domingo, 18 de março de 2012

Rainer Maria Rilke: O LEGENTE

Há muito tempo, desde que a tarde se ouvia
Com o murmúrio da chuva nas janelas, eu lia.
O vento lá fora, já o não escutava:
O meu livro pesava.
Como se fossem rostos, as folhas sob o meu olhar
Escurecem de tanto pensamento
E, envolvendo a leitura, avolumava o tempo.
De súbito desce sobre as páginas um fulgor,
E em vez de confusas palavras - um tormento -
Há em todas só... noite, noite só, a nascer.
Não olho ainda para fora, mas já as longas
Linhas se desfazem, e as palavras rolam
Do fio que as liga, vão para onde querem...
E então eu sei que há céus sem fim
Sobre o esplendor e a plenitude dos jardins;
O sol teve de nascer mais uma vez. -
E agora é verão e noite o horizonte:
O que andava disperso em grupos se une,
Poucos, e há gente pelos caminhos escuros,
E longe, estranhamente, como se outro sentido
Tivesse, ouve-se o pouco que ainda acontece.

E ao levantar do livro o olhar agora,
Nada me é estranho, tudo tem grandeza.
O que aqui dentro eu vivo, está lá fora,
E aqui e lá não tem limite o mundo;
Só eu me teço mais com tudo isso,
Quando os meus olhos se ajustam às coisas
E à grave singeleza dessa gente -
O mundo cresce então, num golpe de asa.
O céu inteiro o abraça, é o que se sente:
E a estrela d' alba é como a última casa.


Tradução de Maria Teresa Dias Furtado
In Das Buch der Bilder (O Livro das Imagens), 1902
via http://www.avozdapoesia.com.br

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