quinta-feira, 28 de maio de 2020

ALTERAÇÃO CLIMÁTICA, poema de Dennis Ávila



ALTERAÇÃO CLIMÁTICA

Dennis Ávila

Há um epicentro no felino que criou os desertos.

Em câmara lenta a avalanche
sala de máquinas um vulcão.

A cordilheira acompanha seu horizonte,
e no final da tarde
o dia expulsa as estrelas.

Um meteorito altera a botânica.
O impacto move as lagoas.
Os nenúfares ordenam a água.

Tudo mostra seus dentes;
em cada samambaia há uma serra verde,
inocente e dual.

Na região do gelo
ursos polares se buscam, assassinos,
para enganar a fome.

Repentino é o nome do oposto:
os cristais envelhecem para parecer jovens,
o equilíbrio persegue a ferida
                e não a cicatriz.

Deidades esquecem de lamber-se
                como onças
em seu instante sabático.

O planeta se ressente de cada passo.
Há um felino no epicentro de seus dias.

Trad. Sammis Reachers

Dennis Ávila é hondurenho. Leia mais sobre o autor e o poema em Tiberíades - Rede Iberoamericana de Poetas y Críticos Literários Cristianos




quarta-feira, 20 de maio de 2020

CARTA AOS PEDAGOGOS - Um poema aos profissionais da Educação



Carta aos Pedagogos

A você, doador de sangue.
Que acredita nos pequenos inícios.
E se esmera nos processos, e vê ao longe
E no agora a colheita.
E vê perenidade na intermitência.

Você, alma grávida:
Beija-flor levando água
Para apagar o incêndio
Que na floresta dos homens grassa;
Salmão contra a corredeira,
Remando movido duma pulsão
Maior que seu pequeno corpo, urdida chama,
Flama & frêmito da expansão que o Conhecimento
- Este agridoce tutor - exige daqueles
Que o portam não na tumba cerebral,
Mas na cardíaca fornalha.

Guardião do Palácio de Tudo,
Cidadão matricial, apaziguador das gerações:
Nós te celebramos.


Sammis Reachers

sexta-feira, 15 de maio de 2020

ANTES DO NOME, poema de Adélia Prado


Antes do Nome

Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o "de", o "aliás",
o "o", o "porém" e o "que", esta incompreensível
muleta que me apóia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão
Puro susto e terror.

domingo, 3 de maio de 2020

Os Diferentes Estilos - Crônica de Paulo Mendes Campos



Parodiando Raymond Queneau, que toma um livro inteiro para descrever de  todos  os  modos  possíveis  um  episódio  corriqueiro, acontecido em um ônibus de Paris, narra-se aqui, em diversas modalidades de estilo, um fato comum da vida carioca, a saber: o corpo de um homem de quarenta anos presumíveis é encontrado de madrugada pelo vigia de uma construção, à margem da Lagoa Rodrigo de Freitas, não existindo sinais de morte violenta.

Estilo interjeitivo - Um cadáver! Encontrado em plena madrugada! Em pleno bairro de  Ipanema! Um homem desconhecido! Coitado! Menos de quarenta anos! Um que morreu quando a cidade acordava! Que pena!

Estilo colorido - Na hora cor-de-rosa da aurora, à margem da cinzenta Lagoa Rodrigo de Freitas, um vigia de cor preta encontrou o cadáver de um homem branco, cabelos louros, olhos azuis, trajando  calça amarela, casaco pardo, sapato marrom, gravata branca com bolinhas azuis. Para este o destino foi negro.

Estilo antimunicipalista - Quando mais um dia de sofrimentos e desmandos nasceu para esta cidade tão mal governada, nas margens imundas, esburacadas e fétidas da Lagoa Rodrigo de Freitas, e em cujos arredores falta água há vários meses, sem falar nas frequentes mortandades de peixes já famosas, o vigia de uma construção (já permitiram, por debaixo do pano, a ignominiosa elevação de gabarito em Ipanema) encontrou o cadáver de um desgraçado morador desta cidade sem policiamento. Como não podia deixar de ser, o corpo ficou ali entregue às moscas que pululam naquele perigoso foco de epidemias. Até quando?

Estilo reacionário - Os moradores da Lagoa Rodrigo de Freitas tiveram na manhã de hoje o profundo desagrado de deparar com o cadáver de um vagabundo que foi logo escolher para morrer (de  bêbado) um  dos bairros mais elegantes desta cidade, como se  já  não  bastasse para enfear aquele local uma sórdida favela que nos envergonha aos olhos dos americanos que nos visitam ou que nos dão a honra de residir no Rio.

Estilo então - Então o vigia de uma construção em Ipanema, não tendo sono, saiu então para passeio de madrugada. Encontrou então o cadáver de um homem. Resolveu então procurar um guarda. Então o guarda veio e tomou então as providências necessárias. Aí então eu resolvi te contar isto.

Estilo áulico - À sobremesa, alguém falou ao Presidente, que na manhã de hoje o cadáver de um homem havia sido encontrado na Lagoa Rodrigo de Freitas. O Presidente exigiu imediatamente que um de seus auxiliares telegrafasse em seu nome à família enlutada. Como lhe informassem que a vítima ainda não fora identificada, S. Ex.a, com o seu estimulante bom humor, alegrou os presentes com uma das suas  apreciadas blagues.

Estilo schmidtiano - Coisa terrível é o encontro com um cadáver desconhecido à margem de um lago triste à luz fria da aurora! Trajava-se com alguma humildade mas seus olhos  eram azuis, olhos para a  festa alegre colorida deste mundo. Era trágico vê-lo morto. Mas ele não estava ali, ingressara para sempre no reino inviolável e escuro da morte,  este rio um pouco profundo caluniado de morte.

Estilo complexo de Édipo -  Onde andará a mãezínha do homem encontrado morto na Lagoa Rodrigo de Freitas? Ela que o amamentou, ela que o embalou em seus braços carinhosos?

Estilo preciosista - No crepúsculo matutino de hoje, quando fulgia solitária e longínqua a  Estrela-d'Alva, o atalaia de uma construção civil, que perambulava insone pela orla Sinuosa e  murmurante de uma lagoa serena, deparou com a atra e lúrida visão de um ignoto e gélido ser humano, já eternamente sem o hausto que vivifica.

Estilo Nélson Rodrigues - Usava gravata  de  bolinhas  azuis  e morreu!

Estilo sem jeito - Eu queria ter o dom da palavra, o gênio de um Rui ou o estro de um Castro Alves, para descrever o que se passou na manhã de hoje. Mas não sei escrever, porque nem todas as pessoas que têm sentimento são capazes de expressar esse sentimento. Mas eu gostaria de deixar, ainda que sem brilho literário, tudo aquilo que senti. Não sei se cabe aqui a palavra sensibilidade. Talvez não caiba. Talvez seja uma  tragédia. Não sei escrever mas o leitor poderá perfeitamente imaginar o que foi isso. Triste, muito triste. Ah. se eu soubesse escrever.

Estilo feminino - Imagine você, Tutsi, que ontem eu fui ao Sacha's, legalíssimo, e dormi tarde. Com o Tony. Pois logo hoje, minha filha, que eu estava exausta e tinha hora  marcada no cabeleireiro, e estava também querendo dar uma passada na costureira, acho mesmo que vou fazer aquele plissadinho, como o da Teresa, o Roberto resolveu me telefonar quando eu estava no melhor do sono. Mas o que era mesmo que eu queria te contar? Ah, menina, quando eu olhei da janela, vi uma coisa horrível, um homem morto lá na beira da Lagoa. Estou tão  nervosa!  Logo eu que tenho horror de gente morta!

Estilo lúdico ou infantil - Na madrugada de hoje por cima, o corpo de um homem por baixo foi encontrado por cima pelo vigia de uma construção por baixo. A vítima por baixo não trazia identificação por cima. Tinha aparentemente por cima a idade de quarenta anos por baixo.

Estilo concretista - Dead dead man man mexe  mexe  Mensch  Mensch MENSCHEIT.

Estilo  didático - Podemos encarar a morte do desconhecido encontrado morto à margem da Lagoa em três aspectos: a) policial; b) humano; e) teológico. Policial: o homem em sociedade; humano: o homem em si mesmo; teológico: o homem em Deus. Polícia e homem: fenômeno; alma  e Deus: epifenômeno. Muito simples, como os senhores veem.

Fonte:
Paulo Mendes Campos. Supermercado. RJ: Tecnoprint, 1976.

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