspeita habilidade na antiga arte de retalhar carne humana.

Enquanto isso, o indígena avançara em direção ao outro pirata. O sicário finalizava a recarga de seu grande trabuco, enquanto o índio, como que cavalgando um corcel de puro ódio, gritava e corria a uma velocidade que pareceu a Juliano sobrenatural. Ao levantar a ponta da espada, como se fora uma lança, para atravessar o atirador agachado, foi freado pelo impacto das bolotas de ferro contra seu peito. Tombou a menos de cinquenta centímetros de seu oponente.

Agora era Juliano quem corria em direção ao atirador, que se levantara e, sacando sua espada, aguardava como que pacientemente a investida do mergulhador. A perícia daquele último corsário fez-se logo evidente; mesmo com uma única espada, defendia-se com certa facilidade dos ataques das duas espadas de Juliano. Em pouco tempo, dois talhos, um num braço, pouco abaixo do deltoide, e outro num antebraço, faziam Juliano sangrar.

A hiena do mar, até ali em silêncio, perguntou naquele seu estranho francês, quem era Juliano. O mergulhador, mesmo julgando compreender o teor da pergunta, nada respondera; seu oponente então fez a mesma pergunta, agora em espanhol. O jogo de esgrimas continuava, e a situação era desfavorável para nosso cansado e não treinado combatente.

Mas um flash mudou sua sorte. De longe, um brilho azul muito intenso iluminou o local em que combatiam – um brilho que Juliano já conhecia, mas agora muito mais forte; a momentânea distração que afetou o hábil espadachim francês foi suficiente para Juliano estocar-lhe no baixo-ventre. Seu adversário, como que refeito do susto, imediatamente reagiu causando-lhe um profundo corte no rosto, antes que Juliano pudesse furá-lo mais uma vez, agora com sua outra espada.

Recuando, o mergulhador soltou uma das espadas para apalpar sua ferida; o francês, arrancando forças sabe-se lá de onde, tentou ainda avançar contra seu oponente, mas viu-se impossibilitado pela dor que provavelmente era causada pela perfuração de sua bexiga; tombou ao chão.

Respirando com dificuldade, exausto e empapado do rublo fluído vital, somente agora Juliano percebera que o corte em seu antebraço vertera muito sangue, e o fluxo ainda não estancara. Voltando a atenção para seus companheiros caídos, recuou averiguando e confirmando a morte de todos eles, enquanto tornava para a posição em que deixara o velho.

Após alguns minutos de trôpega marcha, chegou à moita onde deixara o pajé.

Seus olhos cansados e mudos mais uma vez se cruzaram; um inesperado abraço fez com que Juliano largasse as lâminas escuras de sangue coagulado e quedasse em espantado silêncio. Soltando-o, o velho abriu a boca, donde imediatamente explodiu o clarão azul. O sagaz pajé escondera a pedra, todo aquele tempo, dentro de sua boca, que por sinal jamais se abrira até então. Por isso Juliano não a encontrara, quando da libertação do velho e dos demais.

Apanhando a concha rutilante numa das mãos, o ancião agachou-se, como que iluminando o solo. Apanhando com a outra mão um graveto, traçou um pequeno risco no chão. A partir deste, traçou diversos outros riscos, como se fossem galhos de uma grande árvore. Apontando então para o primeiro risco que fizera, levou o dedo em direção ao próprio peito, como dando a entender que aquele risco o representava; levando o dedo então a um dos últimos “ramos” daquela grande árvore, apontou para Juliano. Em seguida levantou-se, abaixou a cabeça como que em cumprimento, e depositou a pedra nas mãos do mergulhador.

Após ou apesar do baque daquela estranha comunicação, Juliano acreditou, mesmo contra o improvável, compreender o que o velho tentara explicar. Talvez Juliano fosse um descendente daquele ancião; sim, um descendente de quase quinze gerações posteriores. Mas, como?!!! E ainda que o fosse, o que aquele pajé, velho antepassado do mergulhador, poderia saber sobre o tempo e suas singularidades? Como ele pudera trazê-lo até ali? E para quê? Um tal poder, magnífico, seria usado para levar a ele e a seus companheiros até ali, apenas para libertar aqueles índios e para morrer? Uma tão incompreensível viagem no tempo, por tão pouco? – pensava o historiador enquanto segurava a concha.

Antes que pudesse tentar, por sinais ou como fosse, indagar ao seu “antepassado” como utilizar a concha para retornar ao seu ponto de origem, pois ele a empunhara e nada acontecera, o idoso apontou para a direção de onde Juliano e seus companheiros vieram, onde haviam encontrado a concha, que por sinal era a mesma direção donde parecia que o sol, que já dava seus primeiros sinais, iria nascer.

Sem poder dizer palavra, sequer para expressar sua revolta contra a arbitrariedade daquela situação que custara a vida de seus companheiros, sequer para perguntar que tipo de poder mágico era aquele, Juliano, confuso e sentindo, somente agora, os humores do terror, pôs-se a correr.

Segurando firme a pequena concha anil, correndo em desespero buscando como que acordar, ainda sangrando, Juliano pôde ver, sob um promontório, os demais indígenas que ajudara a libertar – crianças, mulheres e idosos –, observando-o em silêncio, enquanto ele avançava na direção donde nasce o sol.

 

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NOTAS:

 

O Rio de Janeiro sofreu dois ataques corsários consecutivos, no século XVIII. Em 1710, uma tentativa capitaneada pelo pirata Jean-François Duclerc foi rechaçada pelo fogo coordenado das fortalezas que margeavam a barra da Baía. Os portugueses haviam sido providencialmente avisados da chegada dos piratas. O que não aconteceu no ano seguinte, em 1711, quando uma maior armada (tendo quase o triplo de navios da anterior), aproveitando-se da bruma da manhã e do fato de parte dos fortes estavam desguarnecidos, penetrou ousadamente na Guanabara, venceu suas defesas e saqueou durante dois meses a cidade, tendo boa parte da população fugido para o interior. Somente após receberem resgate, deixaram a cidade. Seu chefe era o pirata e aventureiro francês René Duguay-Trouin.

 

Quase dois séculos antes, quando franceses sob o comando de Vilegagnon se aliaram a índios tamoios no domínio da Baía de Guanabara (onde fora fundada a colônia francesa denominada França Antártica), o cacique temiminó Araribóia auxiliou os portugueses na expulsão dos conquistadores franceses e também dos tamoios, tribo inimiga da sua, em 1567. Como recompensa, recebeu as terras onde fundou Niterói.

 

O Forte de São Domingos do Gragoatá foi originalmente construído em volta de uma grande pedra, que em tempo posterior foi cortada para a abertura de uma estrada, margeando a costa. Disso decorre a diferença entre o forte conhecido pelos mergulhadores, e o que encontraram no “passado”.

A região que margeia o forte era constituída por uma longa linha de praia; aterramentos posteriores diminuíram essa linha, mas deram espaço para a expansão do centro niteroiense, e para construções tais como os prédios do campus Gragoatá da UFF (Universidade Federal Fluminense).

 


Este conto faz parte do livro Fabulário Índigo. Disponível em formato impresso (aqui) e e-book (pela Amazon, aqui).


quarta-feira, 15 de setembro de 2021

As melhores frases de Albert Schweitzer reunidas em livro gratuito para download

 


Albert Schweitzer foi um campeão da vida. Nascido em 1875 em Kaysersberg, no então Império Alemão, desde jovem Albert mostrou-se possuidor de múltiplos talentos, e aos trinta anos já era professor, músico, escritor, teólogo e pastor estabelecido e renomado. Foi quando resolveu retomar os estudos num campo totalmente diverso: A Medicina. Não o fez por mero capricho intelectual: Seu propósito era dedicar-se a socorrer pessoas na desassistida África.

E assim ele fez, contra tudo e contra todos, pagando os mais duros preços – durante a Primeira Grande Guerra, já em África, chegou a ser aprisionado pelos franceses, passando anos num campo de concentração. Mas, retomada a liberdade, retornou ao serviço humanitário no qual gastou-se até o fim de seus dias.

Entre um atendimento e outro em sua clínica médica em Lambaréné, na África Equatorial Francesa (atual Gabão), ele escrevia livros que impactariam os homens de seu tempo e que seguem impactando e confrontando a cada um que se lhes depara.

Suas palavras e seu abnegado exemplo de pacifista, humanitarista e pensador ético foram lampejos que iluminaram o conflagrado Século XX, e lhe valeram o Prêmio Nobel da Paz, em 1952.

Aqui, nesta breve obra, coligimos um pouco do melhor do pensamento deste gigante do bem.

Para baixar o e-book (em formato PDF) pelo Google Drive, CLIQUE AQUI.


quarta-feira, 1 de setembro de 2021

SOBRE UM POEMA - Herberto Helder




Sobre um poema

 

Um poema cresce inseguramente

na confusão da carne,

sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,

talvez como sangue

ou sombra de sangue pelos canais do ser.

 

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência

ou os bagos de uva de onde nascem

as raízes minúsculas do sol.

Fora, os corpos genuínos e inalteráveis

do nosso amor,

os rios, a grande paz exterior das coisas,

as folhas dormindo o silêncio,

as sementes à beira do vento,

- a hora teatral da posse.

E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

 

E já nenhum poder destrói o poema.

Insustentável, único,

invade as órbitas, a face amorfa das paredes,

a miséria dos minutos,

a força sustida das coisas,

a redonda e livre harmonia do mundo.

 

- Em baixo o instrumento perplexo ignora

a espinha do mistério.

- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.


segunda-feira, 16 de agosto de 2021

A Pedra Filosofal - Um poema de António Gideão sobre o poder dos sonhos

 

Markus Ray's

A PEDRA FILOSOFAL

Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
para-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultrassom, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

domingo, 1 de agosto de 2021

DE QUEM A CULPA? Um poema em homenagem às Bibliotecas - Victor Hugo

 


De quem a culpa?

Victor Hugo

- Tu fostes incendiar a Biblioteca?
- Sim,
           Queimei-a.
- Mas é um crime inaudito e ruim,
Que mesmo contra ti, infame, praticaste!
A luz que a tua alma aclara, intrépido, apagaste!
É a tua própria luz que acabas de soprar.
Isso que teu ódio ímpio e louco ousa queimar
é teu bem, teu tesouro, a herança da tua alma,
o livro te protege, instrui, anima e acalma.
O livro toma sempre a tua defensiva.
Vale uma biblioteca o ato de fé, que agora,
cada uma geração, nos livros, rediviva,
presta: é a noite rendendo um testemunho à aurora.
Oh! nesse venerando acervo de verdade,
nessas obras geniais jorrando claridades,
tumba da antiguidade erguida em repertório.

Nos séculos de luz, nesse genuflexório,
no passado, lição que soletra o porvir.
Nisso que se criou para não se extinguir.
Nos poetas, nos heróis, belos, imarscíveis,
na ruma divinal dos Eschylos terríveis,
dos Homeros, dos Jobs, de pé sobre o arrebol,
em Moliére, em Voltaire e Kant, à luz do sol,
ímpio! Foste chegar uma tocha inflamada!

Todo o espírito humano em cinza, em fumarada!
Esqueceste que o livro é teu libertador?
Lá na altura ele está, como altivo condor:
brilha. Porque ele brilha é que nos ilumina;
destrói o cadafalso, a miséria, a chacina.

Ele fala, e nos diz: nada de escravo ou pária.
Abre um livro, vai ler: Platão, Milton, Beccaria,
esses profetas: Dante, e Corneille e Shakespeare;
a alma imensa que têm, em ti sentes surgir;
lendo-os, sentes-te igual a eles todos, altivo;
lendo, tornas-te meigo, austero e pensativo.

Eles, em tua mente, aumentam de grandeza.
À escuridão de um claustro a alva vem dar clareza.
À proporção que ele entra e afunda em tua mente,
tornas-te mais feliz, tornas-te mais vivente.
Tua alma torna-se apta a arguida responder.
Reconheces-te bom e sentes derreter
como a neve ao calor, a vaidade sombria,
o mal, o preconceito, a tirania!

Pois, no homem o saber é o que chega primeiro;
depois a liberdade. Esta divina luz
é tua, e foste tu que, de pronto, a apagaste.
O livro atinge os fins que tu próprio sonhaste.
Entra em teu pensamento e solta e desenleia
os grilhões com que o erro, a verdade aperreia.

A consciência é um nó górdio horrível, que asfixia.
O livro é teu guardião, teu médico, teu guia.
Tua raiva, ele acalma, e tira-te a demência.
Eis o que perdes, tu, por tua intransigência.
O livro é teu tesouro; é a riqueza, é o saber,
o direito, a verdade, a virtude, o dever,
a razão, aclarando a tua inteligência.
E tu queimaste tudo, infame!...
- Eu não sei ler!

Tradução de Modesto de Abreu
In O Livro de Ouro da Poesia da França (Org. R. Magalhães, Ediouro).


segunda-feira, 5 de julho de 2021

Os poemas mais motivacionais da literatura brasileira e mundial, num e-book gratuito

 


A poesia, irmã mais velha feita de mãe das artes, foi desde sempre uma celebração da vida. Antes de a palavra ser escrita, ela foi sempre falada: Narrativas de sabedoria transmitiam de indivíduo a indivíduo o que de melhor a sua e outras culturas haviam gerado.

Fiel a uma tal linhagem, esta pequenina antologia reúne exatamente o que seu título expressa: poemas luminosos. Versos com capacidade de insuflar os mais valiosos sentimentos e valores. Mas, espere: Não temos aqui uma seleta de poesia piegas, uma coleção de “poemas de autoajuda”, de forma alguma; mas sim um florilégio de verdadeiras obras primas, em grande parte colhidas de alguns dos maiores nomes da Literatura, seja brasileira ou universal.

Numa primeira vista, este livro engana: De um lado vê-se sua singeleza em páginas, tão poucas; doutro, e isso dependerá do após a leitura, a profundidade alcançada por algumas das mensagens aqui expostas é de uma riqueza com que poucas vezes o leitor, mesmo experimentado, se haverá deparado.

Poemas que celebram a vida e o poder da resiliência, promovendo o exercício daquele outro olhar, o poético, que desnuda mistérios, bordeja e adentra ao sagrado e extrai o melhor de tudo.

Ao fim deste volume, oferecemos ao leitor uma pequena mensagem de afirmação da vida e seu sentido virtuoso.

Um livro  – gratuito  para ler e reler, guardar e compartilhar.

 

PARA BAIXAR O E-BOOK GRATUITAMENTE PELO SITE GOOGLE DRIVE, CLIQUE AQUI.


sexta-feira, 25 de junho de 2021

A ILHA, um conto de Sammis Reachers

 



A Ilha

 

Depois de apenas três meses esqueci o meu nome. Não me ocorreu escrevê-lo: Estava ocupado, sobrevivendo.

Os anos não podia esquecê-los, pois há comigo um Patek, relógio que roubei sob certo sol, em certo mês de primavera, em alguma cidade do subcontinente que fora um dia chamado América do Sul – e este, sabe-se lá o porquê, é dos poucos dias de que recordo.

 

Estronda e tomba o tempo,

luz lilás,

obscuro óbito,

carretel de coisículas enrodilhadas em escaravelhos.

estrondestranhoastro brilha e berra no sobrehorizonte

Eu, Gregor Samsa, Heinrich Faust,

Rodion Românovitch Raskólnikov, Leopold Bloom

estelionatário confesso-me:

degredem-me.

 

 

Nesta ilha em que me acoitei, amontoei-me de lacunas: Além do comprometimento do sistema respiratório, o vírus tinha um outro efeito, não colateral, mas secundário e utilitariamente sádico: Apagar memórias.

Exempli gratia: Não sei mais como cheguei aqui. Lembro de cenas numa lancha, e isso finda o memorial.

Nesta pequena ilha encontrei uma imensa casa e oito cadáveres espargidos em sua estrutura. A ausência de ferimentos pode indicar que foram mortos pelo vírus. Avento hipóteses; era eu o dono do lugar? Um funcionário? Um amigo, parente do proprietário? Tudo que tenho é o estar-aqui, tudo que sei foi que aqui cheguei.

Na pequena biblioteca, livros em diversas línguas. Na única que conheço ou penso conhecer, uma coleção dita “Clássicos da Literatura”. Suas páginas sedimentaram-se como minhas únicas companhias, aqueles poucos livros em capa vermelha, seus personagens, suas personas. Suas biografias e transenlaces na vida passaram a ser os meus, eu o desmemoriado, eu o de pulmão fulminado por um vírus que não me lembro onde peguei e que deveria ter me matado, mas não matou (sei apenas que uma guerra grande mastigou as coisas humanas, todos contra todos).

 

 

Já nascemos com a turbada gravidade

de sobreviventes de um naufrágio

raça desmemoriada

quimiocontrita no corpo de um,

tênue tempestade nas folhas,

vírus multicelular em busca de não sei

 

Sparrings sem rosto no ringue do Tempo

tentando encaixar um soco

encaixar um soco no Tempo sem rosto

 

Há algum tempo me ocorrem poemas. Era poeta? Não sei. Mas acredito que não. Tanto que quando escrevo, nem me sinto: É como uma possessão. Será então a poesia, ou a atividade poética, uma demência das faculdades cerebrais?

Lá fora houve uma guerra, uma guerra de finalmente acabar com tudo. Meus frangalhos, a ilha, o lixo feito de destroços que o mar traz, dão conta do que não lembro e no entanto sei que aconteceu.

 

Lá fora:

Lá na imbricação dos mesmerizados

lá onde o progresso deflorou as virgens esfaimadas

que se lhe apresentaram;

progresso, demônio que aluiu os homens

lá fora

em seus estratos, no que voa no espirro

 

 

O barco que me trouxe jaz sem combustível; os geradores à diesel da ilha morrem da mesma sede. As frutas que como, as pequenas aves e répteis, talvez suportem meu pequeno consumo, mas e daí? Eles virão? E quem são eles, e quem sou eu? Como temer um passado que ignoro? O esquecimento, falsa liberdade ou paz provisória, me trai: Lembro ter roubado um relógio. Fui ladrão? Antes ou depois da ruína do mundo, dos mundos? Talvez tenha roubado por fome, talvez por vingança.

Alguém lá no além da ilha, ou no tudo dito além de mim (pois sem um nome, entendi finalmente o estigma que nos conforma, e contra o qual relutamos com a arma que pudemos, adaga cega que resolvemos chamar História: se sou um homem, tudo é além), deflagrou uma guerra universal, e ele talvez ainda esteja lá, e ele talvez ainda me encontre. Ou já me tenha encontrado e esquecido, nesta ilha-mausoléu, neste Alzheimer biodeflagrado por um vírus genocida.

Escrevo palavras na areia, ou poemas, essa forma primitiva de civilização das palavras, e cismo: Talvez não tenha existido uma Segunda Guerra Mundial, ou uma Primeira. Sequer os morticínios, enquanto eventos isolados, de Ruanda ou do Kosovo. Talvez seja tudo uma única e ininterrupta guerra, da morte de Abel ao Armagedon. Sem dias de trégua.

 

Ilha feridenta,

antologia de chagas

calangos e fragatas desintestinados e assados,

culinária de dramas, axiologia

do que é poético, capuz que ao homem encerra

 

Ilha tropical e sua mansão deserdada,

 nave-desespero em que o Homem

nadaformou a Terra.

 Publicado originalmente no Jornal Daki.


Este conto faz parte do livro Fabulário Índigo. Disponível em formato impresso (aqui) e e-book (pela Amazon, aqui).


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