sábado, 31 de março de 2012

TINTO

“en tinta púrpura
da prensa escorre o poema da vida”

Ramón Blanco

esmaga a uva
até lhe retirar a tinta no palato
os dedos contam as gotas
que escorrem devagar
ao batimento de cada raio de sol

enquanto a aranha tece
a mortalha para a mosca
as pipas e tonéis abrem-se
de espanto para a nota rubra
de frutos silvestres
que sairá da obra de desespero das suas mãos

então, o que esmagou e matou
no lagar, lugar em que são as promessas geradas,
é o que dá a vida aos homens
é o sangue, pelo qual navega
tudo quanto resgata
ao adormecimento dos lábios
e tece na língua um poema tinto
de final longo

Rui Miguel Duarte
1/04/12

A PRESSA DO CÂNTICO NEGRO DE JOSÉ RÉGIO

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José Régio escreveu versos nos quais é evidente o tempo poético.
Vagaroso, no deslizar de alguns dos seus poemas mais conhecidos, triturou o tempo com repetições - «Toada de Portalegre»-, ou foi demasiadamente rápido, como nos primeiros versos de um dos poemas maiores da nossa língua - «Cântico Negro».
Situado entre o presencismo intimista e uma espécie de neo-realismo com preocupações de ordem social, é, do meu ponto de vista, um poema estruturado entre a psicologia e a religião.
Os poemas de Régio distinguem-se por isso mesmo, ficam entre a categoria telúrica e a religiosa.
Com efeito, o poema «Cântico Negro», que marcou a recusa à imposição, ao assédio, pelos vistos insistente, do «Vem por aqui», é, sem dúvida, um desses em que o intimismo e a dúvida do poeta cede psicologicamente à pressão do telúrico, das raízes da terra, deslizando pelo religioso, mas com uma força e violência tais, que nos parece ter afastado Régio de toda a sua religiosidade. Assim o entendemos na without hope da apoteose dos versos finais do célebre poema:

Não sei por onde vou. / Não sei para onde vou. /Sei que não vou por aí.

Contudo, é no desenvolvimento contextual dos primeiros versos do poema em causa, que se acentua a pressa do poeta de Vila do Conde. Pressa em se afastar do ponto de viragem, no qual o assediam a entrar e em cujo caminho quase o obrigam a seguir, usando olhares doces, segundo a crítica do Poeta:

Quando me dizem «vem por aqui!»
Eu olho-os com olhos lassos,
(...)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali.

Não há elipses na linguagem, nem tautologias, regressos ao princípio, nestes seus versos, repetições tais como em «Portalegre cidade do Alto Alentejo». Eles fogem às pressões que rodeavam o poeta, resistem ao chamamento de quantos pareciam ter moralidade e ciência bastantes para o aconselhar.
Este poema é, sobretudo, um poema de fuga, e fuga em frente. E o rasto que deixa é um claro desafio aos homens e uma espécie de pugna com o Divino, como a luta de Jacob com o Anjo no Vau de Jaboque.
A pressa da fuga, detectamô-la no oitavo verso, por uma categoria gramatical tão simples quanto o comum advérbio de lugar.
Veja-se a distinção e o tempo a fluir, o tempo que não se compadece com indecisões, no momento preciso em que o chamam: Vem por aqui ( por este lado); mas Régio continua a afastar-se da proposta, seguindo o seu próprio caminho, não reconhecendo autoridade àqueles que o assediam, e afirma, já distante: E nunca vou por ali.
Entre o «aqui» e o «ali» existem um universo e um tempo de coisas indizíveis. Ou apenas um minuto de permanente rebeldia poética.

(c) J.T.Parreira
in www.poetasalutor.blogspot.com

sexta-feira, 30 de março de 2012

O CÃO, DE GIACOMETTI

Sou eu. Um dia me vi na rua assim. Um cão.
Alberto Giacometti


O cão da melancolia
procura qualquer coisa, põe o faro
paciente no chão
pescoço longo em baixo como uma tristeza

para pendurar as orelhas

O cão de Giacometti vê
as coisas
de barriga para baixo

O cão cabisbaixo, indiferente
a alegorias
flutua na arquitrave
dos seus ossos

O corpo leva as patas joviais.



14/2/2009

J.T.Parreira

Túpac Amaru



Túpac Amaru

“Túpac Amaru, sol vencido,
tua glória desgarrada
sabe como o céu no mar
uma luz desaparecida.”
Pablo Neruda, Canto Geral

Neruda, cicatrizes nas alamedas de quartzo,
Um funeral nas pétalas
Funeral de insetos tugidos nas pétalas
Da flor de turmalina da árvore da vida
Sephirot

Tepidez, trovão, máscaras araucárias
Neruda, nunca beijei uma colombiana, quando
Prestes afogaram-me no Amazonas,
Meu obscuro Nilo


Eles vão sair, vão à missa na matriz
Formam um lindo casal
Como a noite e o punhal
Interpolação de asas, secreto voo,
Queda, Neruda, Neruda,
.



Pirata espanhol, pirata francês,
Duro pirata inglês
Pirata português e holandês
Queria dar-vos a morte
Em vosso berço, abrir
Com meu punhal noturno
Os ventres purulentos de tuas raparigas de leite
Romper o telhado sombreado
De vossas casas maternas
Mas são vocês que matam-nos em nosso berço de palha,
Vocês vêm para transformar-nos em Adão.



Neruda, Neruda,
Hoje eu planto coca
Para alinhavar a sanha dos piratas:
Vingo-nos sem alabardas:
Empalo
Seus sonhos em pedras
E linhas dilacerantes de pó.

Sammis Reachers

quarta-feira, 28 de março de 2012

A história preliminar de José


Chamava-se
José
mais tarde do Egipto

Vivia dos sonhos mais profundos
que lhe subiam aos olhos
viveu em tendas e à beira
do poço pensou que os irmãos
o poupariam -
mas os sonhos de José incomodavam

José
olhava-se nos sonhos
como Narciso no seu espelho de água

E assim o silêncio do poço
o engoliu. Antes do Egipto
viveu
do ar e de gritos
que o céu apenas espelhava.

28/3/2012

Poema Inédito de J.T.Parreira

terça-feira, 27 de março de 2012

OUTRA JERUSALÉM

“Construam casas para nelas habitarem; plantem hortas e comam do seu fruto.”
Jeremias 29:5

disseram-nos 
que construíssemos casas 
e as adornássemos de pomares
a toda a volta da nossa vista 
aí, dia a dia, faríamos amor 
até bisnetos nos nascerem 

disseram-nos 
que nessa terra ao plantarmos hortas
colheríamos paz, que muros 
não haveria que estancassem 
os nossos sonhos
nem o flagelo da fome nos puniria

e assim fizemos:
mesmo embutidos entre os rios
toda a terra 
é outra Jerusalém

26/03/12

EVA


           Uma mulher
 é sempre um ruído

um perder-se

                 uma solução
                    para nada

falsa fragilidade aracnocoisa
                           sorvedora

escuridão prendada aveludado
                                    soco

maçã para quem preferia não ter fome
                                            enviada

Sammis Reachers

segunda-feira, 26 de março de 2012

BABILÓNIA

fora do mundo
descobrimos que há mundo
que há jardins e palácios
para lá do deserto
e também rios de águas vítreas

que para lá do choro e do riso
também há riso e choro
e que as lágrimas não são as últimas coisas
que derramamos
e que também aí a alegria se purifica

nunca imaginámos
que os caminhos do Senhor fossem
tão vastos e que o vento
levasse tão longe o aroma
do figo maduro

26/03/12

sábado, 24 de março de 2012

"Dirty Realism" - Um Paradigma











In English dictionary: “a style of writing, originating in the US in the 1980s, which depicts in great detail the seamier or more mundane aspects of ordinary life”


Um movimento literário, como tantos outros que enriqueceram esteticamente a Europa. Todavia, este é originário dos Estados Unidos, da década de 80, e também poderia ser da de 40, no Brasil, com o poema-chave da nova poética de Manuel Bandeira: “Vou lançar a teoria do poeta sórdido”.

E ultrapassa os objectivos da Beat-Generation, que face ao “Dirty Realism” era um movimento de anjos pela estrada fora, embora os anjos não façam literatura, remetem-se apenas, celestialmente, a cantar o milagre celeste dos Salmos.

O Realismo Sujo capta inocentes e culpados. Nesta escrita, poética ou em prosa, a narrativa é despida até ao osso. Bandeira antecipou e definiu bem, escrevendo que o poeta sórdido é “aquele em cuja poesia há a marca suja da vida”.

Às vezes, quase sempre, não são os autores que nomeiam o seu movimento, em regra têm sido os jornalistas ( como o Impressionismo assim foi, em 1870). O editor da revista sobre a escrita nova, Granta, Bill Buford baptizou o movimento, como literatura em que a narrativa é despojada de suas características fundamentais.

O Dirty realism nos Estados Unidos reuniu autores como Raimond Carver e Charles Bukowsky, teve mesmo ancestrais próximos como Ernest Hemingway e Henry Miller, sobretudo a prosa despojada, sem receio da crítica da moral, do autor do “Trópico de Câncer”.

A técnica usada, resume-se a utilizar uma escrita na qual se iluminam sobretudo coisas que não se dizem em público. Sobrepõe-se também às regras prescritivas na gramática. Com a economia de palavras. Minimalista. Usa a mecânica de sublinhar a vida, que pode ser o fato branco onde cai uma nódoa. Que quase sempre é assim.

Realismo sujo é a ficção na qual se escreve o que ocorre na voracidade da vida contemporânea - um marido abandonado, uma mãe solteira, um ladrão de carros, um carteirista, um viciado em drogas - mas escreve-se sobre tudo isso com distanciamento perturbador, às vezes beirando a comédia- dizia, na introdução histórica do movimento, a revista Granta.

Alguns dos autores do movimento, esconderam-se atrás das suas personagens. Paradigmaticamente, o poeta Charles Bukowski. Em alemão, a isto chamava-se Maskenfreiheit, a liberdade conferida pelas máscaras. Ezra Pound, muito antes, chamou-lhes Personae.

Dois excertos do poema “Noite Imbecil” e “Pássaro Azul”, de Bukowski,

noite imbecil,

(...)

o dia foi um contínuo inferno

e agora vens

arrastando-te pelos canos

esvaziando a bexiga

por onde vais,

bebi 9 garrafas de cerveja

uma caneca de vodka

fumei 18 cigarros

e ainda te sentas em cima de mim

---------

Há um pássaro azul no meu coração que

quer sair

mas deito-lhe whisky em cima e levo

-lhe o fumo dos cigarros,

e as prostitutas e os criados

(...)nunca ficam a saber

que ele está lá dentro

(Tradução dos poema da versão castelhana por JTP)


Aqui estão presentes, em detalhe, descrições numa linha semântica de objectos do quotidiano nos seus aspectos “mais sórdidos ou mundanos da vida comum” - como define o dicionário.

João Tomaz Parreira

sexta-feira, 23 de março de 2012

Alfonsina Storni: RESSURGIR

Passei pelo tamis todas as minhas dores
Estou purificada. E clamo: vida nova!
Que esta vida seja como um ritmo de seda!


Doçura e mais doçura! A placidez da tarde
Prazerosa e de sol, a casinha com heras
E um pedaço de céu que na alma se envolva.


Nenhum anseio mais do que anseio infantil,
Ter as andorinhas de uma quietude eterna
E sentir-me bem... tão intensamente bem!...


Não ler nada, nada, mais que no livro pródigo
O infinito e precioso livro da natureza
E com o peito aberto a sorver suas verdades!...


Com essa vida nova. Realizar o milagre
De cobrir com jasmins a ferida das veias
Fazendo uma canção com restos do infortúnio.


Ter o coração feito um lampejo de luz,
Ter o coração feito um punhado de gemas
Para que se abram sempre frescos e novos brotos.


Ir entrando na vida com asas presas n’alma,
Com asas corporais, com asas nas idéias
E um ligeiro carinho para a morte que avança.


Perdoar, perdoar, não ter nenhum rancor;
Dá-lo todo ao olvido, chorando na plácida


Solidão da noite com um pranto de pérolas.


Pérolas de prenúncio, de olvido, alegria,
De doçura, de gozo em sentir-me serena
E de entender a vida como um ritmo de seda.


Hoje tenho n’alma a alma do Natal.
Hoje o quero assim... Hoje é dia de festa!


Tradução de Cristiane Carvalho e Manolo Graña


via http://www.avozdapoesia.com.br

quinta-feira, 22 de março de 2012

Poema de Gregory Corso



AOS 25 ANOS

Com um amor e uma loucura por Shelley
Chatterton Rimbaud
o lamento imprudente da minha juventude
foi de ouvido em ouvido:
EU ODEIO OS POETAS VELHOS!
Especialmente aqueles que se desdizem

que consultam outros poetas velhos
que recordam sua mocidade em suspiros,
e dizem: eu escrevi alguns desses
mas isso foi dantes
foi dantes -
Ah eu gostaria de acalmar os velhos
dizendo-lhes: - Sou vosso amigo
o que alguma vez fostes, através de mim
voltareis a ser -
Então uma noite, quando me confiassem suas casas
rasgaria as desculpas da sua língua
e roubaria seus poemas.

in Gasoline
 
(Trad. J.T.Parreira)

Salmo 137 em português moderno

Não invocámos pequenos prazeres
junto aos rios da Babilónia
nas margens havia salgueiros
e neles pendurámos nossas lágrimas
nem pequenos passeios
de barco, no sossego das águas
aos sábados
pendurávamos a vida
nesses dias à beira dos rios
da Babilónia, imóveis
só tomávamos o ar.

21/3/2012

J.T.Parreira

quarta-feira, 21 de março de 2012

Fraternidade




Amigo, quando você voltar para o Ceilão, sabe,
aquela namoradinha que você falou em encontrar
Veja lá
Se ela não tem uma irmãzinha pra mim
Pra quando eu sair
Fala pra ela desse teu amigo hondurenho


Se você fizer aquele lance, aquela doideira, sabe
De alistar-se na Legião Estrangeira
Acho isso tão legal e tô contigo meu irmão, mas
Você disse que eles só aceitam soldados profissionais agora
Pois eu tenho um amigo no Quênia, ele falsifica documentos
E eu sei atirar muito bem, já matei um homem em Johannesburgo
Quando sair vou para lá contigo


Mas se você conseguir entrar na Espanha, o Gino falou
Que as coisas lá não tão boas, que o lance agora é Coréia,
América do Sul, Brasil
(pra Honduras não posso voltar)
Mas aqueles seus conhecidos russos, sabe,
Eu posso transportar coisas pra eles, tenho passaporte já
Fale com eles de seu amigo, seu irmão da cadeia


A carta que eu te pedi, não vá esquecer, eu sei, eu sei,
Mas não custa lembrar
É prum amigo, sabe
Eles estão todos casados, só eu
É que não tenho ninguém, fui me meter em treta,
Tu sabe que nunca confiei em mulher, ou confiei demais, mas cansei
Eles se afastaram, mas esse era amigo mesmo, do peito
Ele tem umas casinhas, acho que posso morar de favor
Até as coisas se ajeitarem


Tu vai fazer falta aqui no recreio, isso aqui é uma grande bosta, sabe
Mas fazem-se amigos aqui
Alianças como não vi lá fora
Como nunca vi lá fora, sabe
Quando sair vou ter contigo


Sammis Reachers

FILHO DO MAR

filho do mar
é o poema como Afrodite
tem as ondas por canção de embalar

filho do céu
é o poema como as nuvens
que são pequenos novelos de sonho

filho do pulmão
é o poema como a respiração
necessária para conter todo o vento

filho dos montes
é o poema como as linhas íngremes
que cada palavra sobe de costas voltadas a outra

filho dos rios
é o poema como a frescura
que risca os olhos ao desenharem as margens

filho das cidades
é o poema como as pessoas que se cruzam
estreitas na baixa e que buzinam e gritam em silêncio

filho de todos e de tudo
é o poema
excepto do poeta

a menos que seja como aquele pródigo
da parábola, que o deixou rico de letras
e a ele regressou pobre de espírito


21/03/12
inédito para o Dia Mundial da Poesia

segunda-feira, 19 de março de 2012

Ernesto Gardenal: Epístola a Monsenhor Casaldáliga



“Monsenhor:
Li que em uma batida feita pela Polícia Militar
na Prelatura de São Félix, foram levados, entre
outras coisas, a tradução portuguesa (não sabia
que existia) de “Salmos” de Ernesto Cardenal. E
que a todos os detidos deram choques
por Salmos que muitos talvez não tinham lido.
Eu sofri por eles, e por tantos outros,
‘nas redes da morte’…‘nos laços do Abismo’
Irmãos meus e irmãs
com eletrodos nos seios, com eletrodos no pênis.
Lhe digo: esses Salmos aqui também foram proibidos
e Somoza disse há pouco em um discurso
que erradicaria o ‘obscurantismo’ em Solentiname.
Vi uma foto sua às margens do Araguaia
no dia de sua consagração, com sua mitra
que como sabemos é um sombreiro de palma
e seu cajado, um remo da Amazônia. E soube
que espera agora uma sentença do Tribunal Militar.
O imagino, em espera, sorridente como na foto (não
era pra câmera mas pra tudo que estava por vir),
à hora em que os bosques se tornam mais verdes
ou mais tristes,
Ao fundo a água bela do Araguaia
o sol fundindo-se atrás de latifúndios distantes.
A selva ali começa, ‘seu silêncio com uma surdez’.
Eu estive uma semana no Amazonas (Letícia) e recordo
as ribeiras de árvores recobertas por confusão e parasitas
como empresas financeiras.
Você ouviu de noite seus estranhos ruídos
(uns são como lamúrias e outros como gargalhadas).
Jaguar atrás da anta, anta espantando os macacos, os macacos
afugentando à…
araras?
(está em uma página de Humboldt)
como uma sociedade de classes.
Uma melancolia nas tardes como a dos pátios das penitenciárias.
No ar há umidade, e como um odor a DOPS…
Talvez sopre um vento triste do Nordeste
do triste Nordeste…
Há uma rã negra no negros igarapés
(li isso) uma rã que interroga: Porrr
quê? Porrr
quê?
Talvez salte um tucunaré. Alce o vôo uma garça graciosa
como Miss Brasil.
Pese às companhias, às empresas. A beleza
dessas ribeiras, prelúdio da sociedade que temos.
Que temos. Não poderão, ainda que tentem
tirar um planeta do sistema celeste.
Anda por ali a Anaconda? Anda
a Kennecott? *1
Lá, como aqui, o povo está com medo.
Os seculares, você escreveu,
“pela selva como jaguares, como pássaros”
Sabia o nome de um rapaz (Chico)
e o nome de uma garota (Rosa)
a tribo se vai rio acima.
Vêm as Companhias levantando os cercos. Passam
pelo céu de Mato Grosso os proprietários de terras em suas avionetas.
E não o convidam ao grande churrasco com o Ministro do Interior.
Semeando solidão as Companhias
vão levando o telégrafo para transmitir falsas notícias.
O transistor aos pobres, para as mentiras ao ouvido.
Proibida a verdade porque faz livres.
Solidão e divisão e puas.
Você é poeta e escreve metáforas. Mas também escreveu:
“a escravidão não é uma metáfora”.
E se internam até o alto Xingu
os caçadores de concessões bancárias usurárias.
O pranto nessas zonas, como a chuva amazônica.
A Polícia Militar lhe disse que
a Igreja só deve cuidar do “espírito”
mas e as crianças anêmicas pelas sociedades anônimas?
Talvez seja noite escura na Prelatura de São Felix.
Você sozinho, na casa da Missão, rodeado de selva,
a selva por onde vem avançando as corporações. É
a hora dos espiões do DOPS e dos pistoleiros das Companhias.
É um amigo à porta ou o Esquadrão da Morte?
Imagino (se há lua) uma lua melancólica da Amazônia
sua luz ilumina a propriedade privada.
Latifúndio não para cultivar, que isto fique claro,
senão para que o posseiro não faça sua pequena granja.
Noite escura. – “Irmão, quanto faltará pra chegar
Ao Paranará?*2 – “Não sabemos, irmão.
Não sabemos se estamos perto ou longe
Ou se já passamos. Mas rememos, irmão.”
Noite escura. Brilham
as luzinhas dos despossuídos nas margens.
Seus chorosos reflexos.
Longe, muito longe, riem as luzes do Rio de Janeiro
e as luzes de Brasília.
Como possuirão a terra se a terra a têm os proprietários?
Improdutivas, só valorizadas para a especulação
imobiliária e para gordos empréstimos do Banco do Brasil.
Ali Ele é sempre vendido por Trinda Dólares*3
no Rio das Mortes.
O preço de um peão. Não obstante
dois mil anos de inflação.
Noite escura. Há uma luzinha humilde (em que lugar
exatamente não sei)
um leprosário no Amazonas
ali estão os leprosos no cais
esperando o regresso da balsa do Che.
Vi que você cita minha Homenagem aos índios americanos
Me surpreende que o livro viajara tão distante até o alto Xingu
de onde você, monsenhor, os defende. Uma homenagem melhor!
Penso nos pataxós inoculados de varíola
de 10.000 cintas-largas só 500.
Os tapaima recebendo doces de açúcar com arsênio.
Outra tribo do Mato Grosso, dinamitada de um Cesna.
Não ressoa o ronco mangaré chamando as danças à lua,
as danças disfarçadas de mariposas, mascando a coca mística,
as garotas nuas pintadas com os desenhos simbólicos
da pele da jibóia, com guizos de sementes nos tornozelos
ao redor da Árvore da Vida (a palmeira de pitaya).
Uma cadeia de losangos representa a serpente, e dentro
de cada losango outras bordas decoradas, cada borda outra serpente.
De maneira que são muitas serpentes no corpo de uma só:
a organização comunal de muitos indivíduos. Pluralidade
dentro da unidade.
Ao princípio havia somente água e céu.
Tudo estava vazio, tudo era noite grande.
Depois se fez montanha, rios. Disse: “já está tudo ali”.
Os rios se chamaram uns aos outros por seus nomes.
Os homens antes eram macacos-pregos.
A terra tem a forma da árvore da fruta-pão.
Então havia uma escada para subir ao céu.
Colombo os encontrou em Cuba em um paraíso onde tudo era comum.
“A terra comum como o sol e a água, sem meum et tuum.”
Deram a ele uma tela e cortando-a em pedaços iguais
a repartiu entre toda a tribo.
Nenhuma tribo da América com propriedade privada, que eu saiba.
Os brancos trouxeram o dinheiro
a valorização monetária privatista das coisas.
(Gritos… crepitar de choças em chamas… tiros)
De 19.000 muducuras, 1.200. De 4.000 carajás, 400.
Os tapalumas: totalmente.
A apropriação privada do Éden
o Inferno Verde.
Como escreveu um jesuíta:
“a sede de sangue maior que o Rio”
Uma nova ordem. Melhor ainda
Um novo céu e nova terra.
Nova Jerusalém. Nem Nova Iorque nem Brasília.
Uma paixão pela transformação: a nostalgia
dessa cidade. Uma comunidade amada.
Somos estrangeiros na Cidade do Consumo.
O novo homem, e não o novo Oldsmobile. *4
Os ídolos são idealismos. Enquanto que os profetas
professam o materialismo dialético.
Idealismo: Miss Brasil na tela para tapar
100.000 prostitutas nas ruas de São Paulo.
E na futurista Brasília os marechais decrépitos
desde de seus escritórios executam formosas jovens por telefone
exterminam a alegre tribo com um telegrama
trêmulos, reumáticos e artríticos, cadavéricos
resguardados por gangsters gordos de óculos escuros.
Esta manhã o cupim entrou em minha cabana
onde estão livros (Fanon, Freire…
também Platão): uma sociedade perfeita
mas sem uma transformação
Por milhões de anos sem uma transformação.
Há pouco me perguntava um jornalista por que escrevo poesia:
pela mesma razão que Amós, Nahum, Ageo, Jeremias…
Você escreveu: “maldita a propriedade privada”.
E São Basílio: “donos dos bens comuns
porque foram os primeiros a pegá-los”.
Para os comunistas Deus não existe, a não ser a justiça.
Para os cristãos Deus não existe, sem a justiça.
Monsenhor, somos subversivos.
Cifra secreta num cartão em um arquivo quem sabe onde,
Seguidores do proletariado mal vestido e visionário, agitador
profissional, executado por conspirar contra o Sistema.
Era, você sabe, um suplício destinado aos subversivos
a cruz, aos reis políticos, não uma jóia de rubis
no peito de um bispo.
O profano não existe mais.
Ele não está mais pra lá dos céus atmosféricos.
Que importa, monsenhor, se a Polícia Militar ou a CIA
nos converte em alimento das bactérias do solo
e nos dispersa por todo o universo.
Pilatos pôs o letreiro em 4 idiomas SUBVERSIVO.
Um apressado na padaria.
Outro esperando um ônibus para ir ao trabalho.
Um rapaz de cabelo comprido cai numa rua de São Paulo.
Há ressurreição da carne. Se não
como pode haver revolução permanente?
Um dia “El Tiempo” saiu jubiloso às ruas de Bogotá
(até em Solentiname nos chegou) MORTO CAMILO TORRES
enormes letras negras
e está mais vivo que nunca desafiando ao “Tempo”.
Como também aquele editorial do New York Times
textualmente: “Se é verdade que morreu na Bolívia, como parece,
um mito acabou junto com um homem.”
E dizem em Brasília:
“Não vejais para nós visões verdaeiras, nos falando
coisas encantadoras, comtemplando ilusões”.
O milagre brasileiro
de um Hotel Hilton rodeado de favelas.
Sobe o preço das coisas
e baixa o preço dos homens.
Mão-de-obra tão barata quanto seja possível (para
eles não é a limpeza… é a Sinfonia de Beethoven).
E no Nordeste o estômago devora a si mesmo.
Sem Julião, *5 os capitais se multiplicam como bacilos.
Capitalismo, o pecado acumulado, como a poluição
de São Paulo
a mesma cor de whisky sobre São Paulo.
Sua pedra angular é a desigualdade.
Conheci no Amazonas a um famoso Mike
que exportava piranhas aos E.U.A.
e não podia enviar mais que duas em cada aquário,
para que uma fugisse sempre da outra:
Se são três ou mais se destroçam todas.
Assim este modelo brasileiro de piranhas.
Produção em massa de miséria, crime
em quantidades industriais. A morte
em produção em cadeia.
Mario-Japa pediu água no pau-de-arara
e lhe fizeram engolir meio quilo de sal.
Sem notícias devido à censura, apenas sabemos:
ali onde se juntam os helicópteros está o Corpo de Cristo.
Da violência eu diria:
existe a violência da Evolução
e a violência que retarda a Evolução.
(E um amor mais forte que o DOPS e o Esquadrão da Morte)
Mas
sadismo e masoquismo é a harmonia das classes
sadismo e masoquismo de opressores e oprimidos.
Porém o amor também é implacável (como o DOPS).
O anel de união pode levar alguém ao pau-de-arara, à
coronhadas de metralhadoras na cabeça, a
golpes na cara com punhos vendados, aos eletrodos.
Muitos por esse amor tem sido castrados.
Alguém sente a solidão de ser só indivíduos.
Talvez enquanto te escrevo você já tenha sido condenado.
Talvez eu depois estarei preso.
Profeta ali onde se juntam o Araguaia e o Xingu
e também poeta
Você é a voz dos que têm esparadrapos na boca.
Não é tempo agora de crítica literária.
Nem de atacar aos gorilas com poemas surrealistas.
E pra que metáforas se a escravidão não é metáfora
nem é metáfora a morte no Rio das Mortes
nem o Esquadrão da Morte?
Agora o povo chora no pau-de-arara.
Mas todo galo que canta na noite do Brasil
agora é subversivo
canta “Revolução”
E é subversivo, depois de cada noite,
como uma garota repartindo panfletos ou cartazes de Che
a cada aurora vermelha.
Saudações aos posseiros, peões, seculares da selva,
ao cacique tapirapé, às irmãzinhas de Foucauld, a Chico, a Rosa.
Te abraça,
Ernesto Cardenal.”
*1: grande empresa mineradora multi-nacional
*2: algum rio do Amazonas, provavelmente
*3: ref. 30 moedas a que Judas “vende” Jesus
*4: tipo de carro antigo
*5: na versão original está: “Si, Julião, …”, mas, entendendo que Julião, provavelmente, refere-se ao Julião que liderou as Ligas Camponesas no Nordeste, imagino que houve uma grafia errada (o texto na revista está cheio de erros de grafia/digitação) e que deve ser “Sin Julião…” o que dá mais sentido ao verso.

domingo, 18 de março de 2012

MEDITAÇÃO SOBRE O SALMO 137

recostamos os joelhos à beira dos rios
da Babilónia, os rios onde nem
os pés lavamos da marcha desde Sião,

mas os pensamentos vão lavados
e perambulam como corças
pela nudez acre da nossa terra
esfolada
perguntando aos rios se
haverá ainda por lá salgueiros em pé

é que nos arrancaram dos olhos
os contornos de Sião
e despojaram os nossos ombros
do linho de Jerusalém,
e nus nos deixaram
sem a túnica santa e branca que vestíamos
ao sábado

se de ti, Sião, a memória se escoar
nestas águas estranhas
que os dedos da minha mão direita
percam o tacto sejam como fantasmas
nas cordas da harpa

19/03/12

O homem que via passar gaivotas

J.T.Parreira  

Amaciava os olhos no voo das gaivotas
que escovavam o ar
das impurezas

seguia na ponta dos olhos
os pormenores do mundo
das gaivotas, mais céu que água
mais silêncio do que onda
nenhuma tempestade ao largo
do cais pisado devagar, nenhuma nuvem
a remendar o azul
como num quadro de Magritte
e estremecia de repente
quando uma gaivota furava o tempo
com um grito.

11/3/2012
 

Rainer Maria Rilke: O LEGENTE

Há muito tempo, desde que a tarde se ouvia
Com o murmúrio da chuva nas janelas, eu lia.
O vento lá fora, já o não escutava:
O meu livro pesava.
Como se fossem rostos, as folhas sob o meu olhar
Escurecem de tanto pensamento
E, envolvendo a leitura, avolumava o tempo.
De súbito desce sobre as páginas um fulgor,
E em vez de confusas palavras - um tormento -
Há em todas só... noite, noite só, a nascer.
Não olho ainda para fora, mas já as longas
Linhas se desfazem, e as palavras rolam
Do fio que as liga, vão para onde querem...
E então eu sei que há céus sem fim
Sobre o esplendor e a plenitude dos jardins;
O sol teve de nascer mais uma vez. -
E agora é verão e noite o horizonte:
O que andava disperso em grupos se une,
Poucos, e há gente pelos caminhos escuros,
E longe, estranhamente, como se outro sentido
Tivesse, ouve-se o pouco que ainda acontece.

E ao levantar do livro o olhar agora,
Nada me é estranho, tudo tem grandeza.
O que aqui dentro eu vivo, está lá fora,
E aqui e lá não tem limite o mundo;
Só eu me teço mais com tudo isso,
Quando os meus olhos se ajustam às coisas
E à grave singeleza dessa gente -
O mundo cresce então, num golpe de asa.
O céu inteiro o abraça, é o que se sente:
E a estrela d' alba é como a última casa.


Tradução de Maria Teresa Dias Furtado
In Das Buch der Bilder (O Livro das Imagens), 1902
via http://www.avozdapoesia.com.br

quinta-feira, 15 de março de 2012

UM PAR DE BOTAS


A Pair of Shoes, 1886, Van Gogh     


Há botas velhas tão limpas
como rosas

De pétalas dobradas, tristes
canos que adornaram
tíbias orgulhosas

Botas à volta das quais
o vento e a poeira
rodopiam, rosas
que esperam a calma
das mãos que as depositem
num canto da sala

Há botas tão interessantes
como rosas
como o veludo das rosas
para nos adoçar os dedos

Botas velhas para o secreto
movimento dos pés.

25/2/2010 


J.T.Parreira

A morte da águia, poema de Luís Guimarães


A bordo vinha uma águia.  Era um presente
Que um potentado, — um certo rei do Oriente,
Mandava a outro: — um mimo soberano.
Era uma águia real.  Entre a sombria
Grade da jaula o seu olhar luzia,
Profundo e triste como o olhar humano.

Aos balanços do barco ela curvava
Ao níveo colo a fronte que cismava…
E enquanto as ondas túrbidas gemiam,
Ao som do vento – em fúnebres lamentos
Ela pensava nos longínquos ventos
Que do Himalaia os píncaros varriam.

Fora uma infame e traiçoeira bala,
Que, do régio fuzil negra vassala,
Invisível – uma asa lhe partira:
Cheia de luz, tranqüila, majestosa,
Dobrando a fronde branca e poderosa,
Aos pés de um rei a águia real caíra.

Os bonzos vis, proféticos doutores,
Sondando-lhe a ferida e as cruas dores,
Que um venenoso bálsamo tentava
Apaziguar em vão, — diziam rindo:
“Não há no mundo exemplar mais lindo:
Vale um império!” – E a águia agonizava.

Um dia, enfim, o animal valente
Resistindo aos martírios, — largamente
Respirou a amplidão.  A asa possante
Abrir tentou de novo.  Aberta estava
A jaula colossal que o esperava:
Forçoso era partir.  Desde este instante,

A águia sombria e muda e pensativa,
Solene mártir, vítima cativa,
Terror dos vis e símbolo dos bravos,
Pediu a morte a Deus, — pediu-a ansiosa
Longe, porém, da corte vergonhosa
Desse covarde e baixo rei de escravos.

Pediu a morte a Deus, o cataclismo,
As convulsões elétricas do abismo,
As batalhas finais!  Morrer num grito
Vibrante, imenso, heróico, soberano,
E fremente rolar no azul do Oceano,
Como um titã caído do infinito.

Morrer livre, cercada de vitórias,
Com suas asas – pavilhão de glórias –
Inundadas da luz que o Sol espalha:
Ter o fundo do mar por catacumba,
As orações do vento que retumba,
E as cambraias da espuma por mortalha.

Entanto, melancólica, tristonha,
Como um gigante mórbido que sonha,
Fitava, às vezes, o revolto oceano,
Com esse olhar nublado e delirante,
Com que saudava a César triunfante
O moribundo gladiador romano.

O comandante – urso do mar bondoso —
Disse um dia ao escravo rancoroso,
Ao carcereiro estúpido e inclemente:
“Leve-a ao convés.  Verá que esse desmaio
Basta para apagá-lo um brando raio
Do largo Sol no rúbido oriente.”

Subiu então a jaula ao tombadilho:
Do nato dia ao purpurino brilho
Salpicava de luz o céu nevado…
E a águia elevando a pálpebra dormente
Abriu as asas ao clarão nascente
Como as hastes de leque iluminado.

O mar gemia, lôbrego e espumante,
Açoitando o navio; — além – distante,
Nas vaporosas bordas do horizonte,
As matutinas névoas que ondulavam,
Em suas várias curvas figuravam
Os largos flancos triunfais de um monte.

“Abre-lhe a porta da prisão,” ( ridente
O comandante disse ) “Esta corrente
Para conter-lhe o vôo é mais que forte!
Voar!  pobre infeliz!  causa piedade!
Dê-lhe um momento de ar e liberdade!
Único meio de a salvar da morte.”

Quando a porta se abriu, — como uma tromba,
Como o invencível furacão que arromba
Da tempestade as negras barricadas,
A águia lançou por terra o escravo pasmo,
E desprendendo um grito de sarcasmo,
Moveu as longas asas espalmadas.

Pairou sobre o navio — imensa e bela –
Como uma branca, uma isolada vela
A demandar um livre e novo mundo;
Crescia o Sol nas nuvens refulgentes,
E como um turbilhão de águias frementes,
Zunia o vento na amplidão,  – profundo.

Ela lutou, ansiosa!  Atra agonia
Sufocava-a.  O escravo lhe estendia
Os miseráveis e covardes braços;
Nu o oceano ao longe cintilava
E a rainha do ar, em vão, buscava
Onde pousar os grandes membros lassos. 

Sobre o barco pairou ainda, — e alçando,
Alçando mais os vôos,  e afogando
Na luz do Sol a fronte alvinitente,
Ébria de espaço, ébria de liberdade,
Como um astro que cai da imensidade,
Afundou-se nas ondas de repente.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Numa estação de província

J.T.Parreira

Tentava recordar o rosto
que vinha, fechado na composição
nas palavras a dizer,


os olhos que deixara
a crescer noutra cidade, talvez
do outro lado do mar,

o coração,
bateria o coração do mesmo modo
que outrora?

Tentava recordar o que a saudade
deixara crescer no peito
Seria o mesmo, seria outro?

Tentava antecipar o que diria
com o olhar
exausto de descrever a paisagem

e com a voz,
posta em silêncio
do cansaço distante da viagem.

10/3/2012
 
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