XXXX,
Itália, janeiro de 44
A noite, como a morte, é uma carta de trás para
a frente, Marília, uma carta que não se entende até que amanheça.
Marília, hoje avançamos sobre o monte xxxx. Não
adianta eu escrever nomes e datas, a censura suprimirá essas informações, que
de mais a mais pouco importam a uma menina de 17 anos numa cidade tão bonita
como Niterói.
Não sei se lhe escreverei mais cartas, se há um
amanhã com meu nome na lista ao final da fila de ração. Então, perdoe-me pela
estranheza e extensão destas linhas aqui transcritas. Foram escritas em dias
espaçados, sob influências diversas – mas todas apenas dimensões, fragmentações
de você.
E então eu agora abertamente digo que te amo,
amiga. Amo-te mais que tudo em minha vida, os poemas, os sambas, o Bangu, meus
cães e a filosofia. Amo-te desde o primeiro dia que lhe vi ao lado de Michaela,
e eu que pensava amá-la, mas depois percebi que não, que nada, que tudo em
minha vida e na história de meu coração era aio e ensaio até você. Pois o
coração de toda a beleza que pulula no Universo-aqui, no espasmo-agora, é você,
Marília.
Sei da galanteria que o Marco lhe faz; sei que
seu pai, não tão secretamente quanto ele pensa, faz gosto de tê-lo como genro.
E sei também que você se agrada. Agora ele está aí ao teu lado, pois pode
ver-te todos os dias, e eu estou aqui na Velha Bota, na cega neve, na arruinada
madona que o Duce deflagrou. Nesta disputa, se disputa havia, já perdi; se eu
morrer e eu vou morrer, morrerei para que você possa ser feliz. Morrerei para
não suportar, além do próprio peso da vida, a impossibilidade de você.
Tinha sonhos contigo, sonhos de casamento e
roça, três crianças de quem eu, em secreto, adivinhava já os traços das faces.
Terminaria o curso de Filosofia e iria dar aulas em alguma cidade pacata do
interior do estado. Madalena ou Campos dos Goytacazes, talvez. Hoje queimo
estes sonhos no altar da Guerra.
Tenho um pedido apenas: se em algum dia de tua
vida de luz, sentiste algum afeto por mim, para além de nossa firme amizade,
lhe rogo que nomeie teu primeiro filho com o meu nome; deixa-me estar próximo à
tua lembrança enquanto você viver, pois sei que de mim a Guerra tudo requisita,
como uma noiva voraz que quer o seu prometido e todo o dote, e ela nada poupará
em seu holocausto.
Sei que falo coisas tristes e confusas demais e
adultas demais para teu coraçãozinho principesco, mas preciso comunicar a
alguém esta minha calma angústia, e é a você que comunico, pois você é mais que
a pessoa que amo, é o próprio Universo onde habito, minha deusa lar,
particular.
Na última carta você referiu lembrar-se de
minha expressão antes da Declaração de Guerra, da forma como eu, durante as
lições que lhe dava em sua casa, segurava o mapa da Europa nas mãos e quedava
absorto por minutos silenciosos, ‘como se eu soubesse’. Marília, a História é
um pano roto onde uma bruxa de candomblé lança búzios, búzios que dão sempre o
mesmo resultado. Desde a invasão da Rússia, eu já sabia que o Brasil
ingressaria na Guerra, eu sabia que haveria uma convocatória. Eu já treinava
disparos, eu já sabia para onde fugir de ti, eu já sabia onde finalmente
encontrá-la para sempre.
Escrevo este trecho de xxx. Mas todas as
cidades por onde passei, Nápoles e Modena e Livorno, chamam-se você, todas as
cidades da terra e do sol nomeiam-se secretamente Marília.
Aqui abraço a morte como se abraçasse você,
menina. Nomeio a imperatriz-meretriz Morte com teu nome epifânico, e ela ganha
ternura e sonho, cresce em intimidade sem perder a realeza. Vida ou Morte,
Destino ou Acaso, como um grande Brahman dos hindus, escolhi ter você em tudo e
como tudo, e que tudo a seja, foi a forma que encontrei para não perdê-la.
Nesta neve de menos 2 graus, lembro-me de nosso
passeio na praia de Icaraí, sob o poder do carro de Hórus, o Sol que existe
apenas para lhe dar um pedestal, Marília... Minha amiga, minha irmã, naquele
dia, quando paramos em frente à Pedra do Índio e imprudentemente segurei a tua
mão, não foi senão por amor!, amor que requereu-me um resgate, resgate cujo
objeto é esta guerra e talvez a minha vida. Seja; amei-te e amo-te, e o Fuhrer
ou a ciumenta Morte não hão de abalar isto, macular este mármore; ainda que
implodam todos os mármores e monumentos da Itália, ainda que despedacem o céu
em meu encalço e desçam comigo ao Sheol.
Aqui combatemos com fuzis M1 Garand americanos.
Paralisados em nosso avanço, numa missão que a censura não permite nomear,
peguei minha faca e com sua lâmina virgem risquei na coronha de meu fuzil o seu
nome. E passaram a ter mais paixão e alcance os meus disparos. E se algum dia
este fuzil passar a outras mãos, aquele que o empunhar saberá que há uma
Marília no mundo, e há ou houve alguém que a amou – e isso é um rascunho de
eternidade. Mesmo que eu morra um fuzil chamado Marília combaterá para livrar o
país de Marília, a cidade de Marília e o coração de Marília.
Enfurnado no fundo de uma trincheira não há
muito em que pensar. Amanhã, quando for matar tedescos (na carta de dezembro já
lhe expliquei que aqui, por influência dos italianos, nós chamamos os alemães
de tedescos), penso se matarei algum descendente de Schopenhauer, Hegel ou
Kant. E será estanho assassiná-los, como ainda me espanta ter que combatê-los.
E penso em meus livros de filosofia alemã em francês, que fim terão se eu
morrer. Mamãe os queimará ou deitará fora? Diga-lhe para vendê-los no
alfarrábio do senhor turco.
Se você lesse em francês ou tivesse intenção de
aprender a língua, por certo deixaria tudo para ti. Mas não lhe apraz o
aprendizado de línguas estrangeiras, e bem faz: elas é que devem estropiar-se
para compreendê-la, ó pequena luz de tudo.
Você é o meu portentoso deus, o objeto de
eleição de minha fé, raio e circunferência da religião que criei; aquilo que
arbitrariamente sacralizo, meu lancinante talho na aorta da Realidade –
platônicanarquica faca tomando o lugar do cosmocorpo que ela mata; mas o
estranho deus dos judeus, do qual você tanto fala na última carta, talvez seja
o único que realmente exista.
Nunca voltarei. Seja feliz com o Marco.
Meu último poema. Se eu pudesse, enfeixá-lo-ia
para compor um livro, com todos os demais poemas dos quais você é a musa. Mas
você os tem: livro dentro de um livro. Pois ao fim e ao cabo, todo deus é uma
biblioteca. Mas não quero confundi-la.
Como sempre, nada como seus amados Bilac e
Oliveira, mas mais para os franceses de que lhe falei.
Adeus.
Batalha para alcançar
Marília (poema 32)
Tuas
palavras caíam no chão ribombantes
como
granadas de sândalo:
eu
avançava nu como quem sonha
Teus
olhos congelavam o entorno, deusa:
moscas,
sonhos, oxigênio
tudo
era teu
ó
mínimo-coração-do-mundo
A
metralha tedesca cantarolava
mas
seus atiradores e balas eram sombras
apresadas
e impotentes na caverna platônica
Pois
tu(a) é a Guerra, Minerva:
Tua
boca era a bandeira a capturar, Marília, Valkíria,
como
a piscina de hidromel sita no coração de Valhala
samadhi
nirvana aniquilação íris de cada um
dos
mil olhos de Brahman
Sammis Reachers
Do livro Poemas da Guerra de Inverno, segunda edição
Profundamente belo!
ResponderExcluirMuito especial esse texto! Obrigada por me mostrá-lo. Ao mesmo tempo que é sombrio e doloroso é tão excepcionalmente simples e belo.
ResponderExcluirDolorosamente encantador!
ResponderExcluirObrigado, meus amigos!
ResponderExcluirEmocionante! A dor e o amor produzem, qdo combinados, imensa beleza!
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