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segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Fabulário Índigo, novo livro de contos de Sammis Reachers

 



A presente coleção de contos, caprichosa ou inconsequentemente designada Fabulário Índigo, é um pequeno tour de force cujas narrativas transitam desde a ficção científica utópica e distópica à hodierna crônica da violência urbana, da fábula moral ao experimentalismo metafísico, do suave horror ao humor mais escrachado. Tais eixos genéticos/genéricos não são de todo insulares, independentes, mas costumam se interpenetrar ao longo dos trinta e um contos aqui reunidos.

Costumo dizer que escrever poesia é encontrar imagens, enquanto escrever prosa é encontrar saídas. Poeta com infiltrações na prosa, aqui busquei saídas, embora, fiel à minha nomeadura, não me esqueci nem escarneci do poder fundacional e transcendental das imagens.

Em termos bibliográficos, iniciei minha produção ficcional com O Pequeno Livro dos Mortos, volume de contos publicado em 2015. De lá até aqui, a produção se desdobrou em momentos de maior ou menor euforia, ao sabor dos ventos benfazejos/malsãos da inspiração. Este Fabulário, espero, é a continuação e o alargamento não de um esforço, mas de um tão humano prazer de contar.

*   *   * 

Alguns dos contos do livro receberam boa acolhida em concursos e revistas literárias.

O conto que abre a obra, A Segunda Vida de Gregor Samsa, foi escrito imediatamente após a publicação de O Pequeno Livro dos Mortos, e foi publicado na Revista Philos v.3 n°.24 (2017). Em 2020, saiu na Revista LiteraLivre (v. 04, n. 21).

Sahhir, o Perscrutador, encontra-se com Deus foi igualmente publicado pela Philos, ainda em 2017 (Philos v.3 n°.24), sendo veiculado também na Revista Ligeiro Guarani (v. 03, n. 03, 2020).

A Solução Final foi publicado na revista Brasil Nikkei Bungaku (n.64, 2020), bem como no site Escrita Cafeína.

A Ilha obteve a primeira colocação em sua categoria no II Concurso Literatura de Circunstância, organizado pela Universidade Federal de Roraima; recebeu ainda Menção Honrosa no 19º Concurso Literário Paulo Setúbal, promovido pela cidade de Tatuí – SP, ambos em 2021.

O conto Na Véspera de Um Dia Santo Numa Cidade Fulminante foi um dos vencedores do concurso promovido pela Editora Dando a Letra, sendo publicado na antologia Quem Será Pela Favela?.

Seu Onório do Bairro Antonina foi igualmente um dos vencedores do primeiro concurso Contos Fantásticos Niteroienses, sendo publicado em livro pela Vira-Tempo Editora.

O conto Estranho Horror na Senzala da Fazenda Colubandê foi publicado na Revista Mystério Retrô em sua edição de n.15/2021.

Como Quem Guarda Uma Cidadela foi publicado no primeiro volume da Revista Estrofe, em 2022. E também saiu na Revista Sarau Subúrbio, em 2021.

Para além disso, a maioria dos contos foi publicada em minha coluna no Jornal Daki, veículo de informação e opinião de terras gonçalenses.


O livro impresso (formato 14x21cm; 204 páginas) está disponível para aquisição diretamente com o autor, ao preço de R$ 30,00, já com valor de frete incluído. Escreva para o e-mail:  sreachers@gmail.com ou pelo Whatsapp, (21) 98766-5576 .

Se você desejar o livro eletrônico, ele está disponível pela Amazon, ao preço de R$ 4,99, ou gratuito para aqueles que possuem a assinatura Kindle Unlimited. Confira AQUI.


terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

A Disciplina do Amor, um conto de Lygia Fagundes Telles



 Foi na França, durante a segunda grande guerra. Um jovem tinha um cachorro que todos os dias, pontualmente, ia esperá-lo voltar do trabalho. Postava-se na esquina, um pouco antes das seis da tarde. Assim que via o dono, ia correndo ao seu encontro e, na maior alegria, acompanhava-o com seu passinho saltitante de volta a casa. 

 A vila inteira já conhecia o cachorro e as pessoas que passavam faziam-lhe festinhas e ele correspondia, chegava a correr todo animado atrás dos mais íntimos para logo voltar atento ao seu posto e ali ficar sentado até o momento em que seu dono apontava lá longe. 

 Mas eu avisei que o tempo era de guerra, o jovem foi convocado. Pensa que o cachorro deixou de esperá-lo? Continuou a ir diariamente até a esquina, fixo o olhar ansioso naquele único ponto, a orelha em pé, atenta ao menor ruído que pudesse indicar a presença do dono bem-amado. Assim que anoitecia, ele voltava para casa e levava a sua vida normal de cachorro até chegar o dia seguinte. Então, disciplinadamente, como se tivesse um relógio preso à pata, voltava ao seu posto de espera. 

 O jovem morreu num bombardeio, mas no pequeno coração do cachorro não morreu a esperança. Quiseram prendê-lo, distraí-lo. Tudo em vão. Quando ia chegando aquela hora ele disparava para o compromisso assumido, todos os dias. Todos os dias. 

 Com o passar dos anos (a memória dos homens!) as pessoas foram se esquecendo do jovem soldado que não voltou. Casou-se a noiva com um primo. Os familiares voltaram-se para outros familiares. Os amigos, para outros amigos. Só o cachorro já velhíssimo (era jovem quando o jovem partiu) continuou a esperá-lo na sua esquina. As pessoas estranhavam, mas quem esse cachorro está esperando?... Uma tarde (era inverno) ele lá ficou, o focinho sempre voltado para “aquela” direção. 

in A disciplina do amor (1980, Nova Fronteira)


sexta-feira, 25 de junho de 2021

A ILHA, um conto de Sammis Reachers

 



A Ilha

 

Depois de apenas três meses esqueci o meu nome. Não me ocorreu escrevê-lo: Estava ocupado, sobrevivendo.

Os anos não podia esquecê-los, pois há comigo um Patek, relógio que roubei sob certo sol, em certo mês de primavera, em alguma cidade do subcontinente que fora um dia chamado América do Sul – e este, sabe-se lá o porquê, é dos poucos dias de que recordo.

 

Estronda e tomba o tempo,

luz lilás,

obscuro óbito,

carretel de coisículas enrodilhadas em escaravelhos.

estrondestranhoastro brilha e berra no sobrehorizonte

Eu, Gregor Samsa, Heinrich Faust,

Rodion Românovitch Raskólnikov, Leopold Bloom

estelionatário confesso-me:

degredem-me.

 

 

Nesta ilha em que me acoitei, amontoei-me de lacunas: Além do comprometimento do sistema respiratório, o vírus tinha um outro efeito, não colateral, mas secundário e utilitariamente sádico: Apagar memórias.

Exempli gratia: Não sei mais como cheguei aqui. Lembro de cenas numa lancha, e isso finda o memorial.

Nesta pequena ilha encontrei uma imensa casa e oito cadáveres espargidos em sua estrutura. A ausência de ferimentos pode indicar que foram mortos pelo vírus. Avento hipóteses; era eu o dono do lugar? Um funcionário? Um amigo, parente do proprietário? Tudo que tenho é o estar-aqui, tudo que sei foi que aqui cheguei.

Na pequena biblioteca, livros em diversas línguas. Na única que conheço ou penso conhecer, uma coleção dita “Clássicos da Literatura”. Suas páginas sedimentaram-se como minhas únicas companhias, aqueles poucos livros em capa vermelha, seus personagens, suas personas. Suas biografias e transenlaces na vida passaram a ser os meus, eu o desmemoriado, eu o de pulmão fulminado por um vírus que não me lembro onde peguei e que deveria ter me matado, mas não matou (sei apenas que uma guerra grande mastigou as coisas humanas, todos contra todos).

 

 

Já nascemos com a turbada gravidade

de sobreviventes de um naufrágio

raça desmemoriada

quimiocontrita no corpo de um,

tênue tempestade nas folhas,

vírus multicelular em busca de não sei

 

Sparrings sem rosto no ringue do Tempo

tentando encaixar um soco

encaixar um soco no Tempo sem rosto

 

Há algum tempo me ocorrem poemas. Era poeta? Não sei. Mas acredito que não. Tanto que quando escrevo, nem me sinto: É como uma possessão. Será então a poesia, ou a atividade poética, uma demência das faculdades cerebrais?

Lá fora houve uma guerra, uma guerra de finalmente acabar com tudo. Meus frangalhos, a ilha, o lixo feito de destroços que o mar traz, dão conta do que não lembro e no entanto sei que aconteceu.

 

Lá fora:

Lá na imbricação dos mesmerizados

lá onde o progresso deflorou as virgens esfaimadas

que se lhe apresentaram;

progresso, demônio que aluiu os homens

lá fora

em seus estratos, no que voa no espirro

 

 

O barco que me trouxe jaz sem combustível; os geradores à diesel da ilha morrem da mesma sede. As frutas que como, as pequenas aves e répteis, talvez suportem meu pequeno consumo, mas e daí? Eles virão? E quem são eles, e quem sou eu? Como temer um passado que ignoro? O esquecimento, falsa liberdade ou paz provisória, me trai: Lembro ter roubado um relógio. Fui ladrão? Antes ou depois da ruína do mundo, dos mundos? Talvez tenha roubado por fome, talvez por vingança.

Alguém lá no além da ilha, ou no tudo dito além de mim (pois sem um nome, entendi finalmente o estigma que nos conforma, e contra o qual relutamos com a arma que pudemos, adaga cega que resolvemos chamar História: se sou um homem, tudo é além), deflagrou uma guerra universal, e ele talvez ainda esteja lá, e ele talvez ainda me encontre. Ou já me tenha encontrado e esquecido, nesta ilha-mausoléu, neste Alzheimer biodeflagrado por um vírus genocida.

Escrevo palavras na areia, ou poemas, essa forma primitiva de civilização das palavras, e cismo: Talvez não tenha existido uma Segunda Guerra Mundial, ou uma Primeira. Sequer os morticínios, enquanto eventos isolados, de Ruanda ou do Kosovo. Talvez seja tudo uma única e ininterrupta guerra, da morte de Abel ao Armagedon. Sem dias de trégua.

 

Ilha feridenta,

antologia de chagas

calangos e fragatas desintestinados e assados,

culinária de dramas, axiologia

do que é poético, capuz que ao homem encerra

 

Ilha tropical e sua mansão deserdada,

 nave-desespero em que o Homem

nadaformou a Terra.

 Publicado originalmente no Jornal Daki.


Este conto faz parte do livro Fabulário Índigo. Disponível em formato impresso (aqui) e e-book (pela Amazon, aqui).


sábado, 15 de fevereiro de 2020

O Estado Eutanásico e a "Solução Final" - Conto de Sammis Reachers



Recebi a carta às 12h23.
Almocei um ótimo pad thai, encomendado do restaurante tailandês da esquina. Caro, mas que diferença isso faz?
O programa começou há dois anos, na Holanda. Nos noticiários e meios de informação, foi fragoroso o debate. A aceitação venceu: que havia mais a fazer?
Escrevi vinte e sete mensagens, para filhos, aproximações de amigos, uma mulher a quem cortejava, mais por distração – para ambos.
Claro, era previsível a situação que agora aflorou junto a este encanecido chão do sol nascente. Já desde finais do pregresso, caído século se percebia com algum agravo a diminuição do crescimento vegetativo em muitos países. Alguns procuraram incentivar, até financeiramente, a que seus cidadãos procriassem. Outros tantos viram na imigração a solução paliativa para seu problema estato-existencial.
Por tudo se pagou um preço, e o tempo, as décadas seguintes, provaram que o paliativo era isso: alongamento tecido em pó.
No caso deste país insular, a imigração nunca foi solução que valesse de muito. Tínhamos descendentes da diáspora de nosso povo que vinham em busca de trabalho – mas muitos voltavam para seus países de origem. Brasileiros, norte americanos, filipinos.
A questão foi defendida em livro bombástico, coletivo, por um grupo envolvendo alguns dos maiores filósofos de nosso tempo. Aventadas razões se espraiavam sobre as sociedades em debate, procurando equalizar os descontentes.
Vou até a antiga loja de charutos. É a única de Osaka, e uma das oito ou nove ainda presentes no país, a esta altura. Compro um charuto que sempre cobicei, se é que um fumante esporádico pode ser um cobiçador. Embrulho o artefato, assino o termo de segurança, em que afirmo que não irei consumir o “produto” em locais públicos – crime grave.
Em casa, sorvo o amargor da peça. Ligo o monitor, releio a carta do governo. Há algo de histórico nisso, ao menos – sou um dos 30 primeiros cidadãos do país a receber “A Carta”.
É estranho que um governo convide seus cidadãos para morrer. Em tempos de guerra, era comum. Nosso Império... Mas, nesses tempos de paz, de ruína econômica, nesses tempos em que a população economicamente ativa é tão menor que o número de aposentados, foi a saída que a civilização, já em meados do vigésimo primeiro século, encontrou para ajustar as coisas.
O convite, muito formal, principiava agradecendo os serviços prestados à pátria e à sociedade. Avançava, sem estender-se em demasia, dando conta das dificuldades, por todos conhecidas, que o maquinário previdenciário atravessava. Tergiversava sobre sacrifício e honra, esses gêmeos siameses. Terminava com uma despedida.
Acabei o charuto, de sabor bem pior do que eu há tanto imaginava. Uma metáfora disso tudo. Fui até o novo edifício governamental, erigido especialmente para isso: eutanásia coletiva de idosos e inválidos para a economia.
Nossa cultura é conhecida e construída sobre pilares de honra. Se toda uma sociedade milenar acredita que você deve morrer – até mesmo alguns de seus parentes, pessoas a quem você alimentou – que saída honrosa pode haver senão sujeitar-se em prol do bem comum?
Enquanto me deito na cadeira e aguardo o robô que aplicará a injeção letal, ouço da senhora ao lado, que sorria sem parar enquanto falava, que estávamos salvando nosso país, estávamos salvando a economia do Japão. Era bom que os mais velhos deixassem a vida e o peso estatal representado por suas aposentadorias. Era um sacrifício de “honra”.
Pensar que parte da imprensa, o que restara de humana nela, apelidara tal recurso de Endlösung der Judenfrage, “A Solução Final”, como aplicada por Hitler contra os judeus.
Fechei os olhos, enquanto ela continuava a sorrir e cacarejar. Segundos depois, ainda sem abrir os olhos, pude ouvir os rolamentos do robô deslizando pelo piso impecável. Como um samurai que meu povo desejava que eu fosse, não esbocei reação alguma quando senti a gélida penetração da agulha.

Sammis Reachers

sexta-feira, 14 de março de 2014

Segunda Guerra Mundial: Carta do pracinha Dirceu para a jovem Marília


XXXX, Itália, janeiro de 44

A noite, como a morte, é uma carta de trás para a frente, Marília, uma carta que não se entende até que amanheça.

Marília, hoje avançamos sobre o monte xxxx. Não adianta eu escrever nomes e datas, a censura suprimirá essas informações, que de mais a mais pouco importam a uma menina de 17 anos numa cidade tão bonita como Niterói.

Não sei se lhe escreverei mais cartas, se há um amanhã com meu nome na lista ao final da fila de ração. Então, perdoe-me pela estranheza e extensão destas linhas aqui transcritas. Foram escritas em dias espaçados, sob influências diversas – mas todas apenas dimensões, fragmentações de você.

E então eu agora abertamente digo que te amo, amiga. Amo-te mais que tudo em minha vida, os poemas, os sambas, o Bangu, meus cães e a filosofia. Amo-te desde o primeiro dia que lhe vi ao lado de Michaela, e eu que pensava amá-la, mas depois percebi que não, que nada, que tudo em minha vida e na história de meu coração era aio e ensaio até você. Pois o coração de toda a beleza que pulula no Universo-aqui, no espasmo-agora, é você, Marília.
Sei da galanteria que o Marco lhe faz; sei que seu pai, não tão secretamente quanto ele pensa, faz gosto de tê-lo como genro. E sei também que você se agrada. Agora ele está aí ao teu lado, pois pode ver-te todos os dias, e eu estou aqui na Velha Bota, na cega neve, na arruinada madona que o Duce deflagrou. Nesta disputa, se disputa havia, já perdi; se eu morrer e eu vou morrer, morrerei para que você possa ser feliz. Morrerei para não suportar, além do próprio peso da vida, a impossibilidade de você.
Tinha sonhos contigo, sonhos de casamento e roça, três crianças de quem eu, em secreto, adivinhava já os traços das faces. Terminaria o curso de Filosofia e iria dar aulas em alguma cidade pacata do interior do estado. Madalena ou Campos dos Goytacazes, talvez. Hoje queimo estes sonhos no altar da Guerra.
Tenho um pedido apenas: se em algum dia de tua vida de luz, sentiste algum afeto por mim, para além de nossa firme amizade, lhe rogo que nomeie teu primeiro filho com o meu nome; deixa-me estar próximo à tua lembrança enquanto você viver, pois sei que de mim a Guerra tudo requisita, como uma noiva voraz que quer o seu prometido e todo o dote, e ela nada poupará em seu holocausto.
Sei que falo coisas tristes e confusas demais e adultas demais para teu coraçãozinho principesco, mas preciso comunicar a alguém esta minha calma angústia, e é a você que comunico, pois você é mais que a pessoa que amo, é o próprio Universo onde habito, minha deusa lar, particular.

Na última carta você referiu lembrar-se de minha expressão antes da Declaração de Guerra, da forma como eu, durante as lições que lhe dava em sua casa, segurava o mapa da Europa nas mãos e quedava absorto por minutos silenciosos, ‘como se eu soubesse’. Marília, a História é um pano roto onde uma bruxa de candomblé lança búzios, búzios que dão sempre o mesmo resultado. Desde a invasão da Rússia, eu já sabia que o Brasil ingressaria na Guerra, eu sabia que haveria uma convocatória. Eu já treinava disparos, eu já sabia para onde fugir de ti, eu já sabia onde finalmente encontrá-la para sempre.

Escrevo este trecho de xxx. Mas todas as cidades por onde passei, Nápoles e Modena e Livorno, chamam-se você, todas as cidades da terra e do sol nomeiam-se secretamente Marília.

Aqui abraço a morte como se abraçasse você, menina. Nomeio a imperatriz-meretriz Morte com teu nome epifânico, e ela ganha ternura e sonho, cresce em intimidade sem perder a realeza. Vida ou Morte, Destino ou Acaso, como um grande Brahman dos hindus, escolhi ter você em tudo e como tudo, e que tudo a seja, foi a forma que encontrei para não perdê-la.

Nesta neve de menos 2 graus, lembro-me de nosso passeio na praia de Icaraí, sob o poder do carro de Hórus, o Sol que existe apenas para lhe dar um pedestal, Marília... Minha amiga, minha irmã, naquele dia, quando paramos em frente à Pedra do Índio e imprudentemente segurei a tua mão, não foi senão por amor!, amor que requereu-me um resgate, resgate cujo objeto é esta guerra e talvez a minha vida. Seja; amei-te e amo-te, e o Fuhrer ou a ciumenta Morte não hão de abalar isto, macular este mármore; ainda que implodam todos os mármores e monumentos da Itália, ainda que despedacem o céu em meu encalço e desçam comigo ao Sheol.

Aqui combatemos com fuzis M1 Garand americanos. Paralisados em nosso avanço, numa missão que a censura não permite nomear, peguei minha faca e com sua lâmina virgem risquei na coronha de meu fuzil o seu nome. E passaram a ter mais paixão e alcance os meus disparos. E se algum dia este fuzil passar a outras mãos, aquele que o empunhar saberá que há uma Marília no mundo, e há ou houve alguém que a amou – e isso é um rascunho de eternidade. Mesmo que eu morra um fuzil chamado Marília combaterá para livrar o país de Marília, a cidade de Marília e o coração de Marília.

Enfurnado no fundo de uma trincheira não há muito em que pensar. Amanhã, quando for matar tedescos (na carta de dezembro já lhe expliquei que aqui, por influência dos italianos, nós chamamos os alemães de tedescos), penso se matarei algum descendente de Schopenhauer, Hegel ou Kant. E será estanho assassiná-los, como ainda me espanta ter que combatê-los. E penso em meus livros de filosofia alemã em francês, que fim terão se eu morrer. Mamãe os queimará ou deitará fora? Diga-lhe para vendê-los no alfarrábio do senhor turco.
Se você lesse em francês ou tivesse intenção de aprender a língua, por certo deixaria tudo para ti. Mas não lhe apraz o aprendizado de línguas estrangeiras, e bem faz: elas é que devem estropiar-se para compreendê-la, ó pequena luz de tudo.
Você é o meu portentoso deus, o objeto de eleição de minha fé, raio e circunferência da religião que criei; aquilo que arbitrariamente sacralizo, meu lancinante talho na aorta da Realidade – platônicanarquica faca tomando o lugar do cosmocorpo que ela mata; mas o estranho deus dos judeus, do qual você tanto fala na última carta, talvez seja o único que realmente exista.

Nunca voltarei. Seja feliz com o Marco.

Meu último poema. Se eu pudesse, enfeixá-lo-ia para compor um livro, com todos os demais poemas dos quais você é a musa. Mas você os tem: livro dentro de um livro. Pois ao fim e ao cabo, todo deus é uma biblioteca. Mas não quero confundi-la.
Como sempre, nada como seus amados Bilac e Oliveira, mas mais para os franceses de que lhe falei. 
Adeus.


Batalha para alcançar Marília (poema 32)

Tuas palavras caíam no chão ribombantes
como granadas de sândalo:
eu avançava nu como quem sonha

Teus olhos congelavam o entorno, deusa:
moscas, sonhos, oxigênio
tudo era teu
ó mínimo-coração-do-mundo

A metralha tedesca cantarolava
mas seus atiradores e balas eram sombras
apresadas e impotentes na caverna platônica

Pois tu(a) é a Guerra, Minerva:
Tua boca era a bandeira a capturar, Marília, Valkíria,
como a piscina de hidromel sita no coração de Valhala
samadhi nirvana aniquilação íris de cada um
dos mil olhos de Brahman


Sammis Reachers

Do livro Poemas da Guerra de Inverno, segunda edição 

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O deserto, o oásis e a tamareira



O deserto, o oásis e a tamareira

Eu a conheci no Gragoatá, em Niterói, perto de um dos campus da UFF. Pegávamos o mesmo ônibus. Ela, menina de seus 16 anos, sempre de negro, com seus longos escorreitos cabelos negros. E as indefectíveis camisas negras de bandas de rock. Branca como a serpente edênica, que era branca como um anjo de luz se você não sabia. Muda e também calada. Ia todas as tardes levar sua irmã especial (tinha síndrome de Down) num colégio para especiais.
Nos olhávamos longamente. Eu estava na primeira separação desta de quem agora estou pela segunda vez separado, e a olhava com faminta ternura. Seu mutismo. Sua rebelião pelo silêncio e pelo luto. Seu contraste negro/claro.
Um dia não suportei e com meu melhor sorriso perguntei-lhe o nome. “Quem quer saber?”, foi seu semi-coice lacônico. “Eu quero. Meu nome é Sammis”. “Porque?”. “Porque te vejo todo dia, e te admiro”. “Tamara”, disse sem nenhum sorriso. Conversamos sobre bandas de rock. System of a Down, que naquele tempo era novidade. Não tinha namorado. Fiquei quatro dias sem vê-la, apenas alimentando as hienas da esperança. Quis ser romântico. Preparei uma carta, explanando acerca da origem e beleza de seu nome, meu sentimento por ela, e o poema de Gullar, flecha reciclada, já usado antes e usado depois, como bumerangue de um aborígene perdido na urbe:

Cantiga para não morrer

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

Encontrei-a ao fim da semana, no ponto de ônibus. Cheguei já na hora em que elas embarcavam no coletivo. Eram três: elas estavam com sua mãe (era divorciada, moravam as três num apartamento em São Domingos, bairro contíguo ao Gragoatá). Num movimento furtivo, enquanto sua mãe estava na roleta garimpando na bolsa o dinheiro das passagens, cutuquei-a e entreguei-lhe a carta. Ela apanhou-a com sua mão alvíssima e expressão impassível, marmórea, e colocou no bolso. A minha carta romântica e culta.
Nas semanas seguintes, desapareceu. Perguntei ao cobrador, “aquela menina branquinha, com a irmã especial”, mas ele também não a vira. Vira a mãe com a menininha apenas.
Passados dois meses, reencontrei-a: ela estava dentro de um ônibus, sentada à janela, e eu parado no ponto. Cutuquei-a para que tirasse os fones e saísse de sua imersão roqueira. “Você sumiu, o que houve?” “Nada.” “E a minha carta, você gostou?” “Eu tenho namorado.” Bah, mulheres. Rostos mutantes da mesma Eva, do mesmo punhal.
Bem, eu era um pobretão de vinte e sete anos e ela era uma menina mimada filha da classe B.
Sete meses depois, abro o jornal O Fluminense que jazia já amarrotado sobre a mesa de meu patrão, e vejo sua foto. Ela tinha dezoito, não dezesseis. Sim, tinha namorado. Havia se suicidado junto a ele, no palacete do pai do mesmo, na nobre estrada Froés, em Icaraí. Deixaram um longo bilhete, que o jornal não reproduzia. Não quis me informar mais.
Talvez eu a teria salvo, Tamara. Com a minha dor maior que a sua, providenciaria sombra para seu descanso. Entraria e habitaria de literaturas, de asas, sua vida e seu silêncio. E devagar, e sempre em silêncio, iniciar-te-ia num arcano que seus mortos e tribos não podiam, não podem: a lenta explosão que é o conhecimento de Cristo.^

Sammis Reachers

domingo, 20 de janeiro de 2013

Namor, o Príncipe Submarino



Namor, o Príncipe Submarino

Balas de Açúcar Andorinha
Doces Andorinha
Matusalém Batata Palha
Sorveteria Panosi
Fraldas Descartáveis Panosi
Video-Locadora Panosi Play
Foto e Filmagens Panosi
Buffet Panosi
Video-Locadora Blue Sea
Lavanderia Armênia
Armênia Confecções
Pan Moda Íntima
Pensão Panosi
Panosi Pizzas
Vila de Quitinetes Panosian
Imobiliária Panosian
Incorporadora Panosian e Filhos
Motel Rio Stars
Hotel Rio Stars
Rio Stars Resort Angra
Rede Hoteleira Rio Stars
Panosian Espaço de Eventos
Pré-Moldados Panosian e Filhos
Empreiteira Stan Panosian
Shopping Panosian
Parque Aquático Panosian
Linhas Aéreas Region...
                                            ...morreu no voo inaugural de sua sequencial vigésima sétima empresa, na ponte aérea entre Rio e São Paulo. Seu avião caiu sobre o mar, próximo a uma praia.
Filho de armênios, predestinado empreendedor que montou seu primeiro negócio aos 14 anos (as dulcíssimas Balas de Açúcar Andorinha), workaholic, worklover, homem de seu tempo, exemplo de seu tempo, homem sem seu tempo. Foi meu patrão em seis de seus vinte e sete empreendimentos. Abnegado, combativo, negociador nato, conselheiro, coaching e  mentoring intuitivo: era o protótipo de homem que reunia em si os arquétipos que a revista Pequenas Empresas Grandes Negócios e Exame idealizam, cada qual sob seus sócio-economáticos filtros, para um empresário de sucesso.

Traído pelas três sucessivas esposas, roubado pelos filhos, morreu, pois mesmo dono do maior Parque Aquático da América Latina (o atlântico, o oceânico Parque Aquático Panosian), nunca teve tempo de aprender a nadar: no minuto após o pouso forçado sobre o espelho d’água, antes de a pequena aeronave submergir, conseguiu sair do avião, mas morreu afogado. Fiéis às lições de seu mentor, os pilotos e seus dois sócios estavam focados demais salvando-se a si mesmos.
Também não sabia pescar, não sabia Cézanne ou Renoir.  Não que essas frugalidades inúteis pudessem salvá-lo. Também não sabia que morreria, nunca teve mesmo tempo para isso.

Sonegador de impostos, corruptor de corruptos, sempre um passo à frente de seus concorrentes, seja vendendo fraldas de porta em porta na favela, seja ganhando licitações fraudulentas e construindo prédios superfaturados para a habitação pública.

Stan Panosian, o otário mais esperto e rico com quem já comunguei. 

Sammis Reachers

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Ignácio de Loyola Brandão: A Descoberta da Escrita, um conto contra a censura



Tentava escrever e eles surgiam, levando todo o material. Confiscavam e sumiam. Sem satisfações, mas também sem recriminações. Não diziam nada, olhavam e recolhiam o que estava sobre a mesa.

Tentou mudar de casa, não adiantou. Eles chegavam apenas a caneta tocava o papel. Como se aquele toque tivesse a capacidade de emitir um sinal, perceptível somente por eles, como o infra-som para um cachorro. Levaram todos os papéis. E quando ele tentou comprar, as papelarias não venderam sem a requisição oficial. Nenhum tipo de papel, nada. Caderno, cada criança tinha direito a cotas estabelecidas. Desvio de cadernos era punido com degredo perpétuo. Rondou as padarias e descobriu que o pão era embrulhado em plásticos finos, transparentes. E quando quis comprar um jornal, viu que as margens não eram brancas, vazias. Agora, havia nelas um chapado preto, para impedir que se escrevesse ali. Uma noite, altas horas, escreveu nas paredes. E pela manhã descobriu que eles tinham vindo e caiado sobre o escrito. Escreveu novamente. Caiaram, outra vez. Na terceira, derrubaram as paredes. Ele procurava caixas, aproveitar as áreas internas. Eles tinham pensado nisso, antes. As partes internas eram cheias de desenhos, ou com tintas escuras sobre as quais era impossível gravar alguma coisa. Experimentou panos brancos, algodão cru, cores leves como o amarelo, o azul claro. Eles também tinham pensado. As tintas manchavam o pano, borravam, as letras se confundiam.
Eles não proibiam, prendiam ou censuravam. Pacientemente, vigiavam. Controlavam. Dia a dia, minuto, segundos. Impediam que ele escrevesse. Sem dizer nada, simplesmente tomando: objetos, lápis, canetas, cotos de carvão, pincéis, estiletes de madeira, o que ele inventasse.
Dois, cinco, doze anos se passaram. Ele experimentou fabricar papel, clandestinamente, em porões e barracos escondidos no campo. Eles descobriram, arrebentavam as máquinas, destruíam as matérias-primas.
Ele tentou tudo: vidros, madeira, borracha, metais. Percebia, com o passar do tempo, que eles não eram os mesmos. Iam mudando, se revezando. Constantes, sempre incansáveis, silenciosos.
Deixou o tempo correr. Fez que tinha desistido. Só pensava, escrevia dentro da própria cabeça tudo o que tinha. Esperou dois anos, cinco, doze. Quando achou que tinha sido esquecido, colocou o material num carro.
Tomou estradas para o norte, regiões menos povoadas. Cruzou pantanais, sertões, desertos, montanhas. Calor, frio, umidade. Encontrou uma planície imensa, a perder de vista. Onde só havia pedras. Ficou ali. Com martelo e cinzel, começou a escrever. Gravando bem fundo nas pedras imensas os sinais. Ali podia trabalhar, sem parar.
E o cinzel formava, lentamente, as, bês, cês, dês, pês. Traços. Palavras, desenhos.

do livro O Homem do Furo na Mão e outras histórias

Fonte: Blog BRADANTE - http://bradante.blogspot.com
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