sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

01/01/2023: O Atentado do Vírus 'Desfiltrador'

 


Eugene Kaspersky, pai do antivírus homônimo e tido ou havido como especialista maior do mundo das seguranças e salvaguardas do universo virtual, asseverou que o vírus partiu de uma cidadezinha chinesa, isolada em pó e fama nas franjas do deserto de Gobi, onde o governo chino, aquele dos olhos cada vez maiores, mantém uma de suas bases hacker.

O Times, não o de Londres, o New York, publicou relato de seu maior jornalista, dois Pulitzers naquele lombo branco e fora de moda, dando notícia de que tal descalabro cibernético partiu de uma IA (inteligência artificial) criada nos laboratórios da NSA (National Security Agency, uma das quatrocentas e doze agências de espionagem norte-americanas, ou quatrocentas e treze, a contar com a ABIN), IA que tomou “vida própria” e praticou ações “em benefício da humana espécie”, antes de ser silenciada dos mainframes. A NSA, claro, nega o fato, como nega qualquer fato.

E eis o fato: No dia 01 de janeiro de 2023 um vírus blended threats (tipo de vírus que é na verdade um coquetel de diversos códigos maliciosos, que operam em conjunto), vindo sabe-se lá de onde, aplicou o maior golpe ou ataque virtual já efetivado na história da internet. Milhões de pessoas tiveram quase 8,4 bilhão de fotos instantaneamente “desfiltradas”. Sim, ridiculice das impraticabilidades, ciber-porralouquice: Fotos publicitárias de repente perderam seu glamour falseabundo, instaladas já nos próprios anúncios virtuais veiculados por suas agências; anúncios culinários foram dos mais prejudicados, e a lambada de vara de cilício/silício (você escolhe, afinal o lombo também é seu) não poupou do universal McDonalds à nossa Giraffa’s, magoando ainda, numa igualação de classes jamais sonhada por Marx ou Bakunin, os altos mestres da culinária: No mesmo dia 01, apenas quatro horas depois da deflagração do vírus, nada menos que seis altos cozinheiros listados no topo do Guia Michelin suicidaram-se. E duro golpe se abateu, igualmente, sobre o comércio de corpos humanos, o virtual e agora globalizado meretrício: Milhares de books fotográficos (ou menus) foram literalmente deflorados de suas fantasias photoshopadas.

Uma impossibilidade completa e ilógica, mas aconteceu.

A desgraça, aí iniciada, seguiu penetrando os motéis e chats de que é feita a micro história: Namoros virtuais, dos rascunhados aos já prestes (aqueles já com passagens compradas, pois janeiro é período de férias!) foram repentinamente suspensos pela sub-reptícia revelação da face verdadeira de muchachos, muchachas e sambarilovis que valiam-se de filtros, às vezes em sua carga máxima, para diluir rugas, dinamitar estrias, clarear dentes, encobrir olheiras, harmonizar enfim a despojada/renegada naturalidade de suas faces e corpitchos.

Grandes artistas viram o pedestal ruir de sob seus pés de pégaso ou gazela; fotógrafos afamados foram lançados de volta ao lugar-comum do populacho Iphonizado.

O Instagram, criação espetaculosa do brasileiro Mike Krieger e seu sócio Kevin Systrom, hoje em posse do decadente Mark Zuckerberg, o repetidor de caras e camisas, lançou as ações da META num nimbo mais profundo que a Deep Web, ao perder num único dia setenta milhões de usuários.

PCs, laptops, aparelhos móveis: o vírus, que já está sendo chamado de RSW (Reality Shock Wave, ou onda de choque de realidade), tomou e manietou aparelhos até daqueles que jamais utilizaram um programa de fotos ou tratamento de imagens. Soturno aguarda, fênix de código binário, com seus cacetetes e espadas verdadificadores afiados, pronto para desmascarar a primeira tentativa de falseio.

E pensar que o vírus, dormente há meses segundo o velho Kaspersky, foi acionado por um gatilho singelo, que seu cruel programador havia preparado: Quando da utilização dos filtros por mais de quinhentos milhões de usuários ao mesmo tempo. Culpa dos festejos de Reveillon.

Moral da notícia, fictícia como um filtro Clarendon (aquele primeiro, o mais bonito) do Instagram: Viva mais, fotografe menos. E se for filtrar, filtre a água e as amizades, pois os tempos são liquidamente maus, photoshopadamente #fúteis.

 Sammis Reachers


quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

METAMÁXIMAS - Uma reunião das melhores citações sobre... Citações, aforismos e máximas

 


Máxima. Sintetização de um pensamento na melhor das formas, forma que ocupe o mínimo espaço. Poderíamos assim, tacanhamente, definir o termo que é tema desta antologia.

Reunimos aqui uma inusitada seleção de definições – ou máximas – sobre elas próprias, as máximas. E vá lá: Aforismos, sentenças, provérbios, ditos e ditados, primos quaisquer dessa grande família das Citações, aqui se auto enquadram – pois você não acha justo que os carregadores de piano possam, dia qualquer, sentar-se na banqueta e arriscar uma sonata?

Academicamente, uma literatura que fale de si própria é sempre metaliteratura, daí o hibridismo de nosso título superlativo, Metamáximas.

Que este breve compilado alimente a fruição daqueles que, assim como eu, são amantes das citações.

O e-book está disponível na Amazon (AQUI) e na Google Play (AQUI).



sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Carne e alma preta na cidade: a poesia de Pedro Marcos Pereira Lima

 


O poeta paulistano Pedro Marcos Pereira Lima é graduado em Letras, e autor dos livros Casas com Asas, No Tempo da Poesia e Palavras Crianças no Jardim de Aula.

Em sua nova obra, Pisando na Grama, o autor reúne novos e antigos poemas de sua lavra pulsante.

Marcos é carne e alma preta na cidade, irmanando-se nas dores, palavra comprometida com a dor e a vida.

Fiel a seu ofício, o autor arranca versos da insipidez da pedra, do cinzento da cidade e suas nuances, do corriqueiro que navega o dia a dia. Melhor, versos empresta, atento ao que vai sob a superfície.

E, metaliteralizando ela, a sexta arte, obtém palavra pura, poesia em ares, libertação das cadeias.

Publicado pela Desconcertos Editora, o livro pode ser adquirido AQUI.

 

Com vocês, alguns versos de Pedro Marcos Pereira Lima.


NEGRURA

                  Ao Edson Cruz,

            pelo livro Negrura

 

negrura é

agrura né?

 

palavra aguda

na grade gruda

 

por um fio

de fio em fio

 

a tessitura

da escritura

 

vai sendo escrita

na voz que grita

 

livro encarnado

de negro retrato

 

na cor das cores

a face das dores

 

o corte da cor

na coroa da corte

 

saltando da fala

da negra senzala

 

voz expandida

além da língua

 

esboça a pintura

com toda tintura

 

da dura negrura

 

 

PERGUNTA

 

por que a cor do humano

é desacordo

para a convivência?

 

 

ARQUEOLOGIA

 

do fundo de um poço

desenterro um osso

esquecido há milênios —

puxando o soneto:

 

encontro um esqueleto

roído de devaneios

o pescoço envolto

num colar, por amuleto

 

da pirâmide geométrica

dos grandes grãos de pedra

o sol espraia sombras

 

de retintos faraós

que desde sempre tombam

extintos da memória

 

 *

 

esses

que levaram

nas costas

as pedras

degraus acima —

eram deuses?...

astronautas?...

 

escravos

eram esses

 

 

LAR

 

nesse tempo cotidiano

da cidade habitada

de abandono

 

o acolhimento

encontre um espaço

nesse cimento

 

na criança ou velho

de toda idade

pelos becos da cidade

 

onde pouse

um lugar de luz

resplandeça

 

acordem os sonâmbulos

a fé ouse

o amor apareça

 

 

DIÁLOGO MONÓLOGO

 

ruídos do silêncio

falam mais do que penso —

a mudez dispenso

 

palavras amam-se

mas cuidado —

palavras tramam

 

o que é essência

pode ser excrescência

esse som enviesado

 

***

 

mas, nenhum conflito:

a barriga da alma

abriga

o corpo do espírito



SONANTE

 

deixo que os sons

me apurem os ouvidos –

 cantos de galos

e bem-te-vis em acordes

 

que os sonhos

que te mordem

te acordem

 

aqui e ali arrumo

os enganos

nos quais tropeço

e meço os danos

 

alguém me dizia:

fantasia é ilusão

utopia é esperança

 

com razão:

a poesia

é uma

criança de rua

 

e dela fisgo a inspiração

e recolho

seus sonhos mendigos

 

e trago

para que escutem

suas vozes

em risos ruidosas


sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Na morte em que fui Manoel Bandeira, poema de Sammis Reachers

 


Na morte em que fui Manoel Bandeira

 

Brincando de cabra-cega

Nas ruas de Tróia

Expus meu coração à intempérie:

 

Sakura solar, nênia de plástico,

Lótus anárquica

Encontrei-a e a perdi

Num (p)único mês

 

Que outro (re)curso contra aquele lábio,

Aquele olhar eluardiano?

 

Meu pétreo ódio pela poesia

Essa maldição dos tísicos

Ei-lo no pódio-coração litografado:

Tatuagem interna, Tebas de Anfíon,

Chuva de flechas, Heitor despedaçado.

 

Publicado originalmente na Revista Cujo #1.


sábado, 29 de outubro de 2022

Sobre a Derme de Agora - A poesia de Bernard Coutinho


Se aprochegue. Seja bem-vindo a uma poesia feita de mínimos, feita do que a poesia é feita: do imponderável que habita no instante, no detalhe. Desse imponderável arquitetural que erige a vida. De tal verve suave é a escrita de Bernard Coutinho, neste Sobre a Derme de Agora.

Poeta, músico, professor, Bernard coleciona insights e constrói, em seus versos, temporalidades próprias, luminosas. Em sua dança, leminskiana, gullariana, marginal, o poeta avança para além do alumbramento e não se furta ao cruel do dia a dia, à dor e a miséria que desconstroem o que é humano. Atento, desnuda a injustiça e irmana-se aos que sofrem seu peso.

O livro pode ser adquirido no site da Editora Haikai, AQUI.

Confira alguns poemas do livro:


Imperativos

 

Fale menos

Falhe baixo

 

sobre nada

em somatória

 

Vá direto

sem ter direito

 

Vá direito

em coisa errada

 

Faça ao vivo

Não grave nunca

 

Nunca é começo

da morte lenta

 

Vida arrebenta

cordas à faca

 

Acorde o corpo

é madrugada

 

Fermente o pico

do tempo vago

 

Dê argumento

ao vagabundo

 

De peito aberto

fechando tudo

 

tudificando

a palhaçada

 

tudificando

o picadeiro

 

sacaneando

o trapezista

 

alforriando

todo artista

 

dando calote

em pipoqueiro

 

oferecendo

ao trapezista

outra forma geométrica

de enxergar a vida

uma nova acrobacia

pra chamar de sua

uma nova lona

uma nova lua

 

Que o céu se arrebente

ao vê-lo de cima

 

Que o seu ponto de vista

seja o mundo inteiro



Inominável

 

na minha cabeça

habita um ruído

remédios, passes, porres

nada disso faz passar

não é dor,

é ruído

uma dor sem corpo

no corpo da gente

 

  

Dizeres

 

Há quem diga que dizer é coisa de desocupado

por isso, escrevo

 

Nem digo que o faço para não ter de me

desocupar à toa.

 

 

Tez

 

   Tentei

 tentar de

 tudo mas

toda vez que

           tento

                 tonto fico

 

Tratei de

    ter paz

trazendo comigo o

   tempo que vivia

              tentando

 

tanto faz se

    tanto fiz

 

                       Tentei

 

 

 

Renque

 

A cada par de passos dessa gente, nessa rua, os olhos da minha pele enxergam grupelhos em busca de dezenas de fins.

Os da direita gozam de direitos, mas no meio do bolo há um ou dois cumprindo ordens. Eles não sentem fome, mas vontade de comer. Fome é ofensa, quase metafísica. Querem comer vinte pãezinhos quentes e no ponto (nem muito moreno nem muito molinho). Eles querem, eles comem.

Os que cumprem ordens têm a missão de comer com os olhos, e bem rápido, porque Casa Grande não pode esperar.

Os da esquerda nem o cheiro sentem. Não é nojo, desfeita nem anosmia. É fome mesmo e não vontade de comer. Os daqui não fazem fila, preferem desfilar a ausência. Não têm pão, não há paz.

A paisagem escraviza a visão destes. Não podem fechar as cortinas, porque janela não há. Há paredes para uma janela ser parida, mas isso é coisa de poeta... 

No real (e na real), aquela estrutura não presta. Apertando os olhos com os passos, não pude deixar de reparar na fila da frente. Os que saem da padaria costumam engrossá-la. Vão ao 24h para garantir o riso do dia. Com senha e cartão, o coração se enche de graça, mas tudo é pago.

Os da esquerda sabem disso

Os da esquerda querem isso?

Eu, não.

Daria minha carne para ver aqueles desfilados

famintos de fome

Daria minha carne para vê-los fartos, comidos,

enfileirados

Trocaria pão por poesia

sem atravessá-los, sem trocá-los de lado.






domingo, 16 de outubro de 2022

A exposição dos sóis: A poesia de Julia Lemos



Em seu mais recente livro, a autora Julia Lemos convida o leitor a um café na aconchegante, atlântica e fluvial Recife, a de concreto e a de sentimento. Ainda mesmerizados pela noite e a cidade, arrojados somos numa ponte aérea (etérea?), e aportamos (poisamos?) em Portugal, lugar da morna solidão da poeta e das paisagens azuis e ancestrais. A seguir, transcendentes na transcendência, somos lançados de encontro ao Luminoso, numa sequência de poemas sacros, feridos de sequiosa suavidade. Ao fim, a poeta, fiel ao seu ofício, transcorre o elogio daqueles poetas outros que lhe inundaram o peito. 

Destes compartimentos é feito A exposição dos sóis (Penalux, 2017), magnífica obra em que o amor, flor de todas as estações, percorre seu périplo em versos intimistas, de maturidade e langor, e a poesia, lugar central dos criados à imagem do Verbo, recebe sua celebração.

Para aqueles que desejam adquirir o livro, podem entrar em contato com autora através de seu perfil de Facebook (AQUI).

Abaixo, selecionamos alguns poemas do livro.


MANGA DOCE ROSA

 

Cidade soturna, silenciosa

mas se você quiser há barris de tangerinas

folharais de acerolas ingás de veludo,

jambos vestidos do cetim mais rubro.

Ainda outros tricotados em feltro rosa - claro.

 

O sol viajando desde Singapura

projeta-se ardente

sobre lama e musgo.

 

Semimadames pouco vestidas

acima e abaixo da cintura

serpenteiam sobre

calçadas bordadas de miçangas.

 

De um guapo suco de manga

ouço os pregões como as únicas vozes

líricas possíveis;

 

Nas ruas bonitas da cidade

a vida parece abstrata, enferma e longa.

No centro velho do Recife, desde há séculos

a alegria torna a vida tão intensa quanto curta.

 

 

O OFÍCIO

 

Escrevo pelos que estando à frente da batalha

tiveram medo.

 

Carrego comigo a voz daqueles que se

viram impedidos.

 

Escrevo afinal pelos distraídos,

os ausentes, os perdidos.

 

Acredito que um poema se faça necessário

naquela tarde em que as certezas se esvaem todas

e pelas rimas pode-se ver a história por outro prisma.

 

Ordinariamente escrevo com alegria,

minhas palavras não murcham como as flores

diante da tristeza.

 

Escrevo sobrepondo outra página

num desfecho que parecia irreversível.



COMO O PROFETA

 

Fez-se tarde.

e provida estou

do ouro desse dia.

 

Há prata,

que a noite

pulverizou por toda a casa.

 

Espero as visões

que virão me despertar

nesta madrugada,

quando Deus começar

a falar comigo.

 

Nessa hora,

as ataduras da servidão serão desfeitas

e cavalgarei sobre os altos da terra

quando Ele começar a falar comigo.



PALAVRA

Amigos me perguntam

o que é ser poeta.

 

Digo que é fazer

a reportagem do mistério,

 

romper o silêncio

além da exterioridade do dia

 

- que passa, 

requerendo da pedra

a palavra.

 


Danço 

na chuva 

de bambolê

e sapatilhas de vidro.




sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Janaína ganha o mundo - Um conto sobre o tráfico humano

 


Era estudante do quarto período de Direito na Faculdade Universo, no auspicioso bairro de Trindade, na fluminense São Gonçalo. Da faculdade ia para casa a pé: Herdara de uma tia solteirona um apartamento no condomínio Alcântara II, a uns dois quilômetros do campus. As mensalidades eram pagas, com aperto, por seu trabalho como vendedora numa loja da perfumaria O Boticário, num grande shopping gonçalense.

Alegre, vaidosa, decidida. Assim os amigos definiam Janaína, cuja frase de status no Whatsapp era quase afrontosa (ou de um empoderamento rude, alguém diria torpe): “Mulher bonita pode fazer o que quiser”.

Há muito Janaína tomara aquela máxima para si, para a vida. A ouvira ainda na adolescência. Indo com uma amiga para uma matinê no saudoso Clube Tamoio, em São Gonçalo, e querendo economizar os poucos dinheirinhos, já a bordo do busão perguntou ao cobrador, – Colega, a gente pode passar juntas? – Queriam passar juntas na roleta ou catraca, pagando uma única passagem.

– Claro, meu anjo. Mulher bonita pode fazer o que quiser.

 

*   *   *

 

Ela o conhecera por indicação de outra aluna da faculdade de Direito. Era um argentino de seus quarenta anos, esbelto, trajando sempre o rigor das últimas tendências; possuía uma farta cabeleira agrisalhada, que ele conservava presa num elegante rabo-de-cavalo.

Ela quase se apaixonou, e olha que nem era disso, pois de paixão costumava ser ela o objeto, e isso lhe bastava – e até pagava algumas contas. Mas o argentino deixou nas entrelinhas que aquela relação era apenas profissional. Ele já trabalhara na Costa Rica, México e Colômbia, e agora estava no Brasil. Era um tipo de caça-talentos, a serviço de uma grande marca da moda e perfumaria europeia. Fundada em 1913 em Milão, na Itália, por Mario Prada, a marca Prada era sinônimo incontornável de glamour – e grana, claro. A marca buscava ampliar sua presença global, notadamente no ramo de perfumes. O argentino tinha a função de encontrar e selecionar mulheres dentro do perfil delimitado pela marca, enviando-as então para a Itália, onde trabalhariam por nove meses numa das lojas da empresa, especializada em cosméticos, num regime de estágio/curso remunerado.

Uma baita mudança de vida, ares e rotina, que era compensada à farta pelo salário: Quatro mil dólares mensais, mais alojamento. E ainda aulas de inglês e italiano no pacote, que incluía oferta de emprego numa das futuras lojas da divisão de perfumaria da marca, no Brasil.

 

*   *   *

 

Trancou a faculdade. Nas redes sociais celebrou sua conquista, postando fotos de seu passaporte, e até fotos da cidade de Milão, seu em breve destino, fotos que ‘roubartilhara’ da internet. As amigas ficaram em polvorosa, e os parabéns venenosos, transidos na inveja, choviam sobre Janaína, que os sorvia com prazer. “Haha! Elas que lutem!”

Com o dinheiro da rescisão de seu contrato de trabalho na Boticário, Janaína ajudou a mãe, dona Josefa, castigada nordestina do município de Nossa Senhora das Dores, em Sergipe, a ampliar sua casinha. Desde seus primeiros anos no Rio a moça convidava, instava, implorava até, à septuagenária e solitária mãe para vir morar com ela, mas dona Josefa sempre desconversava, dizia que estava bem na terrinha, que não se adaptaria.

 

*   *   *

 

A gritaria fez alguns clientes saírem de seus quartos, enquanto os seguranças rapidamente se lançaram escadaria acima.

A menina, que instintivamente correra para as estreitas escadas, brecou e fez meia-volta, ao ver os dois brucutus que subiam por elas. A construção, bastante antiga, “tinha quase quinhentos anos”, segundo lhe dissera um dia uma das moças, e um problema com a mesma idade: Era pelas escadas a única saída.

No meio do pandemônio, um dos clientes fez menção de agarrá-la, mas recuou ao ver seu rosto, ensanguentado, e o instrumento em suas mãos, uma tesoura – igualmente ensanguentada.

Enquanto recuava, ela passou pela sucessão de portas, cada uma das quais lhe trazia à memória um trauma, uma perversidade.

Ao fim do corredor, estacou. Voltou-se, apenas para divisar que os brutamontes estavam agora na metade do grande corredor, um deles com o taser nas mãos – taser seu velho conhecido. Ela já desmaiara duas vezes ao toque daquele instrumento de choque.

A moça observou a grande janela que dava para a fachada frontal do edifício, mantida propositalmente encardida. Conseguiu divisar, entre o baço da fuligem, a cidade lá fora, cujas luzes noturnas eram apoiadas pelo brilho lunar, naquele agosto quente, em pleno verão europeu. Era Amalfi, pequena e redundantemente bela cidade costeira italiana, propriedade da máfia "Ndrangheta. Assim como ela.

A jovem sabia três andares até o chão, carros e alguns arbustos lá embaixo. Como uma cotia que defronta uma onça-pintada, ela podia ouvir, literalmente, o tic-tac do inferno em aceleração, murmurando em seus ouvidos. Precisava tomar sua decisão: Fugir ou lutar. Apertou com força a tesoura nas mãos – a mesma com que perfurara há pouco o peito do cliente, aquele que todas as sextas-feiras vinha para a casa, vinha para torturá-la, penetrá-la com objetos, humilhá-la.

Hoje ele queria usar um crucifixo. Foi o limite para aquela corroída alma sertaneja. Ela nunca tivera lá tempo para aquele Deus – estava ocupada, vivendo sua vida, boletos, correria, curtindo – que não era de ferro. Mas sabia que aquilo era demais, demais para ela e para o próprio novo-velho mundo que ela descobrira ao descer daquele avião na cidade errada, mundo onde o mal se despia de suas milhares de máscaras e firulas e se apresentava nu, impudico, soberano-sem-intermediários sobre tudo o que é seu. E, ela compreendera com a própria carne, em alguns lugares ele era senhor de praticamente tudo.

Tomou distância da janela, apenas para retornar em sua direção. Lançou-se, explodindo seu desespero de encontro às vidraças, escapando das mãos dos sequazes da "Ndrangheta, que já estavam como que sobre ela. Imaginou cair em pé, quebraria as pernas?, pediria ajuda.

Bateu com as costas sobre um Alfa-Romeo Giulia – luxuosa propriedade de um dos clientes, que jamais teria coragem de cobrar o prejuízo à máfia calabresa, tida como a mais silente, sanguinária e poderosa do mundo.

 Morreu na hora.

 

*   *   *

 

1,76m, 62kg, 64cm de cintura, 96 de quadril, 102 de busto. Jovem deusa de jambo e ocitocina do Brasil miscigenado de amores e estupros, filha de Josefa Fortunata Ramalho, de pai desconhecido – assim como seu destino, sem funeral, de cadáver dissolvido num tonel de ácido pela máfia.

Gonçalense adotiva, guerreira, sonhadora, deslumbrada e cooptada pela máfia do tráfico humano, nem primeira nem última, lágrimas num casebre em Nossa Senhora das Dores, número numa estatística. 


Sammis Reachers

 

domingo, 2 de outubro de 2022

DIA DE ELEIÇÃO, crônica de Sammis Reachers

 


Dia de eleição é dia de catarse. De expor amigamentos e odianças por esses que o jogo político arregimenta, esses que, por pudor nos negamos a dizer, mas no fundo – sejamos nós letrados ou humildeletras, enricados e pés-de-pano – sabemos que são os piores de nós...

Dia de eleição é dia de desnudamentos, de sangria dos ânimos, de expor os radicais e seus monóculos, sua tobas de ver o mundo por um só viés. Esses de direita e esquerda, em seus extremos tão perigosos – mas não haveria jogo sem eles, afinal, os fominhas da bola.

Dia de eleição é dia de melancolia, e isso nenhum poeta, dos seis mil que conheço ou ao menos tolero, já aventou: Dia máximo de melancolia, ao revisitar velhos caminhos e seções, ao rever rostos de anos, infância até, estudos juntos, trampos, sopapos e beijos trocados.

Dia de eleição é dia de cidadania, essa obviedade central & inescapável, frenética em seus entra-e-sais quase copulosos, pois desse seu coito na urna, hoje botãonizada, nasce o rebento que nos resguarda, a democracia – mais que este ou aqueloutro ator canastrão que ocupar o cargo que lhe confiarmos.

Dia de eleição é dia de suspense, riso e lágrima, apuração de samba e final de copa, suspiros ou expiros de sonhos, projetos, construtos de luz ou maquiavélicas maquinações. E acerto de conta$, que o correligionário também come, afinal.

Dia de eleição é dia de socializar – e orar, debater, biritar, conforme a cultura da aldeia: Preocupações ou despreocupações se carnavalizam, entrechocam e abraçam – o outro feito nós na sujeição ao sistema que nos comporta, renovação de ciclo, refundação tumultuosa de nosso pequeno grande mundo citadino.

 Sammis Reachers

https://linktr.ee/sreachers


segunda-feira, 19 de setembro de 2022

A poesia de Daniel Glaydson Ribeiro

 


B@rroc@ e Rokokó, poesia de mínimos e de plenos, transbordamento do areal e mar que são as palavras. Revoltado alumbramento. Assim a poesia de Daniel Glaydson Ribeiro se apresenta, em seu livro Pulsão de Língua (Mirada, 2021). Dispostos em compartimentos, capítulos ou cápsulas de independência lírica, rítmica e temática, seus poemas se desdobram sobre o próprio chão: a linguagem, e dos saltos metalinguísticos e transliterários avançam até o chão do dia, com uma verve de engajamento e denúncia.

Aqui, para deleite dos leitores deste blog, alguns poemas e trechos do livro:


Epopeia do Cordel (trechos)

 

A sapiença do povo

tá no riso sem frescura,

na poesia das mata

sem sacra Literatura.

Vez por vez tem desavença,

mas no duelo tem quem vença:

viola na noite escura!

 

[...]

 

E agora com a internet

dos links multimodais,

toda ciranda que eu cante

roda o mundo em arraiais:

digo oxente e tô na Rússia,

traduzido lá na Prússia,

meu começo é sem finais!

 

Pois então lhe passo o verso

A ocê, minha formosura

Qual inté aqui chegou

Dichavando essa bravura!

Bravo é ler os camarada,

Entender nossa jornada

Em defesa da cultura.

 

 

 

REZA

 

No instante em que a lágrima

 lava minha vista para a palavra

do Teu Canto,

                                         tal qual a sentinela,

"minha alma anseia por Ti, pelo nascer do dia".

 

A natureza não tem moral

e sua água é(ra) límpida.

                                          Da terra e da pedra,

inda brota água pura.

 

Cala a ira dos impostores

que ousam proferir Teu Nome

com a boca e a língua pútridas

de genocídio.

 

Só muito depois compreendi

que esta ventania constante

já é Tua Voz,

                                          num simples sopro sempiterno.

 

 

 

ESQUIZOCAPITAL

 

Era uma vez minha terra

tinha palmeira e palmares

hoje tudo queima

e a Flor-

esta

cinza pelos ares:

 

cinza que cobre estrelas

fumaça enforca dores

ouro-lama afoga gente

num rio tóxico

Rio Doce

 

os quilombos e as aldeias

que diziam "demarcadas"

são o intermitente cenário

de guerra das bandeiradas

 

minha terra, nina

nem sei mais se é terra ou veneno

e tudo continua sendo

para o progresso

de São Paulo

 

 

 

COMO

 

...se ao poema coubesse ainda e apenas

Lê-lo, com humana voz sem excesso

no ritmo puro do tempo disperso

como se houvessem raças e antenas,

 

numa ausência de qualquer artifício,

como se eu detrás duma cortina,

sumisse, e esta língua que imagina

já não fosse a máquina do início.

 

Tal corno a luz do sol ou a da lua

as nuvens, os raios e tempestades

são sublime teatro-transcendência,

 

a Voz é meu corpo a dançar, eu nua;

línguas é ruído de todas as vontades,

o poema: barulho-excesso-essência.

 

 

 

V

 

Beijar a humanidade

mesmo desvirtuada

(Virtude, vento

que passa pleno

de sementes,

ex-cesso

que vigora)

 

com a esperança de um louco

se é que os loucos esperam

 

 

 

Haikai

 

o cheiro do tempo

um quintal frutificando

lentamente, dentro


Perfil do autor em Academia.Edu: https://ifpi.academia.edu/Daniel
Canal Linguagem e Poesia no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=p_KwQ3DPk7I 



sábado, 10 de setembro de 2022

Impressões de Julia Lemos sobre o livro Cartas e Retornos, de Sammis Reachers



 Julia Lemos

O mundo traduzido de forma enciclopédica e por um mar de signos, por causa dos neologismos, assim me pareceu ser este livro de Sammis Reachers, "Cartas e Retornos", que recebi como um presente enviado diretamente do Rio de Janeiro, onde este escritor, poeta, editor, antologista e professor de Geografia vive.

Os poemas se constroem como símiles de cartas, e no conjunto identificamos um diálogo com os que estão enfeixados sob o título de "Retorno", um termo que nesta proposta comparece em toda sua ambiguidade. O conjunto também evoca o poema "Correspondências" de Baudelaire e o traço algo experimentalista do livro remete-nos ao poeta Mallarmé, um dos precursores do Concretismo. O Movimento Concretista influenciou a poesia "pensante" do nosso João Cabral e a 'brincante" do poeta Leminski, só para citar estes.
Os poemas-cartas formam um leque temático quase infindável e são "enviados" ao vento, à terra, à linguagem, à guerra, à literatura, incluindo outras categorias como a das lembranças e repescagens da alma. Chega até o Cristo, o nome que está acima de todo nome.
Afinal, o poeta nos diz logo na apresentação, citando o filósofo Vilém Flusser, que a "poesia aumenta o campo do pensável" e é assim, com seus versos livres a se desenharem na página, que o lirismo também se mantém em um lugar mais discreto, pois será o leitor, com sua bagagem, que lhes conferirá o tom da emotividade.
Distraidamente o livro foi adquirindo corpo, o poeta também nos diz, assim como quem estivesse a "voar fora da asa", como usou dizer sobre o seu fazer poético, nosso poeta mais brincante, Manoel de Barros.
O eu lírico em Sammis Reachers, como que adentrando o "espírito" da linguagem, representa nesta sua poética de nomeações a criação de seu próprio mundo e isto nos remete a este versículo do livro de Hebreus: "pela fé os mundos pela palavra foram criados, de maneira que aquilo que se vê não foi feito do que é aparente" (Hb. 11:3).
Mas nem isto o salva, segundo o poeta declara como podemos ler neste trecho do poema "Retorno à Pedreira do Anaia":

Pedalo a bicicleta,
pedalo todos os dias,
Um refugiado jovem demais
Para ter descoberto que não há
Lugar
Sequer uma estrebaria
Onde dar parto à minha dor (...)
(...) Locupleto minha sanha de fliperamas,
Fotografia e a embriaguez da Grande
Literatura Universal
Que nunca me salvará:

Aguardo em (o)pus
O advento de Cristo.

Salva não, Sammis.
Eu também estou nessa de aguardá- Lo.

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Julia Lemos, pernambucana do Recife, iniciou sua trajetória como atriz nos palcos recifenses. Poetisa, tem seus primeiros trabalhos publicados no Diário de Pernambuco e Jornal do Commércio, organizando e participando ainda de vários recitais poéticos em Olinda e Recife. Em 1981 lançou seu primeiro livro de poesias, Carmem Antonia Migliacchio Enlouqueceu, e em 1997 publica A Casa Estrelada. Escreveu os ensaios: Sobre uma Poesia de Larvas Incendiadas e Patativa do Assaré - um trovador nordestino. Integra várias antologias no Brasil e Portugal. É autora de A Exposição dos Sóis (Penalux).


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