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domingo, 15 de junho de 2025

Eles nunca subiram em árvores (crônica) - Sammis Reachers

 

Eles não sobem em árvores. Bom, nem nós. Mas neles é pior, o baú da memória está nu: eles nunca subiram. Não há essa função em seus smartphones, ou app dedicado no play store. Nem game de escalada em árvores temos, embora haja até game que simule fábrica de cupcakes.

Cresci numa área periférica, miscigenada entre o puramente rural e o deficitariamente urbano. A árvore era uma amiga e uma certeza de qualquer ponto da paisagem.

Subir em árvores era manobra natural, filha primogênita da peraltice que fere toda criança. Claro, havia o subir por puro lazer, esportivo, e havia o utilitário: a coleta de frutas, ou desemaranhar uma pipa agarrada. Mangueiras, goiabeiras, jaqueiras, jambeiros e cajazeiros, e o que mais Deus propusesse de frutas nativas ou exóticas (exótica é a que veio de fora de nossa pátria, e Deus, ah, é um imenso proponente). Havia hierarquia arbórea: Dividíamos as árvores em fáceis, médias, difíceis e impossíveis de subir. Mas, as impossíveis tinham lá seus Quixotes: os moleques especializados em escalada arborescente. Aqui tínhamos quem subisse até em coqueiros e palmeiras, como a macaúba, cujo coquinho-catarro era iguaria bem disseminada e apreciada na região. No mais, o instinto gregário e de divisão laboral prevalecia: Eu, mau escalador, quantas vezes ficava no solo, só aparando as frutas que os hábeis lançavam lá de riba? Duma vez que quase morri aparando tentando aparar jacas (!) dá uma crônica daquelas hilárias. Outra hora.

Há pouco mais de uma década, fazendo uma caminhada com meus sobrinhos de então uns 13 e 10 anos, respectivamente, indaguei sobre o tema. Embora criados na mesma região que eu, o peso geracional carregou a mão sobre os moleques, e eles nunca haviam subido em sequer uma árvore na vida. Havia um pequeno pé de jamelão no caminho (caminhávamos d Tribobó a Maria Paula), e, ao incentivá-los, percebi a verdade do relatado, na imperícia desconcertante dos moleques.

Outro dia vi um texto desses que circulam em grupos de Zap ou páginas de coroas do Facebook, que despejava uma verdade no leitor: Você não vê mais crianças com gesso. How, espere aí: Isso é bom, isso é ótimo. Certo? E isso é bastante ruim. Gesso remedia fraturas, fraturas demandam tombos, tombos demandam movimento, risco. Vivência fora da(s) ilha(s) de conforto e eletrotecnia.

Posso subir sobre uma de minhas árvores diletas, sempre ele, o pé de jamelão, e apregoar sobre a necessidade urgente de reconectar nossas crianças com a natureza crua (leia-se: não mediada), mas isso é chover no molhado.

E como subir numa árvore que não existe? A suburbana cultura da árvore no quintal deixou de existir, substituída por funcional concreto, palmeiras e coqueiros interditados à escalada, a piscina ou a área de churrasqueira – vendida pelas empreiteiras de forma padronizada, pouco importa se o cliente aprecie – ou vá fazer uso – da tal churrasqueira. As empreiteiras vendem suas casas conjugadas/geminadas dentro do padrão de máxima utilitariedade e mínima espacialidade. Tal cultura não-arborizada meio que se espalhou pela mentalidade geral, nos subúrbios de algumas de nossas principais cidades e metrópoles. Você pode andar por lugares como o distrito maricasense de Itaipuaçu, com casas instaladas em terrenos de tamanho regular, numa configuração ideal para suportar de um ipê a uma mangueira, passando por toda a inumerável família de árvores e arbustos menores. Mas é possível caminhar por quarteirões sem ver quase copa alguma. Somente telhados coloniais e concreto. Quintais perfeitamente mortos – e funcionais. A Terra paga o preço, e o homem. E as crianças.

Há toda essa coisa das gerações e suas peculiaridades. Baby Boomers, Z, X, Alpha etc. Por sinal, neste 2025 nasce justamente uma nova: a geração Beta. Sim, delimitações úteis – mas até certo ponto: isso tem muito de simples presepada (ah, você já imaginava, hum?), muita coisa conceituada a nível “beta” (provisório/experimental). Assim como – fruto, reflexo? – as incansáveis delimitações e segmentações de problemas mentais que pululam e fazem explodir de páginas os manuais de psiquiatria, e de grana os editores, psicólogos e expedidores-de-laudos em geral. Saiu uma nova atualização há pouco, também.

Voltemos ao tema, vamos de uma polêmica por vez. Precisamos de árvores e de trepadores.

A internet trouxe luz, com perfis de amantes de árvores e frutas, nativas ou exóticas, que trocam informações e vendem mudas, via SEDEX, para todo o Brasil. Sim, quase toda fruta que você (não) conhece pode ser adquirida em muda, chegando embalada no seu portão. Outro dia vi um colecionador brasileiro de frutas (bem, para brincar disso você precisa ter um sítio ou fazenda) que foi à Indonésia em busca de conhecer novas espécies (sul e o sudeste asiático são um dos hotspots fruteiros da Terra). Há empresas como a Safari Garden (@safarigardenplantas) e a Colecionando Frutas (https://www.colecionandofrutas.com.br/), que vendem fruteiras sortidas pelo correio. E há perfis como o do botânico e paisagista Ricardo Cardim (@ricardo_cardim), atualmente badalado, e que ensina, em curtos vídeos no Instagram ou Tik Tok, noções de arborização, paisagismo e botânica aplicada aos temas citados.

Iniciativas fundamentais para resgatarmos a cultura da árvore, e isso, os manuais não vão lhe ensinar, passa pelo moleque e pela moleca, pela construção, neles, da familiaridade que demanda experiências. Leve-os ao parque da cidade, àquele sítio que cobra por diária. Uma trilha, uma caminhada na mata. A árvore na pracinha.

No mais, é restituir o que o progresso dinamitou, a árvore ou arbusto em seu quintal, na calçada, no terreno baldio em frente. Compre. Plante. Eles entregam embalado, em seu portão. Muitas prefeituras distribuem mudas gratuitamente.

Como escrevi num poema, as árvores são “playgrounds patamarizados”. Mas eles, os alfas e betas, precisam descobrir, transitar entre os patamares, arriscar o tombo. E ela, a árvore, precisa ser re-introduzida na sociedade, em seus solos e convívios, feito um parente que passou tempo demais no exílio. Fazer as pazes conosco e ser apresentada a nossos rebentos.

Estou pensando em inaugurar uma “oficina de escalada de árvores”. A cada quinzena, numa APA ou Horto Botânico. Para horror de algumas mães e avós, médicos e autoridades. Bem, é preciso empreender e isso acontece – e prospera – no solo do risco.

Falando em risco, este sim protuberante, o geoterror climático, assevera: É urgente nos reconciliarmos com as árvores, e salvar o(s) que pudermos.

 

Sammis Reachers


sábado, 10 de maio de 2025

Labirintos da Vida - Contos e crônicas de José Feldman reunidos em e-book gratuito

 


O escritor, poeta e promotor cultural José Feldman acaba de lançar um primoroso volume reunindo contos e crônicas. Dono de uma escrita limpa e pungente, amparado em sua vasta cultura humanista e literária, José Feldman sabe falar ao nosso pensar e ao nosso sentir, oferecendo aos seus leitores um banquete que só a boa literatura logra proporcionar.

Conforme as palavras de apresentação do livro,

 

Neste livro de contos e crônicas, somos convidados a adentrar um universo onde a realidade se entrelaça com a emoção, revelando histórias que pulsam como o coração da cidade. As páginas que se seguem trazem à tona a dura verdade das ruas, onde a solidão e o abandono se fazem presentes em cada esquina, em cada olhar perdido.

Aqui, encontramos o retrato de idosos que, esquecidos pela sociedade, enfrentam a solidão com dignidade. Suas histórias nos falam do tempo que escorre como areia entre os dedos, das memórias que se apagam, mas também da sabedoria que perdura. Através de suas vidas, somos lembrados da importância de valorizar cada momento e

cada relação.

Os cachorros abandonados, protagonistas de muitas dessas narrativas, simbolizam o amor incondicional que tanto buscamos. Eles nos ensinam sobre lealdade e compaixão, sobre a amizade que transcende palavras. Em meio aos natais solitários, onde a alegria parece se dissipar, suas presenças iluminam a escuridão, oferecendo um consolo que poucos conseguem compreender.

Cada conto e crônica carrega consigo uma mensagem poderosa para as atuais e futuras gerações. São reflexões sobre a empatia, a solidariedade e a necessidade de olharmos uns pelos outros. Através das relações entre pessoas e seus fiéis companheiros, somos lembrados de que a verdadeira riqueza está na conexão humana e na capacidade de amar sem reservas.

Convido você, leitor, a mergulhar nesta coletânea e deixar que cada história ressoe em seu coração. Que as emoções despertadas aqui inspirem uma nova visão sobre a vida nas ruas, sobre aqueles que muitas vezes passam despercebidos, e sobre a força que encontramos na amizade e no amor. Que, ao final desta leitura, você se sinta motivado a agir, a transformar a realidade ao seu redor e a perpetuar essa mensagem de esperança e compaixão.

Confira o link para download gratuito no blog do autor, AQUI.


sábado, 15 de março de 2025

FLIPERAMIGOS - Resenhas e Crônicas Retrogamers de Sammis Reachers reunidas em e-book GRATUITO


Um passeio pitoresco e bem humorado pelo universo dos fliperamas e videogames das décadas de oitenta e noventa.

 

Nascido em 1978, minha infância e adolescência transcorreram nas décadas de 80 e 90. Na adolescência eu tinha duas grandes paixões, ou mais que isso, mas essas duas eram as mais regulares e onerosas: quadrinhos e jogos eletrônicos.  Passei pela clássica segunda geração dos consoles caseiros, mas vivi realmente as terceira, quarta, quinta e sexta gerações dos videogames. Além de ter experienciado toda a vibe dos fliperamas, verdadeiros "templos" onde eu depositava meu tempo e suadas fichas.

A partir de 2020, com a eclosão da pandemia de Covid e seu lockdown, o tempo “ocioso” de quase todos, para o bem e para o mal, foi catapultado para muito adiante. Assim, pude dedicar um tempo maior à jogatina nos emuladores, o que fazia, até ali, apenas muito esporadicamente. Comecei então um movimento natural de escrever  resenhas e análises de jogos por pura diversão e higiene mental, uma fuga ou descanso das atividades editoriais e literárias mais "sisudas" a que geralmente me dedico. A inspiração veio de meu amigo Luiz Miguel Gianeli e seu projeto Muito Além dos Videogames que, além dos livros editados, hoje mantém uma revista (onde colaboro).

O resultado desta literatura (retro)gamer está aqui, neste amplo compilado de textos – algumas crônicas e muitas resenhas, abarcando mais de 120 jogos – escritos de 2019 a 2025. E o livro ainda carrega poemas e um conto dentro da temática dos fliperamas.

É de graça. Leia e compartilhe!


PARA BAIXAR O E-BOOK PELO SITE GOOGLE DRIVE, CLIQUE AQUI.


domingo, 16 de fevereiro de 2025

Sammis Reachers: Deambulações urbanas num domingo carioca

 


São dezessete horas de um domingo de primavera. Cumprindo uma missão agora há pouco na UERJ do Maracanã, aquele monstro de concreto, ao sair me deparei com os vazios e desertos de uma cidade grande aos domingos de tarde. Foi instantâneo: me recordei de quando era rodoviário e solteiro e, ao trabalhar nos domingos, por vezes ao largar daquele trampo feito de sacolejar e de pessoas, saía sozinho pelos vazios urbanos de Niterói ou Rio, desarvorada, desavisada e destemidamente. Sem destino ou maiores objetivos. Que solidão especial, trotando lotada de melancolia e levando na carroça sua refém apaixonada-pois-adoentada da Síndrome de Estocolmo, a poesia... Sim, muitos poemas nasceram nessas andanças. Não, nunca fui assaltado ou indagado. Deus e minha cara de cana (e minha decana bolsa atravessada nas costas) talvez tenham me guardado.

Outro detalhe que me traz reflexão é que a melancolia de andar numa mata, campo ou descampado deserto é diferente da de andar num deserto urbano. Cada qual tem sua docilidade, mas o campo fala de sentimentos atávicos, instintivos ou transcendentes do que é puramente humano; já a urbe possui uma "linha de ansiedade" (é o melhor termo que pude) toda própria, o humano se celebra e exaure em seus próprios maquinários concretos e simbólicos, num jogo de topofilia/topofobia que nos faz querer continuar o jogo do ver e do rever, do estar e do deixar de estar, enquanto somos acolhidos/moídos pelo espaço que incessantemente nos ressignifica enquanto o ressignificamos. Jogo por sinal tão caro à corrente da Geografia que me apraz, a Geografia Humanista ou Fenomenológica.

Divagações livres, mas as deambulações (deambular é justamente andar à toa) hoje interditadas a um homem casado.

Bem, melhor assim.

Sammis Reachers

24/11/24


domingo, 5 de janeiro de 2025

Contra a melancolia, a olimpolia

 


Dia desses me ocorreu uma palavra inusitada. A língua tem disso, vai parindo palavras para abarcar o novo ou o antigo que precisava ser dito, ou dito melhor, ou dito em menos espaço. Pois o sonho de toda expressão é resumir-se em uma palavra, feito um alfabeto que “cresce” até virar ideograma. É de sua espécie, feito cobra trocando couro.

No caso que trazemos em questão, seria uma palavra para contrapor a melancolia. Afinal, que palavra contrapõe melancolia, a prostração melancólica, em nossa língua? Euforia? Não, deixe a euforia lá, descabelada e se divertindo com as amigas. A melancolia é mais profunda e resiliente, precisa de uma contraparte a seu molde. E eis olimpolia. Sim, de Olimpo, aquele monte grego, suposta morada de deuses ruins (humanos demais). Mas o sentido de solaridade que o termo Olimpo, olimpiano, e suas variantes derivativas como olímpico trazem, é incontornável. Assim, olimpolia seria aquele sentimento de positividade não-piegas, não tóxica (recentemente descobrimos: há toxidade na bobice demasiada, na bondade mimoseada em paramentos de vulnerabilidade). Olimpolia não é alegria, que é até mais pura, atávica, mas acabrunhada de fragilidades. É uma virtude a ser mantida conscientemente, sustentada, um ethos exercitável.

Sejamos cristalinos: Olimpolia é um otimismo despido das frescuras (opa, um termo quase proscrito por aí).

Um estoicismo que sorri. Sim, pois menos resignado, um ponto menos grave.

Uma euforia disfórica.

Nietzsche, louco ou antes de enlouquecer, falava de vontade de potência. Olimpolia seria exercício de potência, e sua contrita, mas firme celebração.

A skatista que perde o ouro, mas sorri feliz, exulta até (exulta: exatamente aqui está a olimpolia), com o acerto da adversária/colega. Jovem, mas senhora de si, do que é maior, plena das/nas coisas mais importantes. Derrotada, mas senhora de uma outra vitória, difundida na amplitude.

Como poeta, acreditei sempre que há palavras escondidas dentro da luz: Olimpolia é uma das que precisamos. Seja bem-vinda.

 

Sammis Reachers


sexta-feira, 18 de outubro de 2024

𝗩𝗮𝗽𝗼𝗿 𝗱𝗶𝗴𝗶𝘁𝗮𝗹 - Lucio Carvalho

 


Desde que o primeiro booktuber pisou no planeta, não aconteceu nada que merecesse muito registro. Apesar disso, o fenômeno prolifera e começa aqui e ali a ser estudado. Em revistas acadêmicas, o assunto aparece em vários artigos. Não sei se já foram escritas teses a respeito, afinal, como disse há poucos dias aqui, encontrar informações quanto a teses no Brasil é um caminho destinado à desventura e ao desengano.

Talvez o mais adequado fosse que o assunto fosse abordado pelos estudos em Comunicação, Mídias, Estudos Culturais, etc., como um fenômeno de massas, mas é no universo das Letras que a presença destas pessoas tem mais impactado. Dada a disseminação massiva do uso da internet não deixa de ser previsível, embora, na minha opinião, o impacto dessa exposição continuada me pareça bastante superestimado.

Assim que, futuramente, será corriqueiro encontrar na história da crítica literária os nomes de Wilson Martins, Otto Maria Carpeaux, Franklin de Oliveira, Lucia Miguel Pereira, Ligia Chiappini e tantos mais ao lado dos de Bel Rodrigues, Melina Souza, Tatiana Feltrin e etc. Será? Não temos distância, porém, considerando as aparências comunicativas, tudo indica que sim. Talvez, em profundidade e com a passagem do tempo, tudo acabe revelando-se como vapor digital. Seja como for, nada melhor que a internet na promoção do contágio entre campos e especialidades. Quem vivê-la verá.

Mas os números impressionam. Um alienígena que aqui chegasse imaginaria que não se trata de um país cujo número de leitores se mantêm em declínio constante, isso de acordo com a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, a única com uma série consistente. O número de seguidores de perfis e canais literários extrapola a casa dos milhões. Em contrapartida, o principal jornal literário brasileiro, o Rascunho, não conta com 40.000 seguidores no Instagram. As demais revistas, sites e blogues engatinham com números infantis numa internet povoada por influencers que postam (e supostamente leem) na velocidade dos guepardos.

É a facilidade do clique e a tentação da selfie, dirá aquele escritor pouco entusiasmado pelo "engajamento" digital. É tudo pseudo-literatura, asseverará aquele poeta amargurado. Seja quais forem os diagnósticos, a realidade (visível, mas intangível) é acachapante.

Não importa que na Flip um famoso da hora não venda 200 exemplares, a sensação visual do mundo instagrâmico é de apenas flamantes sucessos. Os eventos flopados não são instagramáveis, os livros lançados há dois anos nos balaios também não. As evidências de que são os livros evangélicos os grandes best-sellers desta época nem pensar. Este é um mundo estritamente positivo que devora a novidade, mas sabe-se lá que memória ele deixará num futuro que ainda precisa se fazer possível de existir.

*     *     *

Lucio Carvalho é escritor e editor. Lançou recentemente o romance Down House, 1858 (AQUI). Edita a revista literária Sepé (AQUI).



terça-feira, 24 de setembro de 2024

BULUNGA: Literatura e humor em revista

 


BULUNGA é uma revista de literatura e humor de periodicidade mensal que veicula, a cada edição, contos, crônicas, entrevistas, poemas e resenhas.

Tocada pelo editor Michel Salomão, conta em suas fileiras com o combativo escritor Jorge F. Isah, amigo de longa data. E a partir da edição 33, passei a fazer parte do time de articulistas, comparecendo com duas crônicas.

Transitando pelos mais variados temas da história e do cotidiano, Bulunga consegue instigar e provocar de maneira agradável, além de municiar seus leitores com farta dose de humor, cura possível para nossos tempos conturbados.

Leia gratuitamente esta e outras edições de Bulunga no site: https://bulunga.com/


sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

ALMAS PERFUMADAS, um texto de Ana Jácomo

 


Tem gente que tem cheiro de passarinho quando canta. De sol quando acorda. De flor quando ri. Ao lado delas, a gente se sente no balanço de uma rede que dança gostoso numa tarde grande, sem relógio e sem agenda. Ao lado delas, a gente se sente comendo pipoca na praça. Lambuzando o queixo de sorvete. Melando os dedos com algodão-doce da cor mais doce que tem pra escolher. O tempo é outro. E a vida fica com a cara que ela tem de verdade, mas que a gente desaprende de ver.

Tem gente que tem cheiro de colo de Deus. De banho de mar quando a água é quente e o céu é azul. Ao lado delas, a gente sabe que os anjos existem e que alguns são invisíveis. Ao lado delas, a gente se sente chegando em casa e trocando o salto pelo chinelo. Sonhando a maior tolice do mundo com o gozo de quem não liga pra isso. Ao lado delas, pode ser abril, mas parece manhã de Natal do tempo em que a gente acordava e encontrava o presente do Papai Noel.

Tem gente que tem cheiro das estrelas que Deus acendeu no céu e daquelas que conseguimos acender na Terra. Ao lado delas, a gente não acha que o amor é possível, a gente tem certeza. Ao lado delas, a gente se sente visitando um lugar feito de alegria. Recebendo um buquê de carinhos. Abraçando um filhote de urso panda. Tocando com os olhos os olhos da paz. Ao lado delas, saboreamos a delícia do toque suave que sua presença sopra no nosso coração.

Tem gente que tem cheiro de cafuné sem pressa. Do brinquedo que a gente não largava. Do acalanto que o silêncio canta. De passeio no jardim. Ao lado delas, a gente percebe que a sensualidade é um perfume que vem de dentro e que a atração que realmente nos move não passa só pelo corpo. Corre em outras veias. Pulsa em outro lugar. Ao lado delas, a gente lembra que no instante em que rimos Deus está dançando conosco de rostinho colado. E a gente ri grande que nem menino arteiro.

Ana Cláudia Saldanha Jácomo

http://anajacomo.blogspot.com


sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

01/01/2023: O Atentado do Vírus 'Desfiltrador'

 


Eugene Kaspersky, pai do antivírus homônimo e tido ou havido como especialista maior do mundo das seguranças e salvaguardas do universo virtual, asseverou que o vírus partiu de uma cidadezinha chinesa, isolada em pó e fama nas franjas do deserto de Gobi, onde o governo chino, aquele dos olhos cada vez maiores, mantém uma de suas bases hacker.

O Times, não o de Londres, o New York, publicou relato de seu maior jornalista, dois Pulitzers naquele lombo branco e fora de moda, dando notícia de que tal descalabro cibernético partiu de uma IA (inteligência artificial) criada nos laboratórios da NSA (National Security Agency, uma das quatrocentas e doze agências de espionagem norte-americanas, ou quatrocentas e treze, a contar com a ABIN), IA que tomou “vida própria” e praticou ações “em benefício da humana espécie”, antes de ser silenciada dos mainframes. A NSA, claro, nega o fato, como nega qualquer fato.

E eis o fato: No dia 01 de janeiro de 2023 um vírus blended threats (tipo de vírus que é na verdade um coquetel de diversos códigos maliciosos, que operam em conjunto), vindo sabe-se lá de onde, aplicou o maior golpe ou ataque virtual já efetivado na história da internet. Milhões de pessoas tiveram quase 8,4 bilhão de fotos instantaneamente “desfiltradas”. Sim, ridiculice das impraticabilidades, ciber-porralouquice: Fotos publicitárias de repente perderam seu glamour falseabundo, instaladas já nos próprios anúncios virtuais veiculados por suas agências; anúncios culinários foram dos mais prejudicados, e a lambada de vara de cilício/silício (você escolhe, afinal o lombo também é seu) não poupou do universal McDonalds à nossa Giraffa’s, magoando ainda, numa igualação de classes jamais sonhada por Marx ou Bakunin, os altos mestres da culinária: No mesmo dia 01, apenas quatro horas depois da deflagração do vírus, nada menos que seis altos cozinheiros listados no topo do Guia Michelin suicidaram-se. E duro golpe se abateu, igualmente, sobre o comércio de corpos humanos, o virtual e agora globalizado meretrício: Milhares de books fotográficos (ou menus) foram literalmente deflorados de suas fantasias photoshopadas.

Uma impossibilidade completa e ilógica, mas aconteceu.

A desgraça, aí iniciada, seguiu penetrando os motéis e chats de que é feita a micro história: Namoros virtuais, dos rascunhados aos já prestes (aqueles já com passagens compradas, pois janeiro é período de férias!) foram repentinamente suspensos pela sub-reptícia revelação da face verdadeira de muchachos, muchachas e sambarilovis que valiam-se de filtros, às vezes em sua carga máxima, para diluir rugas, dinamitar estrias, clarear dentes, encobrir olheiras, harmonizar enfim a despojada/renegada naturalidade de suas faces e corpitchos.

Grandes artistas viram o pedestal ruir de sob seus pés de pégaso ou gazela; fotógrafos afamados foram lançados de volta ao lugar-comum do populacho Iphonizado.

O Instagram, criação espetaculosa do brasileiro Mike Krieger e seu sócio Kevin Systrom, hoje em posse do decadente Mark Zuckerberg, o repetidor de caras e camisas, lançou as ações da META num nimbo mais profundo que a Deep Web, ao perder num único dia setenta milhões de usuários.

PCs, laptops, aparelhos móveis: o vírus, que já está sendo chamado de RSW (Reality Shock Wave, ou onda de choque de realidade), tomou e manietou aparelhos até daqueles que jamais utilizaram um programa de fotos ou tratamento de imagens. Soturno aguarda, fênix de código binário, com seus cacetetes e espadas verdadificadores afiados, pronto para desmascarar a primeira tentativa de falseio.

E pensar que o vírus, dormente há meses segundo o velho Kaspersky, foi acionado por um gatilho singelo, que seu cruel programador havia preparado: Quando da utilização dos filtros por mais de quinhentos milhões de usuários ao mesmo tempo. Culpa dos festejos de Reveillon.

Moral da notícia, fictícia como um filtro Clarendon (aquele primeiro, o mais bonito) do Instagram: Viva mais, fotografe menos. E se for filtrar, filtre a água e as amizades, pois os tempos são liquidamente maus, photoshopadamente #fúteis.

 Sammis Reachers



Este conto faz parte do livro Fabulário Índigo. Disponível em formato impresso (aqui) e e-book (pela Amazon, aqui).




domingo, 2 de outubro de 2022

DIA DE ELEIÇÃO, crônica de Sammis Reachers

 


Dia de eleição é dia de catarse. De expor amigamentos e odianças por esses que o jogo político arregimenta, esses que, por pudor nos negamos a dizer, mas no fundo – sejamos nós letrados ou humildeletras, enricados e pés-de-pano – sabemos que são os piores de nós...

Dia de eleição é dia de desnudamentos, de sangria dos ânimos, de expor os radicais e seus monóculos, sua tobas de ver o mundo por um só viés. Esses de direita e esquerda, em seus extremos tão perigosos – mas não haveria jogo sem eles, afinal, os fominhas da bola.

Dia de eleição é dia de melancolia, e isso nenhum poeta, dos seis mil que conheço ou ao menos tolero, já aventou: Dia máximo de melancolia, ao revisitar velhos caminhos e seções, ao rever rostos de anos, infância até, estudos juntos, trampos, sopapos e beijos trocados.

Dia de eleição é dia de cidadania, essa obviedade central & inescapável, frenética em seus entra-e-sais quase copulosos, pois desse seu coito na urna, hoje botãonizada, nasce o rebento que nos resguarda, a democracia – mais que este ou aqueloutro ator canastrão que ocupar o cargo que lhe confiarmos.

Dia de eleição é dia de suspense, riso e lágrima, apuração de samba e final de copa, suspiros ou expiros de sonhos, projetos, construtos de luz ou maquiavélicas maquinações. E acerto de conta$, que o correligionário também come, afinal.

Dia de eleição é dia de socializar – e orar, debater, biritar, conforme a cultura da aldeia: Preocupações ou despreocupações se carnavalizam, entrechocam e abraçam – o outro feito nós na sujeição ao sistema que nos comporta, renovação de ciclo, refundação tumultuosa de nosso pequeno grande mundo citadino.

 Sammis Reachers

https://linktr.ee/sreachers


terça-feira, 16 de novembro de 2021

Renato Cascão & Sammy Maluco - Uma dupla do balacobaco: Livro gratuito para download

 

Nesta obra, memória e humor se entrelaçam para narrar divertidíssimas histórias da infância de dois jovens criados num subúrbio de São Gonçalo (município da região metropolitana do Rio de Janeiro), nos duros anos da década de 80. Relatos de perrengues e peripécias, marcados pela humanidade, o bom-humor e a irreverência da prosa de Sammis Reachers, dão conta de duas pequenas vidas que poderiam ser as vidas de quaisquer moleques daquele tempo, dada sua universalidade. 

O livro é ilustrado e possui 114 págs.

O livro em pdf pode ser baixado GRATUITAMENTE, clicando AQUI.


O livro também está disponível na versão impressa, ao preço de 25 reais (o valor já inclui o frete). Caso queira adquirir, me envie um e-mail o quanto antes, pois a tiragem inicial foi bem pequena:  sreachers@gmail.com

O lançamento do livro impresso acontecerá oficialmente durante a terceira edição do FLISGO, o Festival Literário de São Gonçalo (dia 21/11, às 14h). O evento reunirá expositores literários, atividades e atrações culturais diversas, e irá dos dias 19 a 22, das 10h às 19h. O endereço é o Conjunto Residencial Venda da Cruz – Minha Casa Minha Vida – Antigo 3º. Batalhão de Infantaria, Venda da Cruz, São Gonçalo, RJ



sábado, 15 de agosto de 2020

O que é um menino? Um texto cativante




Os meninos se apresentam em tamanho, peso e cores sortidas. Encontram-se por toda a parte, em cima, em baixo, dentro, fora, trepados, pendurados, caindo, correndo, saltando. As mães os adoram, as meninas os detestam, as irmãs e os irmãos mais velhos os toleram, os adultos os ignoram e o céu os protege. Um menino é a verdade de cara suja, a sabedoria de cabelo esgadelhado, a esperança de calças caindo. Tem o apetite do cavalo, a digestão do avestruz, a energia da bomba atômica, a curiosidade do mico, os pulmões de um ditador, a imaginação de Júlio Verne, a timidez da violeta, a audácia da mola, o entusiasmo do buscapé e tem cinco polidáctilos em cada mão, quando pratica suas reinações. Adora os doces, os canivetes, as serras, o Natal e a Páscoa; admira os reis e os livros de figuras coloridas; gosta do guri do vizinho, do ar livre, da água, dos animais grandes, do papai, dos automóveis e dos trens, dos domingos, das bombas e traques. Abomina as visitas, o catecismo, a escola, os livros sem figuras, as lições de música, as gravatas, os casacos, os barbeiros, as meninas, os adultos e a hora de dormir.
Levanta cedo e está sempre atrasado à hora das refeições. Nos seus bolsos há sempre um canivete enferrujado, uma fruta verde mordida, um pedaço de barbante, dois botões e algumas bolinhas de gude, um estilingue, um pedaço de substância desconhecida e um objeto raro, que lhe é precioso por 24 horas. É uma criatura mágica. Você pode fechar-lhe a porta do seu quarto de ferramentas mas não a do seu coração... Pode expulsá-lo do seu escritório mas não do seu pensamento. Toda a sua importância e a sua autoridade se desmoronam diante dele, que é o seu carcereiro, seu chefe, seu amo... Ele, um despótico e ruidoso mandãozinho!... Mas quando você volta para casa, à noite, de esperanças e ambições despedaçadas, ele pode compô-las num instante com as suas palavrinhas mágicas: "OH! — PAPAI!".
Autor Desconhecido

domingo, 3 de maio de 2020

Os Diferentes Estilos - Crônica de Paulo Mendes Campos



Parodiando Raymond Queneau, que toma um livro inteiro para descrever de  todos  os  modos  possíveis  um  episódio  corriqueiro, acontecido em um ônibus de Paris, narra-se aqui, em diversas modalidades de estilo, um fato comum da vida carioca, a saber: o corpo de um homem de quarenta anos presumíveis é encontrado de madrugada pelo vigia de uma construção, à margem da Lagoa Rodrigo de Freitas, não existindo sinais de morte violenta.

Estilo interjeitivo - Um cadáver! Encontrado em plena madrugada! Em pleno bairro de  Ipanema! Um homem desconhecido! Coitado! Menos de quarenta anos! Um que morreu quando a cidade acordava! Que pena!

Estilo colorido - Na hora cor-de-rosa da aurora, à margem da cinzenta Lagoa Rodrigo de Freitas, um vigia de cor preta encontrou o cadáver de um homem branco, cabelos louros, olhos azuis, trajando  calça amarela, casaco pardo, sapato marrom, gravata branca com bolinhas azuis. Para este o destino foi negro.

Estilo antimunicipalista - Quando mais um dia de sofrimentos e desmandos nasceu para esta cidade tão mal governada, nas margens imundas, esburacadas e fétidas da Lagoa Rodrigo de Freitas, e em cujos arredores falta água há vários meses, sem falar nas frequentes mortandades de peixes já famosas, o vigia de uma construção (já permitiram, por debaixo do pano, a ignominiosa elevação de gabarito em Ipanema) encontrou o cadáver de um desgraçado morador desta cidade sem policiamento. Como não podia deixar de ser, o corpo ficou ali entregue às moscas que pululam naquele perigoso foco de epidemias. Até quando?

Estilo reacionário - Os moradores da Lagoa Rodrigo de Freitas tiveram na manhã de hoje o profundo desagrado de deparar com o cadáver de um vagabundo que foi logo escolher para morrer (de  bêbado) um  dos bairros mais elegantes desta cidade, como se  já  não  bastasse para enfear aquele local uma sórdida favela que nos envergonha aos olhos dos americanos que nos visitam ou que nos dão a honra de residir no Rio.

Estilo então - Então o vigia de uma construção em Ipanema, não tendo sono, saiu então para passeio de madrugada. Encontrou então o cadáver de um homem. Resolveu então procurar um guarda. Então o guarda veio e tomou então as providências necessárias. Aí então eu resolvi te contar isto.

Estilo áulico - À sobremesa, alguém falou ao Presidente, que na manhã de hoje o cadáver de um homem havia sido encontrado na Lagoa Rodrigo de Freitas. O Presidente exigiu imediatamente que um de seus auxiliares telegrafasse em seu nome à família enlutada. Como lhe informassem que a vítima ainda não fora identificada, S. Ex.a, com o seu estimulante bom humor, alegrou os presentes com uma das suas  apreciadas blagues.

Estilo schmidtiano - Coisa terrível é o encontro com um cadáver desconhecido à margem de um lago triste à luz fria da aurora! Trajava-se com alguma humildade mas seus olhos  eram azuis, olhos para a  festa alegre colorida deste mundo. Era trágico vê-lo morto. Mas ele não estava ali, ingressara para sempre no reino inviolável e escuro da morte,  este rio um pouco profundo caluniado de morte.

Estilo complexo de Édipo -  Onde andará a mãezínha do homem encontrado morto na Lagoa Rodrigo de Freitas? Ela que o amamentou, ela que o embalou em seus braços carinhosos?

Estilo preciosista - No crepúsculo matutino de hoje, quando fulgia solitária e longínqua a  Estrela-d'Alva, o atalaia de uma construção civil, que perambulava insone pela orla Sinuosa e  murmurante de uma lagoa serena, deparou com a atra e lúrida visão de um ignoto e gélido ser humano, já eternamente sem o hausto que vivifica.

Estilo Nélson Rodrigues - Usava gravata  de  bolinhas  azuis  e morreu!

Estilo sem jeito - Eu queria ter o dom da palavra, o gênio de um Rui ou o estro de um Castro Alves, para descrever o que se passou na manhã de hoje. Mas não sei escrever, porque nem todas as pessoas que têm sentimento são capazes de expressar esse sentimento. Mas eu gostaria de deixar, ainda que sem brilho literário, tudo aquilo que senti. Não sei se cabe aqui a palavra sensibilidade. Talvez não caiba. Talvez seja uma  tragédia. Não sei escrever mas o leitor poderá perfeitamente imaginar o que foi isso. Triste, muito triste. Ah. se eu soubesse escrever.

Estilo feminino - Imagine você, Tutsi, que ontem eu fui ao Sacha's, legalíssimo, e dormi tarde. Com o Tony. Pois logo hoje, minha filha, que eu estava exausta e tinha hora  marcada no cabeleireiro, e estava também querendo dar uma passada na costureira, acho mesmo que vou fazer aquele plissadinho, como o da Teresa, o Roberto resolveu me telefonar quando eu estava no melhor do sono. Mas o que era mesmo que eu queria te contar? Ah, menina, quando eu olhei da janela, vi uma coisa horrível, um homem morto lá na beira da Lagoa. Estou tão  nervosa!  Logo eu que tenho horror de gente morta!

Estilo lúdico ou infantil - Na madrugada de hoje por cima, o corpo de um homem por baixo foi encontrado por cima pelo vigia de uma construção por baixo. A vítima por baixo não trazia identificação por cima. Tinha aparentemente por cima a idade de quarenta anos por baixo.

Estilo concretista - Dead dead man man mexe  mexe  Mensch  Mensch MENSCHEIT.

Estilo  didático - Podemos encarar a morte do desconhecido encontrado morto à margem da Lagoa em três aspectos: a) policial; b) humano; e) teológico. Policial: o homem em sociedade; humano: o homem em si mesmo; teológico: o homem em Deus. Polícia e homem: fenômeno; alma  e Deus: epifenômeno. Muito simples, como os senhores veem.

Fonte:
Paulo Mendes Campos. Supermercado. RJ: Tecnoprint, 1976.

sábado, 18 de abril de 2020

O Tempero Colombiano, um conto/crônica de Sammis Reachers



Nos ribombares da pandemônica década de 60, meu pai, Mário Pedro da Silva, chegou ao estado do Rio, vindo da doce e estacionária vida em Arapongas, no interior do Paraná. Vinha em busca de glória e fama: sonhava ser ator. Ou cantar no rádio. Ou uma ponte que o levasse à Hollywood. Ou você pensou que a parte carnavalesca de meu nome, “Sammis Reachers Cristence” Silva, veio de uma inspiração superior? Talvez descendente de abnegados missionários ingleses, ou colonos alemães avermelhados pelo sol e pelo solo paranaense? Que tal de Herbert Richers, o falido e antes onipresente empresário da dublagem televisa (“Versão brasileira: Herbert Richers”, lembra?). Veio dos nomes nos créditos finais dos filmes que ele, meu velho jovem pai, amava, na pacatitude da já citada Arapongas, onde o cinema era tudo o que havia, a bacia das almas.
Bem, após alguns meses desavisadamente fustigantes na efervescência da capital, a inadequação de nosso herói mambembe encontrou refrigério inesperado quando ele foi convidado para ver “aquela cidade ali, do outro lado da baía”. Atravessando as águas turvazuis da Guanabara, o jovem paranaense teve uma iluminação ao conhecer a cidade onde eu vim a nascer (epa, spoiler!). A calmaria da Niterói ainda em sua meia idade lhe lembrava de alguma forma o Paraná pacatizado, pacativante, e a paixão assomou aos olhos do aspirante a James Dean.
Em pouco tempo Mario estava de mala e calça boca de sino alugando quarto de pensão em Icaraí, naquela época o bairro (que já era nobre) que reunia o melhor consórcio de aprazibilidade e centralidade.
Estabelecido,  meu pai logo conseguiu emprego na cidade sorriso e pôs-se a fazer amigos. Na própria pensão em que se instalara, havia os mais diferentes tipos.
A tal pensão tinha sua legislação, como é (epa, ao menos era) de praxe em tais repúblicas. Nada de mulheres; nada de cozinhar nos quartos; divisão de quartos? No máximo entre dois homens.
A dona da pensão era o coração pulsante do lugar, e ela mesma uma figura da mais relevante singularidade. Bogotana, filha da Bogotá de nossa vizinha Colômbia, ninguém nunca soube o que ela viera fazer naqueles idos por aqui. A suspeita que liderava as pesquisas era que a agora velha Consuelo, jovem ainda havia se apaixonado por algum cafajeste viajor, que a trouxera para as paragens braileñas, e aqui a abandonara à própria e mala sorte.
Era ela, a querida de todos na pensão, que proporcionava o momento mágico da vida daqueles senhores, homens e rapazes que ali habitavam, durante o jantar (a pensão servia apenas café da manhã, simplório, e jantar. O almoço cada um tinha que filar ou comprar em outras paragens). A comida, sempre exuberantemente saborosa, mesmo nos dias de maior frugalidade, entorpecia os ânimos e estômagos de todos aqueles que, felizardos, a provassem. Uma cozinha primorosa, cercada como convém de segredos (era terminantemente proibido que enxeridos penetrassem na casa de dona Consuelo durante a elaboração dos pratos) e com doces toques de exotismo era ali praticada; uma cozinha que merecia até estar aberta ao público, e mais, a um público mais seleto do que àquela coletânea de solteiros que se refastelava nas panelas. Solteiros que, cientes da bênção que era sorver aquela cozinha encantadora, segredavam entre si o privilégio que era morar naquele lugar, se por mais nada, ao menos pela comida fulminante. Contrariados, evitavam estender-se em elogios, embora os mesmos fossem algo inevitáveis: temiam que a boa senhora abrisse um restaurante, caso em que certamente faria imediata fortuna, e de uma única e mesma facada lhes fosse surrupiada a estalagem e a boa comida...
Após o repasto, a alegria descia sobre os agregados; as conversas se expandiam. Tímidos passavam a palrar como canários; os já faladores eram então insuflados a animadores de auditório. As cantorias tomavam o ar de torneios, de “Festivais da Canção” onde duelavam-se sorridentes convivas. Havia algo de mágico naquele ambiente, e era sempre após o jantar que aquela magia socializadora ou destimidizadora parecia explodir.
Certa feita o silencioso Abelardo, aprendiz de oculista, e que normalmente mal despachava um “bom dia, boa noite” aos companheiros de pensão, pôs-se a rodopiar em dança, solitário, olhos cerrados, como que arrebatado; seu bailar, aplaudido pelos demais, estendeu-se portão afora da república – e lá foi o Abelardo, antes tímido que só ele, dançarolando pela calçada, ao som de algum acompanhamento musical que só ele ouvia (pois não havia música a tocar), para espanto dos poucos transeuntes daquele trecho.
E o Fernando, policial turrão e engomado, príncipe da empáfia e da arrogância militaresca, que, sempre que tocado pelos benfazejos vapores do jantar, punha-se a pedir perdão aos companheiros por seu comportamento usualmente arrogante? Certa feita receitou, de improviso, um belo poemeto em honra da amizade, declamação que o levou embaraçosamente aos soluços lacrimais.
Mas o efeito mais bizarro daquela felicidade pós-banquetal se dava sobre o Rui, pernambucano cabo da Marinha de Guerra, varonil mulherista e mui cioso de sua elevada posição (cabo, como disse) na hierarquia militar. O brincalhão e pretensamente galanteador marujo, negro de média estatura, peitoral proeminente, belos olhos de um castanho claro que ele alegava serem os terrores do mulheril, quando de barriga cheia e engolfado pelo clima descontraído que se sucedia àqueles jantares, ganhava um brilho diferente no olhar. Primeiro era seu riso, que se alongava; em seguida suas gesticulações passavam a ganhar mais vida, mais curvas; a marcialidade de seus movimentos cambiava para uma leveza quase... quase feminina. E assim, sorrindo largamente até as gargalhadas, traquejando com inesperada malemolência, o Rui, agora levantado de sua cadeira, passava então a apertar e massagear os ombros dos amigos, alisando os cabelos de um aqui, ajeitando a gola de outro ali... O que no princípio inevitavelmente descambou em algumas confusões, mas rapidamente aquela “transformação” foi absorvida pela geleia geral daquele festim diário de pós-expedientes.

O desenlace de nossa historieta teve seu início com o aperto e a correspondente esperteza de meu pai: conhecedor da proibição de cozinhar nos quartos, o jovem paranaense, talvez contaminado pela mítica malandragem carioca, resolveu transgredir a lei em nome da economia: conseguindo um pequeno fogareiro de um bocal, movido à prosaico querosene, passou a cozinhar pequenas porções de macarrão ou outras basicalidades dentro do quarto; para isso, todos os dias na hora do almoço voltava para a pensão a título de descansar justamente o “almoço” que alegara já ter consumido no centro de Niterói...
Em pouco tempo nosso herói, tão inábil na cozinha quanto um cego, passou a ressentir-se de ter que comer seu macarrão ou arroz ou o que fosse sempre maculado pela mais insossa sem-saboria. Já não sabia cozinhar; “mal” acostumado que ali fora a uma cozinha dos deuses, amargava cada colherada de sua própria comida como um condenado.
Um dia o estudante autodidata de inglês, que ainda sonhava em conhecer Hollywood, teve um insight: e se ele conseguisse dar uma expiada na dona Consuelo enquanto ela cozinhava? A velha era irredutível nesse ponto, mas ele poderia bolar algum tipo de burla para conferir como aquela maga temperava suas comidas. Não deveria ser tão difícil. Nosso mais novo malandro já não suportava a tortura de almoçar sola de sapato e jantar manjares e ambrosias...
Um belo dia meu pai saiu um pouco mais cedo do trabalho (nesta época já trabalhava como contínuo na Facit, no centro de Niterói) e dirigiu-se para a pensão. Ali, esgueirou-se pela parte detrás daquele conjunto de quartos, já com um tamborete nas mãos, para dar altura à pequena janela que fundeava a cozinha da velha, e lá se espichou ele para observar qual o segredo dos temperos da dona Consuelo. Observou por um tempo considerável enquanto a velha picava carne para um ensopadinho, cozinhava uma formidável panela de arroz e remexia um feijão que estranhamente não levava alho, mas ficava sempre delicioso. A atenção do malandrete estava concentrada no momento das temperanças, pois ali ele esperava descobrir ao menos algo que pudesse replicar, ainda que porcamente, a fim de mitigar o gosto já intragável de sua comida.
Pendurado e atento em seu tamborete, o jovem viu a idosa estrangeira sacar de dentro de um armário uma chusma de matos diversos. A velhinha pôs-se a picar bem finas algumas folhagens; meu pai estava atento: pôde reconhecer cebolinha, aipo e talvez cardamomo. Mas então a matrona bogotense ou bogotana apanhou um grande pote plástico e dele sacou uma outra erva. A velha espremeu algumas das estranhas folhas nos dedos, e pareceu sorver seu aroma por alguns instantes; depois pôs-se a arrancar pedaços daquelas folhas estreladas e jogar dentro de todas as panelas que tremelicavam no fogão.
O ex-matuto de roça e aprendiz de haute coisine já havia visto aquela erva fina, mas não fora nas pequenas roças de fundo de quintal naquela terra roxa e fértil do Paraná, nem nas vendas e armazéns, quando sua madrasta lhe mandava ir até lá comprar este ou aquele item; quem lhe mostrara aquele tipo de tempero fora Fernando, o policial ferrabrás, que certa feita exibia numa revista de sua corporação imagens daquela exótica planta, tão em moda naqueles idos da década de 60. O desconcerto da informação, sub-reptícia e algo dura de equalizar, derrubou meu jovem pai estatelado no chão.
Enquanto caia de sua banqueta, num daqueles fenômenos de slow motion que gostam de acontecer nos momentos dramáticos de nossas vidas, o jovem cinéfilo paranaense revira em flashback toda aquela espalhafatosa alegria pós-pasto; a música, as piadas, o gracejos e traquejos e a felicidade quase mágicas que assomavam a todos os republicanos da pensão de dona Consuelo. O motivo estava agora claro, pensava o magricela enquanto pranchava suas costelas contra alguns pedregulhos do chão.
Sabe-se lá por que cargas d’água (e a que custo, meu Deus, a que custo!), dona Consuelo temperava todos os seus pratos com frescas folhas de maconha...

*     *     *     *     *     *

Deglutidos os embaraços, o jovem migrante paranaense não pensou uma segunda vez. Reuniu seus vinténs e avançou ainda mais mato adentro: Comprou uma caxanguinha em nossa São Gonçalo, longe dos exóticos temperos colombianos. Bem, nem tão longe assim, mas essa história todos conhecemos...


Sammis Reachers

quarta-feira, 25 de março de 2020

Gambá e o Gran Cassino Palha Seca - Uma crônica bem-humorada de Sammis Reachers



Todo bairro tem suas histórias, seus mitos, seu fabulário.
O bairro do Palha Seca, aqui em São Gonçalo, não foge à regra. Recentemente, ao ver uma notícia inusitada circulando na internet, lembrei-me de uma história acontecida por cá, nos estertores finais da década de oitenta.
Em frente à minha casa morava com sua família cidadão de fácil amizade, mineiro como minha mãe, dado porém a uma vida irregular, mantida à base de escambos (o famoso troca-troca de mercadorias). Era um passarinho por uma carroça, uma carroça por uma geladeira e mais um dinheirinho de volta, uma geladeira por um trezoitão capenga da Taurus... E assim esse “malandro”, na boa acepção do termo, ia sobrevivendo.
Para auxiliar nas despesas trazidas pelos quatro filhos (um rapaz, duas moças e uma menininha quase temporã), o bom vizinho abrira uma vendinha, uma birosca, uma “barraca”, como chamávamos, naqueles idos, aqueles pequenos comércios de bairro.
Ao lado disso, o nosso empreendedor palhassequense, desconhecedor ou desrespeitador da lei, esse misto de salvaguarda social e grande estraga-prazeres, resolveu iniciar, dentro de sua casa e no convívio de sua família, uma, depois duas mesas de jogo. Isso mesmo: o homem das transações resolvera instalar um “cassino” em pleno Jardim Nazaré, que é o nome verdadeiro e honrado do nosso hoje difamado Palha Seca. Um rodízio entre variados jogos de baralho (da ronda ao truco, do buraco ao vinte-e-um) e ainda dados e dominó, quando não a prosaica purrinha, que eram praticados à exaustão, indo por vezes madrugada à dentro, e sempre valendo dinheiro. Nada de à brinca, ali era à vera. Na época cheguei a ver gente entrar ali lá pelas 21 horas e, lá pelas 2h da madruga, sair literalmente pelado – isso mesmo, peladão – pois apostara a ROUPA DO CORPO e, não sendo usuário de cuecas, teve que sair pelado, correndo pela night até sua casa...
Bem, toda essa confraternização era regada à muita cachaça, o hidromel dos deuses morenos dos trópicos. Assim nosso amigo gerente de cassinos complementava a renda, e também vendendo os tarimbados tira-gostos do tempo: linguiça frita, ovo cozido, torresmo e vez por outra um caldo ou mocotó.
Numa dessas noitadas no cassino da favelinha Beira do Rio, ainda nos inícios dos trabalhos, que religiosamente se iniciavam às 21h, um dos habitués do local resolveu fazer uma “presença”, um mimo aos amigos de copo e (má) sorte, e trouxe uma grande panela de frango à passarinho para servir aos convivas da casa. A novidade foi celebrada: Era realmente muita carne, bem picadinha e odorosa. O benemérito dissera ter matado três das galinhas do quintal, patrimônio de sua velha mãe, e propusera que, já que ele estava botando o tira-gosto, que os amigos lhe pagassem cachaça, muita cachaça. Sem problemas, pois.
Cada um que chegava ia se fartando naquela riqueza, bem fritinha e espantosamente gratuita. Até a família do amigo – sim, a criança e as mocinhas eram obrigadas a conviver e interagir com aquele ambiente sinistro em sua própria sala – também se serviram a gosto.
Enquanto isso, o nosso amigo aproveitava para pedir, na conta dos demais, boas doses de cachaça e suas variantes destiladas – uma verdinha aqui, um Domecq ali, um licorzinho de coco acolá. Os jogos iam animados e os ânimos, turbados pelo álcool, explodiam em sorrisos naquele miserável lazer suburbano. Foi quando alguém, sem qualquer maldade, perguntou ao indivíduo que lhes fornira com tão saboroso e farto repasto:
- Ô Gambá, você não vai comer não?
Pego assim de surpresa, enquanto tomava um dedo de Catuaba, que era para tonificar o espírito, nosso amigo alegou:
- Ciço, já comi muito em casa, enquanto estava cozinhando. Tô legal...
- Pô, mas já são quase duas da manhã. Desde que você chegou não comeu nada, e sempre come bem...  
- Que nada meu cumpadre, comi bastante em casa mermo, fica tranquilo. Hoje eu só quero beber. Ô Dudu, bota mais um dedinho de Catuaba aqui pro seu amigo.
Ao longo de todo o seu período de permanência ali no “estabelecimento”, Gambá (esse era o apelido do bruto, um sarará parrudo, baixinho, morador do Campo Novo) era o mais feliz, e isso entre felizes. Sorria como um palhaço, enquanto via os amigos fartarem-se com aquela iguaria preparada com carinho. Um coração de ouro o Gambá, quase santo, digno filho de São Gonçalo.
Após o diálogo acima, travado com o Ciço, o embriagado Gambá, que passara da conta habitual valendo-se da boa-vontade alheia em pagar pela bebida, passou a sorrir ainda mais. A cada vez que alguém pegava um daqueles últimos pedaços de frango, ele, com aquele brilho mortiço no olhar, comum aos ébrios, sorria com gosto – ou quase com cinismo, diria algum espírito de porco...
Ao ser fisgado o último pedaço de carne daquela grande e encardida panela, estando todos já afogados nos humores e vapores alcoólicos, um dos convivas reforçou o argumento de Ciço:
- Aí, acabou o frango e Gambá mesmo não comeu nem um pedaço...
Aproveitando o oportuno da ocasião, o malandrim resolveu abrir seu coração, e expor a inocente, inofensiva eu diria, brincadeira:
- Amigos, eu não comi nenhum pedaço pois essa carne que preparei para vocês não era bem das galinhas da mamãe. Era na verdade um urubu, um baita urubu que matei ali na Ponte Caída.
E antes mesmo que a surpresa, a dúvida e a descrença pudessem manifestar suas máscaras características na audiência humilde e chapada, o sarará de olhos cor de mel entregou a sordidez de alguns detalhes:
- Rapaz, o bicho é ruim de morrer! Carne dura! E na panela?!! Foram duas horas, duas horas malandro, na panela de pressão! – completou, explodindo numa gargalhada carnavalesca.
Gambá, boníssimo coração, acreditou na sorte, sorte que poucas vezes o visitara naquelas mesas de jogo. Imaginou que, dado o inusitado da situação, e o teor alcoólico imenso reinante nas veias dos presentes, todos levariam aquilo na direção do que aquilo era afinal – uma grande brincadeira.
Mas alguém antecipou-se, e passou a chave na porta, a única porta do casebre...
O que se seguiu foi uma prolongada sessão – desengonçada, hilária, ridícula, mas também cruel, medieval, horripilante – de espancamento. Os gritos do bom Gambá, Macunaíma gonçalense, sendo socado e golpeado com tudo que as trêmulas mãos dos bebuns alcançavam, acordaram meia vizinhança. O bitelo apanhou, e apanhou, e apanhou ainda um pouco mais. Sabe-se lá de onde aquele grupo de mamados encontrou forças para o linchamento; talvez do próprio Satã.
Desfeita a graça e também a consciência de Gambá, o corpo desmaiado foi jogado para fora, estabacando-se na rua de chão.
Sabe-se lá como Gambá chegou em sua casinha. O que se soube é que ele lá chegou já com um aviso: nunca mais deveria passar pela rua principal do Palha Seca – justamente o único caminho que ele tinha para ir trabalhar, pois andava dois quilômetros de sua casa para o ponto de ônibus, para pegar a viação que o deixava em Alcântara – sob a pena de ser, bem, literalmente despachado desta vida, como fora o pobre urubu, de tão dura –  mas saborosa, alguns depois o confessaram – carne.
Resultado: Além das amizades desfeitas, foram anos e anos andando não dois, mas (agora na direção contrária) coisa de cinco quilômetros, de sua casa até Maria Paula, onde podia pegar outra viação para levá-lo ao batente.
Amargurado por cicatrizes de corpo e alma, ferido em seu brio e espírito fraternal, Gambá, nosso Macunaíma, nunca entendeu o motivo da brutal falta de senso de humor de seus antigos companheiros de jogatina...


Sammis Reachers

terça-feira, 8 de outubro de 2019

Crônica: Os primeiros livros (e enciclopédias!) a gente nunca esquece


Se não todas as pessoas, pelo menos a maioria das que são letradas possuem uma história com o livro. Essa história pode ser breve ou longa, mono ou multilogal, mono ou polivocálica, a depender da quantidade e qualidade dos livros - entendendo qualidade não pelo redundante valor literário, mas pelo impacto que determinado livro possa ter causado naquela alma.
Em meu caso, a história começa na formatura da alfabetização (hoje Pré-Escola), ao ganhar meu primeiro livro: A Tartaruga Infeliz - fato devidamente registrado (e como lembraria?!) por uma prosaica fotografia 10x15. O título do opúsculo quelônio (quelônio é a ordem das tartarugas, jabutis e cágados) foi de mau augúrio: queimou de melancolia o futuro leitor e poetastro...
Mas, pensando bem, definir "primeiros livros" é difícil, pois havia em minha casa paterna uma quantidade deles, e sabe-se lá qual daqueles possa ter sido adquirido tendo a minha pessoa como alvo primário... Exempli gratia, tínhamos pequenas coleções com jeitinho de enciclopédia, assim, querendo, já quase sendo, mas sem ser, sabe? Uma delas era a Saber em Cores (Enciclopédia Didático Visual), de 1975, publicada pela Maltese/Melhoramentos. Belas ilustrações e informações hiper-resumidas, mas que me deram o primeiro contato com grandes nomes da Literatura, artes plásticas, além de noções de geografia e ciências. Hum, mas não sei se foi adquirida antes ou depois de meu nascimento (78).
Passemos então à minha primeira enciclopédia, minha mesmo e enciclopédia mesmo, de fato e direito. Era uma Conhecer, editada pela Abril Cultural, no longínquo 1966, contando com reedições várias. A princesa me chegou usada, como doravante a maioria de livros que me atravessaram a ânima e as manoplas. Na altura de uns 11, 12 anos, corria a brincar de pique-esconde na pequena favelinha onde meio que me "criei", na verdade uma única rua de média extensão formada por algumas casas humildes e até alguns barracos. Algumas casas ainda possuíam o quintal aberto, sem muros. A favelinha era a Beira Rio, que possuía tal nome justamente por... beirar um pequeno rio (o Anaia ou Alcântara ou outros nomes, pois a cada trecho tal rio assume um nome, enquanto percorre meio município de São Gonçalo), que o tempo transformou em valão. Na ânsia de esconder-me, entrei por um desses quintais abertos, que era composto por quatro casinhas, quando o titular do terreno, um negro simpático que trabalhava na cidade de Niterói como porteiro, dito Quiquinho, me chamou, lotado de sorrisos, e mostrou aquela maravilha. Como ele, que só me conhecia de vista na rua, adivinhara que eu era a presa certa, eu nunca soube. A tal maravilha, como eu poucas vezes (brevemente na biblioteca escolar) havia contemplado parecida, teve sobre minha curiosidade um efeito tonteante, catártico. Fascinado, desliguei-me da brincadeira e mergulhei naquele esplendor - sim, pois a Conhecer contava não com fotos, mas com ilustrações primorosas em praticamente cada uma de suas grandes páginas. "Gostou?", sorria o vendedor de ocasião. "Peça a seu pai para comprar pra você. Diga para ele vir aqui falar comigo. Como essa, há outras dez, olha ali" - e apontou-me para a estante capenga que se escorava numa parede de tijolos nus de seu casebre.
Corri para casa. Perturbei seu Mário que, entre um trago e outro de cachaça (naquela época ainda bebia), consertava na varanda dos fundos máquinas de escrever e mimeógrafos. Perturbei e perturbei, até que ele resolveu ir até lá. Era também a seu modo um amante dos livros, e comprador regular das tais coleções pretensamente enciclopédicas. Bom negociador - arte em que inutilmente tentou a vida inteira me iniciar - seu Mário sempre foi. Conversa vai, choro vem, e lá fomos nós para casa com aquela riqueza, aquela internet de papel (da qual faltou um volume), a Wikipédia possível em fins da década de 80. Nos anos seguintes, aquela enciclopédia foi devorada e sacramentou minha excursão pelo sendero luminoso das sabenças.
Minha segunda enciclopédia foi também da Editora Abril, da qual levava o nome - Enciclopédia Abril (deixe-me adiantar ao leitor entediado: foi também a última. nuca tive uma BarsaMirador ou quiçá uma rainha-dominatrix, a Britannica). A história é a  seguinte: Um dos irmãos de minha mãe, meu falecido tio Geraldo "Xereta", legendário campeão de sinuca e vencedor nos mais variados jogos de azar que o tirocínio humano já lograra engendrar, arrumou certa feita trabalho numa fábrica de papel higiênico (aquela que posteriormente ficou conhecida como Carta Fabril), perto de nossas casas, aqui em Tribobó (São Gonçalo). Pois bem, o sortudo foi cair num lugar que dali em diante passou a ser meu sonho de consumo, de insumo, de fetiche: o setor que recebia e separava papéis velhos para a reciclagem e fabricação dos higiênicos. Ali naquele lugar que a mim sempre me obriguei a chamar de paraíso, ele tinha acesso diariamente a dezenas, centenas, e nos dias malditos talvez a MILHARES de publicações que despencavam dos caminhões quase que o dia inteiro: revistas, livros, jornais etc.
Meu tio nunca fora assim um leitor: logo, sua prioridade era separar para si apenas o ouro: REVISTAS PLAYBOY, e, a título de prata, outras publicações pornográficas que davam o ar da (des)graça. Mas, ao ver certo dia uma pesada coleção despencar do caminhão, apanhou uma e gostou: era a tal Enciclopédia Abril. Resolveu guardar um dos volumes em seu armário. Assim, eu que já "consumia" as revistas que ele levava fiquei sabendo da tal enciclopédia. Imediatamente lhe implorei que a trouxesse e mais, que tentasse em nome de Aristóteles recuperar os demais exemplares, antes que virassem papel higiênico. Ele conseguiu recuperar a maioria, e foi levando de pouco em pouco para casa, pois eram muito pesados os calhamaços, num papel couché de grande gramatura. Ah, e o encarregado dos trabalhos, embora não fosse carrasco, não gostava que os funcionários se safassem com grandes volumes. Faltavam três dos doze números, mas não importava. Os textos desta enciclopédia eram escritos praticamente apenas por brasileiros, e por tratar-se como que de enciclopédia mais "séria" (leia-se adulta e mais, politicamente engajada), pude ter contato fundamental com verbetes de temas tais como Filosofia e Antropologia, que ajudaram a definir minha marcha trôpega pela já citada vereda das sabenças humanas.
Com o passar dos anos, consegui encontrar numa feira (a famosa Feira de Alcântara [SG], pejorativamente alcunhada de "RobAUTO Júnior", em referência à RobAUTO "Pai", a lendária Feira de Acari, na cidade do Rio de Janeiro) dois dos três números faltantes. E fui feliz com ela, que por sinal ainda possuo, embora nunca mais a tenha aberto depois de ser apresentado e recrutado pela internet. 
Deixemos de lado agora as obras de referência e voltemos aos livros manuais, ou melhor dito para evitar a dubiedade, portáteis, os pequenos livros de temáticas individuais. O primeiro livro desses que ganhei de meu pai, comprado num sebo, também nessa fase dos 12, 13 anos (quando já me ensaiava como um leitor de verdade), foi O Chefão, de Mário Puzzo. Bem, mas isso é tema para uma outra croniqueta...

Sammis Reachers
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