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domingo, 8 de janeiro de 2012

The Waste Land, de T. S. Eliot, na tradução de Ivan Junqueira


A Terra Desolada
1922

(tradução: Ivan Junqueira)



I. O ENTERRO DOS MORTOS

Abril é o mais cruel dos meses, germina
Lilases da terra morta, mistura
Memória e desejo, aviva
Agônicas raízes com a chuva da primavera.
O inverno nos agasalhava, envolvendo
A terra em neve deslembrada, nutrindo
Com secos tubérculos o que ainda restava de vida.
O verão nos surpreendeu, caindo do Starnbergersee
Com um aguaceiro. Paramos junto aos pórticos
E ao sol caminhamos pelas aléias do Hofgarten,
Tomamos café, e por uma hora conversamos.
Bin gar keine Russin, stamm' aus Litauen, echt deutsch.
Quando éramos crianças, na casa do arquiduque,
Meu primo, ele convidou-me a passear de trenó.
E eu tive medo. Disse-me ele, Maria,
Maria, agarra-te firme. E encosta abaixo deslizamos.
Nas montanhas, lá, onde livre te sentes.
Leio muito à noite, e viajo para o sul durante o inverno.

Que raízes são essas que se arraigam, que ramos se esgalham
Nessa imundície pedregosa? Filho do homem
Não podes dizer, ou sequer estimas, porque apenas conheces
Um feixe de imagens fraturadas, batidas pelo sol,
E as árvores mortas já não mais te abrigam, nem te consola o
       canto dos grilos,
E nenhum rumor de água a latejar na pedra seca. Apenas
Uma sombra medra sob esta rocha escarlate.
(Chega-te à sombra desta rocha escarlate),
E vou mostrar-te algo distinto
De tua sombra a caminhar atrás de ti quando amanhece
Ou de tua sombra vespertina ao teu encontro se elevando;
Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó.

                  Frisch weht der Wind
                  Der Heimat zu
                  Mein Irisch Kind,
                  Wo weilest du?

"Um ano faz agora que os primeiros jacintos me deste;
Chamavam-me a menina dos jacintos."
- Mas ao voltarmos, tarde, do Jardim dos Jacintos,
Teus braços cheios de jacintos e teus cabelos úmidos, não pude
Falar, e meus olhos se enevoaram, eu não sabia
Se vivo ou morto estava, e tudo ignorava
Perplexo ante o coração da luz, o silêncio.
Oed' und leer das Meer.

Madame Sosostris, célebre vidente,
Contraiu incurável resfriado; ainda assim,
É conhecida como a mulher mais sábia da Europa,
Com seu trêfego baralho. Esta aqui, disse ela,
É tua carta, a do Marinheiro Fenício Afogado.
(Estas são as pérolas que foram seus olhos. Olha!)
Eis aqui Beladona, a Madona dos Rochedos,
A Senhora das Situações.
Aqui está o homem dos três bastões, e aqui a Roda da Fortuna,
E aqui se vê o mercador zarolho, e esta carta,
Que em branco vês, é algo que ele às costas leva,
Mas que a mim proibiram-me de ver. Não acho
O Enforcado. Receia morte por água.
Vejo multidões que em círculos perambulam.
Obrigada. Se encontrares, querido, a Senhora Equitone,
Diz-lhe que eu mesma lhe entrego o horóscopo:
Todo o cuidado é pouco nestes dias.

Cidade irreal,
Sob a fulva neblina de uma aurora de inverno,
Fluía a multidão pela Ponte de Londres, eram tantos,
Jamais pensei que a morte a tantos destruíra.
Breves e entrecortados, os suspiros exalavam,
E cada homem fincava o olhar adiante de seus pés.
Galgava a colina e percorria a King William Street,
Até onde Saint Mary Woolnoth marcava as horas
Com um dobre surdo ao fim da nona badalada.
Vi alguém que conhecia, e o fiz parar, aos gritos: "Stetson,
Tu que estiveste comigo nas galeras de Mylae!
O cadáver que plantaste ano passado em teu jardim
Já começou a brotar? Dará flores este ano?
Ou foi a imprevista geada que o perturbou em seu leito?
Conserva o Cão à distância, esse amigo do homem,
Ou ele virá com suas unhas outra vez desenterrá-lo!
Tu! Hypocrite lecteur! - mon semblable -, mon frère!"

 

II. UMA PARTIDA DE XADREZ



Sua cadeira, como um trono luzidio,
Fulgia sobre o mármore, onde o espelho
Suspenso em pedestais de uvas lavradas,
Entre as quais um dourado Cupido espreitava
(Um outro os olhos escondia sob as asas),
Duplicava as chamas que nos sete braços
Do candelabro ardiam, faiscando
Sobre a mesa um clarão a cujo encontro
Subia o resplendor de suas jóias
Em rica profusão do escrínio derramadas;
Em frascos de marfim e vidros coloridos
Moviam-se em surdina seus perfumes raros,
Sintéticos ungüentos, líquidos e em pó,
Que perturbavam, confundiam e afogavam
Os sentidos em fragrâncias; instigados
Pelas brisas refrescantes da janela,
Os aromas ascendiam, excitando
As esguias chamas dos círios, espargiam
Seus eflúvios pelo teto ornamentado,
Agitando os arabescos que o bordavam.
Emoldurada em pedras multicores,
Uma enorme carcaça submarina,
De cobre revestida, latejava
Revérberos de verde e alaranjado,
Em cuja triste luz um delfim nadava.
Acima da lareira era exibida,
Como se uma janela desse a ver
O cenário silvestre, a transfiguração
De Filomela, pelo bárbaro rei
Tão rudemente violada; embora o rouxinol
Todo o deserto enchesse com sua voz
Inviolável, a princesa ainda gemia,
E o mundo ela persegue ainda,
"Tiu tiu" para ouvidos desprezíveis.
E outros murchos vestígios do tempo
Sobre as paredes o passado evocavam;
Expectantes vultos recurvos se inclinaram,
Silenciando o quarto enclausurado.
Passos arrastados na escada. A luz
Do fogo, sob a escova, seus cabelos
Eriçavam-se em agulhas flamejantes,
Inflamavam-se em palavras. Depois,
Em selvagem quietude mergulhavam.

     "Estou. mal dos nervos esta noite. Sim, mal. Fica comigo.
Fala comigo. Por que nunca falas? Fala.
     Em que estás pensando? Em que pensas? Em quê?
Jamais sei o que pensas. Pensa."

     Penso que estamos no beco dos ratos
Onde os mortos seus ossos deixaram.

     "Que rumor é este?"
                                                  O vento sob a porta.
"E que rumor é este agora? Que anda a fazer o vento lá fora?"
              Nada, como sempre. Nada.
                                               "Não sabes"
Nada? Nada vês? Não recordas
Nada?"
                                                Recordo-me
Daquelas pérolas que eram seus olhos.
"Estás ou não estás vivo? Nada existe em tua cabeça?"
                                                                                         Mas
O O O O este Rag shakespeaéreo
- Tão elegante
Tão inteligente
"Que farei agora? Que farei?
Sairei às pressas, assim como estou, e andarei pelas ruas
Com meu cabelo em desalinho. Que faremos amanhã?
Que faremos jamais?
                                 O banho quente às dez.
E caso chova, um carro às quatro. Fechado.
E jogaremos uma partida de xadrez, apertando olhos sem
        pálpebras
A espera de uma batida na porta.

  Quando o marido de Lil deu baixa, eu disse
- Não sabia então medir minhas palavras, eu mesmo disse
     a ela
DEPRESSA POR FAVOR É TARDE
Agora que Alberto está para voltar, vê se te cuida um pouco,
Ele vai querer saber o que fez você com o dinheiro que ele deu
Para ajeitar esses seus dentes. Foi isso o que ele fez, eu
        estava lá.
Arranca logo todos eles, Lil, e põe na boca uma dentadura
       decente.
Foi isso o que ele disse, juro, já não agüento ver você assim.
Muito menos eu, disse, e pensa no pobre Alberto
Ele serviu o exército por quatro anos, quer agora se divertir
E se você não o fizer, outras o farão, disse.
Ah, é assim. Ou qualquer coisa de parecido, respondi.
Então saberei a quem agradecer, disse ela, fitando-me nos
       olhos.
DEPRESSA POR FAVOR É TARDE
Se não lhe agrada, faça o que lhe der na telha.
Outras podem escolher e passar logo a mão, se você não pode,
Mas se Alberto sumir, não foi por falta de aviso.
Você devia se envergonhar, disse, de parecer tão passada.
(E ela só tem trinta e um anos.)
Não sei o que fazer, disse ela, com um ar desapontado,
Foram essas pílulas que tomei para abortar, disse.
(Ela já teve cinco filhos, e ao parir o mais novo, Jorge, quase
morreu.)


O farmacêutico disse que tudo correria bem, mas nunca mais
       fui a mesma.
Você é uma perfeita idiota, disse eu.
Bem, se Alberto não deixar você em paz, aí é que está.
Por que você se casou se não queria filhos?
DEPRESSA POR FAVOR É TARDE
Bem, naquele domingo em que Alberto voltou para casa, eles
       serviram um pernil assado
E me convidaram para jantar, a fim de que eu o saboreasse
       ainda quente.
DEPRESSA POR FAVOR É TARDE
DEPRESSA POR FAVOR É TARDE
Boanoite Bill. Boanoite Lou. Boanoite May. Boanoite.
Tchau. 'Noite. 'Noite.
Boa-noite, senhoras, boa-noite, gentis senhoras, boa-noite,
       boa-noite.


III. O SERMÃO DO FOGO


O dossel do rio se rompeu: os derradeiros dedos das folhas
Agarram-se às úmidas entranhas dos barrancos. Impressentido,
O vento cruza a terra estiolada. As ninfas já partiram.
Doce Tâmisa, corre suave, até que meu canto eu termine.
O rio não suporta garrafas vazias, restos de comida,
Lenços de seda, caixas de papelão, pontas de cigarro
E outros testemunhos das noites de verão. As ninfas já
       partiram.
E seus amigos, os ociosos herdeiros de magnatas municipais,
Partiram sem deixar vestígios.
Às margens do Léman sentei-me e lá chorei . . .
Doce Tâmisa, corre suave, até que meu canto eu termine,
Doce Tâmisa, corre suave, pois falarei baixinho e quase nada
       te direi.
Atrás de mim, porém, numa rajada fria, escuto
O chocalhar dos ossos, e um riso ressequido tangencia o rio.
Um rato rasteja macio entre as ervas daninhas,
Arrastando seu viscoso ventre sobre a margem
Enquanto eu pesco no canal sombrio
Durante um crepúsculo de inverno, rodeando por detrás o
       gasômetro,
A meditar sobre o naufrágio do rei meu irmão
E sobre a morte do rei meu pai que antes dele pereceu.
Brancos corpos nus sobre úmidos solos pegajosos
E ossos dispersos numa seca e estreita água-furtada,
Que apenas vez por outra os pés dos ratos embaralham.
Atrás de mim, porém, de quando em quando escuto
O rumor das buzinas e motores, que trarão na primavera
Sweeney de volta aos braços da Senhora Porter.
‘Ó a Lua que luminosa brilha
Sobre a Senhora Porter e sua filha, ambas
A banhar os pés em borbulhante soda.'
Et O ces voix d'enfants chantant dans la coupole!

                 Tiuit tiuit tiuit
                 Tiu tiu tiu tiu tiu tiu
                 Tão rudemente violada.
                 Tereu

Cidade irreal,
Sob a fulva neblina de um meio-dia de inverno
O Senhor Eugênides, o mercador de Smyrna,
A barba por fazer e o bolso cheio de passas coríntias
C.I.F. Londres, documentos à vista
Convidou-me em seu francês vulgar (demótico, eu diria)
A almoçar no Cannon Street Hotel
E a passar um fim de semana no Metropole.

À hora violácea, quando os olhos e as costas
Às mesas de trabalho renunciam, quando a máquina humana
       aguarda
Como um trepidante táxi à espera,
Eu, Tirésias, embora cego, palpitando entre duas vidas,
Um velho com as tetas engelhadas, posso ver,
Nessa hora violácea, o momento crepuscular que luta
Rumo ao lar, e que do mar devolve o marinheiro à sua casa;
A datilógrafa que ao lar regressa à hora do chá,
Recolhe as sobras do café da manhã, acende
O fogareiro e improvisa seu jantar em latas de conserva.
Suspensas perigosamente na janela, suas combinações
Secam ao toque dos últimos raios solares.
Sobre o divã (à noite, sua cama) empilham-se
Meias, chinelos, batas e sutiãs.
Eu, Tirésias, um velho de enrugadas tetas,
Percebo a cena e antevejo o resto.
- Também eu aguardava o esperado convidado.
Chega então um rapaz com marcas de bexiga,
Um insignificante balconista de olhar atrevido,
Um desses tipos à-toa em que a arrogância assenta tão bem
Quanto a cartola na cabeça de um milionário de Bradford.
O momento é agora propício, ele calcula,
O jantar acabou, ela está exausta e entediada.
Ele procura então envolvê-la em suas carícias
Não de todo repelidas, mas tampouco desejadas.
Excitado e resoluto, ele afinal investe.
Mãos aventureiras não encontram resistência;
Sua vaidade dispensa resposta,
E faz da indiferença uma dádiva.
(E eu, Tirésias, que já sofrera tudo
O que nessa cama ou divã fora encenado,
Eu, que ao pé dos muros de Tebas me sentei
E caminhei por entre os mortos mais sepultos.)
Ao despedir-se, concede-lhe o rapaz um beijo protetor
E desce a escada escura, tateando o seu caminho . . .

Ela volta e mira-se por um instante no espelho,
Quase esquecida do amante que se foi;
No cérebro vagueia-lhe um difuso pensamento:
"Bem, já terminou; e muito me alegra sabê-lo."
Quando uma bela mulher se permite um pecadilho
E depois pelo seu quarto ainda passeia, sozinha,
Ela a mão deita aos cabelos em automático gesto
E põe um disco na vitrola.

"Esta música ondula junto a mim por sobre as águas"
E ao longo da Strand, Queen Victoria Street acima.
Ó Cidade cidade, às vezes posso ouvir
Em qualquer bar da Lower Thames Street
O álacre lamento de um bandolim
E a algazarra que farfalha em bocas tagarelas
Onde repousam ao meio-dia os pescadores, onde os muros
Da Magnus Martyr empunham
O inexplicável esplendor de um jônico branco e ouro.

O rio poreja
Petróleo e alcatrão
As barcaças derivam
Ao sabor das marés
Rubras velas,
Abertas a sotavento,
Drapejam nos pesados mastros.
As barcaças carregam
Toras que derivam rio abaixo
Até o braço de Greenwich
Para além da Ilha dos Cães.
       Weialala leia
       Wallala leialala

Elizabeth e Leicester
Ao ritmo dos remos
A popa figurava
Uma concha engalanada
Rubra e dourada
A rápida pulsação das águas
Encrespava ambas as margens
O vento sudoeste
Corrente abaixo carregava
O repicar dos sinos
Torres brancas
       WeialaJa leia
       Wallala leialala
"Bondes e árvores cobertos de poeira.
Highbury me criou. Richmond e Kew
Levaram-me à ruína. Perto de Richmond ergui-me nos joelhos
Ao fundo da canoa estreita em que me reclinara."

"Meus pés estão em Moorgate, e meu coração
Debaixo de meus pés. Depois do que fez
Ele chorou. Prometeu `começar tudo outra vez'.
Nada lhe censurei. De que me iria ressentir?"


"Nas areias de Margate.
Não consigo associar
Nada com nada.
As unhas quebradas de encardidas mãos.
Meu povo humilde povo que não espera
Nada."
           la la
       A Cartago então eu vim

Ardendo ardendo ardendo ardendo
Ó Senhor Tu que me arrebatas
Ó Senhor Tu que arrebatas

ardendo


IV. MORTE POR ÁGUA


Flebas, o Fenício, morto há quinze dias,
Esqueceu o grito das gaivotas e o marulho das vagas
E os lucros e os prejuízos.
                                         Uma corrente submarina
Roeu-lhe os ossos em surdina. Enquanto subia e descia
Ele evocava as cenas de sua maturidade e juventude
Até que ao torvelinho sucumbiu.
                                                   Gentio ou judeu
Ó tu que o leme giras e avistas onde o vento se origina,
Considera a Flebas, que foi um dia alto e belo como tu.



V. O QUE DISSE O TROVÃO


Após a rubra luz do archote sobre suadas faces
Após o gelado silêncio nos jardins
Após a agonia em pedregosas regiões
O clamor e a súplica
Cárcere palácio reverberação
Do trovão primaveril sobre longínquas montanhas
Aquele que vivia agora já não vive
E nós que então vivíamos agora agonizamos
Com um pouco de resignação.

Aqui água não há, mas rocha apenas
Rocha. Água nenhuma. E o arenoso caminho
O coleante caminho que sobe entre as montanhas
Que são montanhas de inaquosa rocha
Se água houvesse aqui, nos deteríamos a bebê-la
Não se pode parar ou pensar em meio às rochas
Seco o suor nos poros e os pés na areia postos
Se aqui só água houvesse em meio às rochas
Montanha morta, boca de dentes cariados que já não pode
       cuspir
Aqui de pé não se fica e ninguém se deita ou senta
Nem o silêncio vibra nas montanhas
Apenas o áspero e seca trovão sem chuva
Sequer a solidão floresce nas montanhas
Apenas rubras faces taciturnas que escarnecem e rosnam
A espreitar nas portas de casebres calcinados
Se água houvesse aqui
E não rocha
Se aqui houvesse rocha
Que água também fosse
E água
Uma nascente
Uma poça entre as rochas
Se ao menos um sussurro de água aqui se ouvisse
Não a cigarra
Ou a canora relva seca
Mas a canção das águas sobre a rocha
Onde gorjeia o tordo solitário nos pinheiros
Drip drop drip drop drop drop drop
Mas aqui água não há

Quem é o outro que sempre anda a teu lado?
Quando somo, somos dois apenas, lado a lado,
Mas se ergo os olhos e diviso a branca estrada
Há sempre um outro que a teu lado vaga
A esgueirar-se envolto sob um manto escuro, encapuzado
Não sei se de homem ou de mulher se trata
- Mas quem é esse que te segue do outro lado?

Que som é esse que alto pulsa no espaço
Sussurro de lamentação materna
Que embuçadas hordas são essas que enxameiam
Sobre planícies sem fim, tropeçando nas gretas da terra
Restrita apenas a um raso horizonte arrasado
Que cidade se levanta acima das montanhas
Fendas e emendas e estalos no ar violáceo
Torres cadentes
Jerusalém Atenas Alexandria
Viena Londres
Irreais

A mulher distendeu com firmeza seus longos cabelos negros
E uma ária sussurrante nessas cordas modulou
E morcegos de faces infantis silvaram na luz violeta,
Ruflando suas asas, e rastejaram
De cabeça para baixo na parede enegrecida
E havia no ar torres emborcadas
Tangendo reminiscentes sinos, que outrora as horas repicavam
E agudas vozes emergiam de poços exauridos e cisternas vazias.

Nessa cova arruinada entre as montanhas
Sob um tíbio luar, a relva está cantando
Sobre túmulos caídos, ao redor da capela
É uma capela vazia, onde somente o vento fez seu ninho.
Não há janelas, e as portas rangem e gingam,
Ossos secos a ninguém mais intimidam.
Um galo apenas na cumeeira pousado
Cocorocó cocorocó
No lampejo de um relâmpago. E uma rajada úmida
Vem depois trazendo a chuva

O Ganga em agonia submergiu, e as flácidas folhas
Esperam pela chuva, enquanto nuvens negras
Acima do Himavant muito além se acumulam.
A selva agachou-se, arqueada em silêncio.
Falou então o trovão
DA
Datta: Que demos nós?
Amigo, o sangue em meu coração se agita
A tremenda ousadia de um momento de entrega
Que um século de prudência jamais revogará
Por isso, e por isso apenas, existimos
E ninguém o encontrará em nossos necrológios
Ou nas memórias tecidas pela aranha caridosa
Ou sob os lacres rompidos do esquálido escrivão
Em nossos quartos vazios
DA
Dayadhvam: ouvi a chave
Girar na porta uma vez e apenas uma vez
Na chave pensamos, cada qual em sua prisão
E quando nela pensamos, prisioneiros nos sabemos
Somente ao cair da noite é que etéreos rumores
Por instantes revivem um alquebrado Coriolano
DA
Damyata: o barco respondeu,
Alegre; à mão afeita à vela e ao remo
O mar estava calmo, teu coração teria respondido,
Alegre, pulsando obediente ao rogo
De mãos dominadoras

                                 Sentei-me junto às margens a pescar
Deixando atrás de mim a árida planície
Terei ao menos minhas terras posto em ordem?
A Ponte de Londres está caindo caindo caindo
Poi s'ascose nel foco che gli affina
Quando fiam uti chelidon - Ó andorinha andorinha
Le Prince d'Aquitaine à la tour abolie
Com fragmentos tais foi que escorei minhas ruínas
Pois então vos conforto. Jerônimo outra vez enlouqueceu.
Datta. Dayadhvam. Damyata.
Shantih shantih shantih

domingo, 1 de janeiro de 2012

Três poemas de Dylan Thomas, na tradução de Ivan Junqueira




Poema de Outubro

Era o meu trigésimo ano rumo ao céu
Quando chegou aos meus ouvidos, vindo do porto
e do bosque ao lado,
E da praia empoçada de mexilhões
E sacralizada pelas garças
O aceno da manhã
Com as preces da água e o grito das gralhas e gaivotas
E o chocar-se dos barcos contra o muro emaranhado de redes
Para que de súbito
Me pusesse de pé
E descortinasse a imóvel cidade adormecida.
Meu aniversário começou com as aves marinhas
E os pássaros das árvores aladas esvoaçavam o meu nome
Sobre as granjas e os cavalos brancos
E levantei-me
No chuvoso outono
E perambulei sem rumo sob o aguaceiro de todos os meus dias.
A garça e a maré alta mergulhavam quando tomei a estrada
Acima da divisa
E as portas da cidade
Ainda estavam fechadas enquanto o povo despertava.
Toda uma primavera de cotovias numa nuvem rodopiante
E os arbustos à beira da estrada transbordante de gorjeios
De melros e o sol de outubro
Estival
Sobre os ombros da colina,
Eram climas amorosos e houve doces cantores
Que chegaram de repente na manhã pela qual eu vagava e ouvia
Como se retorcia a chuva
O vento soprava frio No bosque ao longe que jazia a meus pés.

Pálida chuva sobre o porto que encolhia
E sobre o mar que umedecia a igreja do tamanho de um caracol
Com seus cornos através da névoa e do castelo
Encardido como as corujas Mas todos os jardins
Da primavera e do verão floresciam nos contos fantásticos
Para além da divisa e sob a nuvem apinhada de cotovias.
Ali podia eu maravilhar-me
Meu aniversário Ia adiante mas o tempo girava em derredor.
Ao girar me afastava do país em júbilo
E através do ar transfigurado e do céu cujo azul se matizava
Fluía novamente um prodígio do verão
Com maçãs
Pêras e groselhas encarnadas
E no girar do tempo vi tão claro quanto uma criança
Aquelas esquecidas manhãs em que o menino passeava com sua mãe Em meio às parábolas
Da luz solar
E às lendas da verde capela
E pêlos campos da infância duas vezes descritos
Pois suas lágrimas me queimavam as faces e seu coração
se enternecia em mim.
Esses eram os bosques e o rio e o mar
Ali onde um menino
À escuta
Do verão dos mortos sussurrava a verdade de seu êxtase
Às árvores e às pedras e ao peixe na maré.
E todavia o mistério
Pulsava vivo Na água e nos pássaros canoros.
E ali podia eu maravilhar-me com meu aniversário
Que fugia, enquanto o tempo girava em derredor. Mas a verdadeira
Alegria da criança há tanto tempo morta cantava
Ardendo ao sol.
Era o meu trigésimo ano
Rumo ao céu que então se imobilizara no meio-dia do verão
Embora a cidade repousasse lá embaixo coberta de folhas no sangue de outubro.
Oh, pudesse a verdade de meu coração
Ser ainda cantada
Nessa alta colina um ano depois.



CONTO DE INVERNO

É um conto de inverno
Que o cego crepúsculo de neve transporta sobre os lagos
E os flutuantes campos da fazenda na taça dos vales,
Deslizando tranquilo entre os flocos agarrados com a mão,
Sobre o pálido bafio do rebanho junto à vela furtiva,

E as estrelas que caem frias,
E o cheiro do feno em meio à neve, e a distante coruja
Que adverte entre os apriscos e o gélido refúgio
Agarrado à fumaça branco-ovelha da chaminé da estância
Nos vales cruzados pelo rio onde a história é contada.

Outrora, quando o mundo envelheceu
Numa estrela de fé pura como o pão que boiava sem destino,
Como o alimento e as chamas da neve, um homem desenrolou
Os pergaminhos de fogo que ardiam em sua cabeça e em seu coração
Rasgados e esquecidos numa casa sobre uma dobra da campina.

E ardendo então
Em sua ilha flamejante cingida pela neve alada
E as esterqueiras brancas como a lã e os poleiros das galinhas
Que dormiam enregeladas até que a chama da aurora
Penteasse os pátios encapotados e os homens da manhã

Tropeçassem nas enxadas,
E o rebanho espreguiçasse, e o gato arisco perseguisse o rato,
E os pássaros eriçados saltassem para caçar, e as suaves
Ordenhadoras arrastassem seus tamancos sobre o céu desmoronado,
E toda a fazenda despertasse em seus brancos afazeres,

Ele se ajoelhou, chorou, rezou,
Junto ao assador e à caneca escura sob a faiscante luz da lenha
E à xícara e ao pão partido entre as sombras bailarinas,
Na casa abafada, no decorrer da noite,
À beira do amor, apreensivo e atraiçoado.

Ajoelhou-se sobre as pedras frias,
Chorou desde a crista da dor, rezou ao céu nublado
Para que a fome fosse embora uivando sobre alvos ossos nus
Além das estátuas dos estábulos e das pocilgas com tetos celestes
E do cristal da lagoa dos patos e dos ofuscantes currais solitários

Até o lugar das orações
E das chamas, onde pudesse vagar sob a nuvem
De seu amor cego pela neve e precipitar-se para as brancas tocas.
Sua miséria desnuda o golpeava e, arqueado, ele uivava
Embora som algum flutuasse no ar enrugado em sua mão

A não ser o vento que excitava
A fome dos pássaros nos campos do pão, da água, lançados
Nos altos trigais e a colheita a derreter-se em suas línguas.
E sua anónima miséria o enlaçava e ele ardia extraviado
Quando, frio como a neve, tinha de correr entre os vales cruzados

Pelos rios que desaguam na noite,
E afogar-se nos torvelinhos de sua miséria, e estender-se enrolado,
Agarrado ao centro desde sempre desejado do branco
Berço desumano e do leito nupcial eternamente procurado
Pelo crente perdido e o proscrito expurgado da luz.

Liberta-o, gritava,
Perdendo-o de todo no amor, e arroja a sua miséria
Nua e solitária na engolfante noiva
Para que ela nunca germine nos campos da branca semente
Ou floresça escarranchada na carne agonizante.

Escuta. Cantam os trovadores
Nas aldeias mortas. O rouxinol,
Poeira nos bosques sepultos, voa com os órgãos de suas asas
E soletra o seu canto de inverno aos ventos dos mortos.
A voz da poeira líquida que vem das fontes extintas

Está falando. O córrego seco
Salta com balidos e latidos aquáticos. O orvalho repica
Nas folhas trituradas e nos reflexos que há muito já não brilham
Da paróquia de neve. As bocas entalhadas na rocha são
cordas tangidas pelo vento.
O tempo canta por entre as obscuras campânulas mortas. Escuta.

Foi um som ou certa mão
Que abriu de par em par a tenebrosa porta na terra de outrora
E lá fora, sobre o pão do solo,
Uma ave se ergueu radiante como uma noiva em chamas,
Uma ave amanheceu, e seu peito se emplumou de neve e escarlate.

Olha. E os bailarinos se movem
Sobre os mortos, a neve se vestiu de verde, liberta ao luar
Com uma revoada de pombos. Exultantes, os cavalos de cascos solenes,
Centauros mortos, regressam e percorrem os alvos pastos alagados
Nas fazendas dos pássaros. O carvalho morto sai em busca do amor.

Os membros esculpidos na rocha
Saltam como ao som das trombetas. A caligrafia das velhas folhas
Está dançando. Os traços da idade sobre a pedra se entrelaçam num rebanho.
A voz de harpa da poeira das águas se desgarra de uma dobra das campinas.
Em busca do amor, alça seu voo a ave de outrora. Olha.

E as asas selvagens se elevaram
Sobre a sua cabeça enrugada, e a doce voz das plumas
Esvoaçou pela casa como se o pássaro entoasse louvores
E todos os elementos da lenta queda se rejubilassem
Porque um homem solitário se ajoelhara na taça dos vales,

Sob o manto, em sossego,
Junto ao assador e à caneca escura sob a faiscante luz da lenha,
E o céu dos pássaros com a voz emplumada o erguia ao sortilégio
E ele corria como o vento atrás do voo em chamas
Para além dos celeiros sem luz e dos currais da fazenda em calma.

Nos pólos do ano
Quando os melros morriam como sacerdotes nas sebes embuçadas
E as distantes colinas tangenciavam o tecido dos condados,
Sob as árvores de uma só folha corria um espantalho de neve,
Precipitando-se por entre os torvelinhos das moitas esgalhadas como cervos,

Andrajos e orações caíam sobre
As colinas ajoelhadas e ecoavam nos lagos adormecidos,
Perdidos a noite inteira e a vagar por muito tempo no despertar
Da ave através dos tempos, das terras e dos flocos de neve.
Escuta e olha por onde ela navega no mar agitado pêlos gansos,

O céu, o pássaro, a noiva,
A nuvem, a miséria, as estrelas fincadas no azul, o júbilo
Para além dos campos semeados e o tempo escarranchado na carne agonizante,
E os céus, o céu, a tumba, a ardente pia batismal.
Na terra que já fora, a porta de sua morte se abriu de par em par

E o pássaro desceu
Numa colina branca como o pão sobre a concha da fazenda
E os lagos e os campos flutuantes e os vales cruzados pelo rio
Onde ele rezava para alcançar o derradeiro prejuízo
E a casa das preces e do fogo, já terminado o conto.

A dança se extingue
Na brancura que já não reverdece, e, morto o trovador,
Aflora o canto nas aldeias de desejos calçados pela neve
Que outrora entalharam as silhuetas dos pássaros no pão profundo
E fizeram deslizar as formas dos peixes voadores sobre os lagos de cristal

Degolou-se o ritual
Do rouxinol e do centauro morto. As fontes voltam a secar.
Os traços da idade dormem na pedra até que a aurora se anuncie.
Jaz o júbilo. O tempo sepulta o clima da primavera
Que retinha e saltava com o fóssil e o orvalho renascido.

Porque a ave se deitara
Num coro de asas, como se estivesse morta ou adormecida,
E as asas se movessem em surdina e ele se sentisse louvado e casado,
E por entre as coxas da noiva envolvente,
A mulher com seus seios e o pássaro de crista celestial,

Foi ele enfim derrubado Ardendo no leito nupcial do amor,
No torvelinho do centro desejado, nas dobras
Do paraíso, no botão rodopiante do universo.
E ela se ergueu com ele florescendo em sua neve derretida.



Poema em seu aniversário

No sol cor semente de mostarda
Junto ao caudaloso rio em declive e o ziguezague do mar
Onde correm os corvos-marinhos,
Em sua casa sobre estacas, entre os bicos
E o palavrório dos pássaros
Nesse dia como grão de areia na tumba arqueada da baía,
Ele celebra e desdenha
Seus trinta e cinco anos de despojos que o vento amadureceu;
As garças se aguçam e chuçam.
Abaixo e à sua volta fluem
Os linguados, as gaivotas, em suas frias e agônicas trilhas,
Cumprindo o que disseram,
Ruidosos maçaricos nas ondas apinhadas de moréias
Mourejam em seus caminhos para a morte,
E o poeta no quarto de esguia língua ferina,
Que tange o sino de seu aniversário,
Se esfalfa em direção à tocaia de suas chagas;
As garças, agulhas em riste, o abençoam.
No outono dos cardos,
Ele canta para a angústia; os tentilhões voam
Entre os rastros afiados dos falcões
Num céu de rapina; deslizam peixes miúdos
Pelas vielas e as conchas de cidades
Afogadas de barcos até os pastos de lontras submarinas.
Em sua oblíqua casa de suplícios
E nas puídas espirais de seu ofício, ele percebe
As garças que caminham em seu sudário.
A túnica infindável do rio
De vairões se tece ao redor de suas preces;
E lá longe, no mar, ele conhece
Aquele que escraviza o seu fim genuflexo
Sob uma nuvem de serpentes,
Mergulham golfinhos na poeira dos naufrágios,
As rugosas focas arremetem
Para matar e sua própria maré untada de sangue
Resvala suavemente em sua boca macia.
Num silêncio de onda, cavernoso
E oscilante, choram os alvos dobres do ângelus.
Trinta e cinco sinos brandiram seu repique
Sobre o crânio e a cicatriz onde jazem seus amores em ruínas,
Guiados por estrelas cadentes.
E o amanhã soluça numa jaula cega
Que o terror enfurecido há de isolar
Até que os grilhões se quebrem sob martelos em chamas
E o amor dilacere as trevas
E em liberdade ele se perca
Na famosa luz desconhecida do grande
E fabuloso Deus amado.
A treva é um caminho e a luz um lugar,
O céu que nunca existiu
Nem existirá jamais é sempre verdadeiro,
E, nesse espinhoso vazio,
Farto de amoras em seus bosques,
Os mortos crescem para o Seu júbilo.
Ali, desnudo, ele erraria
Com os espíritos da baía que se curva em ferradura
Ou os mortos na praia de estrelas,
Com a medula das águias, as raízes das baleias
E a fúrcula dos gansos selvagens,
Com o Deus abençoado que jamais nasceu e o Seu Espírito,
E com cada alma Seu sacerdote,
Enganada e cantante na jovem dobra do Céu,
Junto à trêmula paz das nuvens.
Mas a treva é um longo caminho.
Ele, sobre a terra da noite, a sós
Com tudo o que vive, reza,
Ele, consciente de que o vento faiscante há de soprar,
Lançando os ossos para além das colinas,
E que as pedras feridas à foice hão de sangrar, e as últimas
Águas despedaçadas pelo ódio hão de arremessar
Os mastros e os peixes às silenciosas estrelas vivas,
Sem nenhuma fé até Aquele
Que é a luz do velho e aéreo
Céu, onde as almas crescem selvagens
Como cavalos na espuma:
Oh, enluta-me na metade da vida junto às relíquias
E aos juramentos das garças-druidas
Durante a viagem que terei de fazer até a ruína,
Entre barcos desvalidos e encalhados;
Ainda que eu grite, todavia, com a língua quase a cair,
E conte em voz alta as minhas chagas:
Quatro são os elementos e cinco
Os sentidos, e o homem uma alma enamorada
Que se enreda através dessa lama rodopiante
Até chegar ao seu reino frio, coroado de sinos
E de enluaradas cúpulas perdidas,
E o mar que oculta suas secretas criaturas
Nas profundezas de seus negros ossos abjetos,
Acalanto de astros na carne calcária do mar,
E essa Suprema bênção derradeira,
Pois quanto mais caminho
Para a morte, um homem com os cascos gretados,
Mais sonoro o sol floresce
E o mar confuso e esquartejado exulta;
E cada onda no caminho
E cada vendaval que enfrento, e todo o mundo então,
Com a fé mais triunfante
Do que nunca desde que se proclamou o mundo,
Faz girar sua manhã de louvores,
Ouço as colinas ondulantes
Inflar-se de cotovias e reverdecer no outono
Turvo de amoras, e as cotovias do orvalho cantam
Mais alto que essa primavera trovejante
E as ferozes ilhas de alma humana
Quanto mais próximas dos anjos flutuam!
Oh, seus olhos tornam-se então mais sagrados
E meus homens cintilantes não estão sós
Enquanto eu navego para a morte.

In Dylan Thomas / Poemas Reunidos (1934/1953),
com tradução de Ivan Junqueira, publicado pela José Olympo Editora
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