quinta-feira, 31 de maio de 2018

POESIA E ARTES PLÁSTICAS NO INSTITUTO DE CRISTIANISMO CONTEMPORÂNEO. LISBOA

Sombras da memória: olhares sobre o Holocausto


/https://iccontemporaneo.wordpress.com/2018/05/30/sombras-da-memoria-olhares-sobre-o-holocausto/

"MARCHA"
Na marcha final para estes olhos escuros
Que se arrastavam como os pés, a morte.
Não é um caminho de fugitivos, nem houve tempo
Para subirem a casa do Senhor, são um rebanho
Uma fila de olhos sem regresso que caminha
Os corações devem ter-se derretido a cada passo
Mentindo desesperadamente
Sempre um novo horizonte. Não haverá
Ninguém para despejar a areia dos seus sapatos.
07/03/2018
© João Tomaz Parreira 


terça-feira, 22 de maio de 2018

AS PREGAS


“se eu tão-somente tocar na borda do seu manto, sararei”
Ev. Mateus 9:21

O meu manto tem muitas pregas
uma para deter o teu sangue,
que na torrente com que jorra
lava de ti gota a gota as cores
e os músculos do coração
outra guarda as lágrimas
que a dor, ao castigar
a tua persistente negação
sem uma vara a que se amparar,
te deixou como tristíssimo refrigério
há uma outra para dilatar o som
dos teus clamores e fazê-los voar
por sobre os montes, em busca
do socorro, até quem a ele será sensível,
até quem a ele atenderá
assim nos céus como na terra
há uma prega no meu manto
que é uma tenda para dormires
os teus Invernos, ela é o calor
da casa, o lume fluido
dos serões em festa na família,
enquanto o frio vai caindo lá fora
se me tocares nesta prega
limparás a vergonha, não mais poderão
continuar a dizer que és aquela
impura que corre sangue
e que tudo mancha à passagem do teu manto
Rui Miguel Duarte
29/04/18

Sobre Poesia, texto de Vinícius de Moraes


SOBRE POESIA

Não têm sido poucas as tentativas de definir o que é poesia. Desde Platão e Aristóteles até os semânticos e concretistas modernos, insistem filósofos, críticos e mesmo os próprios poetas em dar uma definição da arte de se exprimir em versos, velha como a humanidade. Eu mesmo, em artigos e críticas que já vão longe, não me pude furtar à vaidade de fazer os meus mots de finesse em causa própria - coisa que hoje me parece senão irresponsável, pelo menos bastante literária. 

Um operário parte de um monte de tijolos sem significação especial senão serem tijolos para - sob a orientação de um construtor que por sua vez segue os cálculos de um engenheiro obediente ao projeto de um arquiteto - levantar uma casa. Um monte de tijolos é um monte de tijolos. Não existe nele beleza específica. Mas uma casa pode ser bela, se o projeto de um bom arquiteto tiver a estruturá-lo os cálculos de um bom engenheiro e a vigilância de um bom construtor no sentido do bom acabamento, por um bom operário, do trabalho em execução. 

Troquem-se tijolos por palavras, ponha-se o poeta, subjetivamente, na quádrupla função de arquiteto, engenheiro, construtor e operário, e aí tendes o que é poesia. A comparação pode parecer orgulhosa, do ponto de vista do poeta, mas, muito pelo contrário, ela me parece colocar a poesia em sua real posição diante das outras artes: a de verdadeira humildade. O material do poeta é a vida, e só a vida, com tudo o que ela tem de sórdido e sublime. Seu instrumento é a palavra. Sua função é a de ser expressão verbal rítmica ao mundo informe de sensações, sentimentos e pressentimentos dos outros com relação a tudo o que existe ou é passível de existência no mundo mágico da imaginação. Seu único dever é fazê-lo da maneira mais bela, simples e comunicativa possível, do contrário ele não será nunca um bom poeta, mas um mero lucubrador de versos. 

O material do poeta é a vida, dissemos. Por isso me parece que a poesia é a mais humilde das artes. E, como tal, a mais heróica, pois essa circunstância determina que o poeta constitua a lenha preferida para a lareira do alheio, embora o que se mostre de saída às visitas seja o quadro em cima dela, ou a escultura no saguão, ou o último long-playing em alta- fidelidade, ou a própria casa se ela for obra de um arquiteto de nome. E eu vos direi o porquê dessa atitude, de vez que não há nisso nenhum mistério, nem qualquer demérito para a poesia. É que a vida é para todos um fato cotidiano. Ela o é pela dinâmica mesma de suas contradições, pelo equilíbrio mesmo de seus pólos contrários. O homem não poderia viver sob o sentimento permanente dessas contradições e desses contrários, que procura constantemente esquecer para poder mover a máquina do mundo, da qual é o único criador e obreiro, e para não perder a sua razão de ser dentro de uma natureza em que constitui ao mesmo tempo a nota mais bela e mais desarmônica. Ou melhor: para não perder a razão tout court. 

Mas para o poeta a vida é eterna. Ele vive no vórtice dessas contradições, no eixo desses contrários. Não viva ele assim, e transformar-se á certamente, dentro de um mundo em carne viva, num jardinista, num floricultor de espécimes que, por mais belos sejam, pertencem antes a estufas que ao homem que vive nas ruas e nas casas. Isto é: pelo menos para mim. E não é outra a razão pela qual a poesia tem dado à história, dentro do quadro das artes, o maior, de longe o maior número de santos e de mártires. Pois, individualmente, o poeta é, ai dele, um ser em constante busca de absoluto e, socialmente, um permanente revoltado. Daí não haver por que estranhar o fato de ser a poesia, para efeitos domésticos, a filha pobre na família das artes, e um elemento de perturbação da ordem dentro da sociedade tal como está constituída. 

Diz-se que o poeta é um criador, ou melhor, um estruturador de línguas e, sendo assim, de civilizações. Homero, Virgílio, Dante, Chaucer, Shakespeare, Camões, os poetas anônimos do Cantar de Mío Cid vivem à base dessas afirmações. Pode ser. Mas para o burguês comum a poesia não é coisa que se possa trocar usualmente por dinheiro, pendurar na parede como um quadro, colocar num jardim como uma escultura, pôr num toca-discos como uma sinfonia, transportar para a tela como um conto, uma novela ou um romance, nem encenar, como um roteiro cinematográfico, um balé ou uma peça de teatro. Modigliani - que se fosse vivo seria multimilionário como Picasso - podia, na época em que morria de fome, trocar uma tela por um prato de comida: muitos artistas plásticos o fizeram antes e depois dele. Mas eu acho difícil que um poeta possa jamais conseguir o seu filé em troca de um soneto ou uma balada. Por isso me parece que a maior beleza dessa arte modesta e heróica seja a sua aparente inutilidade. Isso dá ao verdadeiro poeta forças para jamais se comprometer com os donos da vida. Seu único patrão é a própria vida: a vida dos homens em sua longa luta contra a natureza e contra si mesmos para se realizarem em amor e tranquilidade.


segunda-feira, 21 de maio de 2018

DESAFIO


“Vejo-Te ainda incerto e vago

como um desenho sumido”
Sebastião da Gama

Ver Deus pelas costas é o mais que se pode
aspirar. Moisés fê-lo na fenda da rocha,
como refúgio enquanto Deus passava.
Ventos fortes a soprar nas traves mestras da terra,
sustidos pela côncava mão de Deus,
um fogo obediente à voz mansa sossegada,
raio nenhum a fender a madeira até
à raiz, profundo coração das árvores.
Passou enfim o esplendor da divindade
nos dedos de Moisés, quando na pedra
esculpiu a voz de Deus.

20/5/2018
© João Tomaz Parreira

terça-feira, 15 de maio de 2018

Sfronch, um conto de Sammis Reachers


Sfronch

O Renault Oroch ou o Troller T4 ficou com um arranhão no para-choque, um traço ínfimo que não carecia de todos aqueles palavrões. Assombroso foi o sinistro som da freada ou freadas ou impacto, um 'sfronch' altissonante e escalafobético, coisa de desenho animado, berro de Pokemon lendário.
– Veja aí então qual é a Lei que incrimina quem desrespeita a faixa preferencial, seu asno! – gritou um dos errados, eu já não sabia de qual dos veículos.
Antes que o outro errado redarguisse do pico de sua pompa e contumácia, o errado acima explodiu de contundente:
- Veja também qual é a Lei que impede as balas quando elas voam na reta da tua cara, meritíssimo – e disparou, matando ali no quente o Juiz de Segundo Grau também dito Desembargador, defunto cheio de méritos e um broche do Rotary, horizontalizados com ele no asfalto um pouco gasto naquele trecho da rodovia.

Mas o assassinato do magistocrata, a despudorada ofensa à Lei e a uma classe sua superior, esses deuses de porcelanato (pois um príncipe não atiraria contr’outro príncipe, carioca ou brâmane) - a busca da Lei-montanha-platônica ao seu ofensor-Maomé-empírico, os secos estampidos da arma monologal, nada disso rememoro. 

É o barulho daquela colisão ou freada ou freadas conurbadas, festin’lésbicas, o estranho ‘sfronch’ o que me assoma ao entendimento - sempre que vejo um carro de polícia ou de bombeiros, ou uma placa qualquer de veículo oficial, da Câmara Municipal, universidade federal ou do Hospital dos Inválidos que seja; até mesmo quando o tédio me surpreende ou repreende na fila de alguma repartição pública. Um som sinistro que sei irreplicável, arroto do caos unívoco na sonata celeste, flatulência como que alienígena.
E mais. Nas duas horas diárias que perco ou duro a chegar do município de Maricá ao centro do Rio de Janeiro, e vice versa, proletário insone esforçado em conciliar o sono, acostumei-me a imaginar ovelhas saltitando, ovelhas de documentário e desenho animado pois nunca vi uma ovelha. Mas, do incidente para cá, já não alcanço contá-las: as ovelhas são agora tenras quimeras, com patas de asno, troncos de ovelha, orelhas miúdas de ariranha, peludas caudas de homem e rostos ainda mais burgueses do que o que eu sonho ter em meus melhores sonhos. E é sempre ‘sfronch’ o som de seus balidos.

Sammis Reachers

domingo, 6 de maio de 2018

A CASA DE MARTA E MARIA EM BETÂNIA


Ele ia algumas vezes tomar refeições, Ele entrava

No meio de olhos alegres e vozes

Agradecidas pela sua visita, na casa as tarefas

Logo se definiam, Maria punha o coração

Nos seus ouvidos, não sabemos se ouvia poesia

As palavras vinham vivas, a irmã Marta sabia

Que uma anfitriã tem de ter sempre

A mesa posta, embora bastasse um copo de água

Fresca, tudo se fazia para o Hóspede

Se sentir como em sua casa, o céu

E a terra juntos em Betânia

Quando Ele as visitava.



17/01/2018
© João Tomaz Parreira

sábado, 5 de maio de 2018

No Zoológico, poema de Israel Zangwill



No Zoológico

O céu está cinza de chuva que não virá,
Das sendas argiláceas vem fluindo espectral neblina.
Exsudante de imemorial tristeza,
A terra cinza solapa a coragem para a existência.

Pobres seres de trópicos, fechados em
Terras do Norte,
Também eu desejo o sol e não sou livre.
Meu coração está com vocês, e eu compreendo
O leão batendo-se em sua cova viva.

In Quatro Mil Anos de Poesia (Org. de J. Guinsburg, Perspectiva, 1969).

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