Ao
defrontar o amontoado de gentes naquela Copacabana espavorida, a atenção era
roubada de chofre pela faixa que encabeçava a passeata, faixa segurada pelo DJ
Grillozzilla e pela multisexuada instatriz, DandaXXXara: “Dize a tua palavra e
segue o teu caminho. E deixa que a roam até o osso”, creditada na faixa ao
filósofo espanhol Ortega y Gasset. Na verdade, a frase é de Unamuno, o Miguel,
outro filósofo espanhol. Equívoco que, sem infundir demérito, meio que
chancelava e vestia os revoltosos.
Chamaram
seu movimento simplesmente de A Marcha do C@nsaço ou, termo adotado
pelos opressores midiáticos, O Movimento dos Macetados (“?”), e ele
assim há de entrar para a história. O motim, que contou com ampla anunciação
midiática (que outra?), encaçapou todo tipo de guapo, duma barafunda de
díspares pensares, digno deste fim de Pós-modernidade e início de Idade Índigo.
A
ideia central, o eixo da grande hélice que uniu pessoas, roedores e
contestadores de várias gerações, é o cansaço em relação à torrente de
informação disponível por cada vez mais meios, gadgets e cibertranqueiras.
A
um filósofo marroquino, Farkour Bibi, anjo decolonial que escreve em perfeito
francês, coube o papel de teórico involuntário do novo movimento, ao propor, em
seu filosófico Imanifesto Logofrênico, cujo estilo de pacata ou delicada
insubmissão lembra o de Thoureau, um alheamento proposital em relação à toda
forma de informação mediada, seja essa mediação realizada por livros, internet
etc. E da aceitação apenas do que “o outro”, o ao lado, o vizinho, a mãe, o
companheiro proletário, o “usuário de uma mesma territorialidade”, pode
ensinar, “olho-no-olho”, o autor avança para a celebração da ignorância, o
“prazer de não saber”. A celebração anti-socrática radical, a ignorância como
construto positivo.
A
música-tema do grupo ou levante foi a inescapável Silício Silenciado (do
último álbum de Caetano Veloso, Teimosa Poesia, de 2027). O
bumba-que-bumba martelava os ares, marcando o ritmo do pisoteio.
Sim,
voltemos aos fatos. Os marchadores, iniciando seu trotar pela Avenida
Atlântica, estabeleceram uma inovação significativa: A marcha foi realizada com
as pessoas andando para trás, ou de costas. Para evitar tombos entre os
pouco afeitos a tal avanço inatural, foram cedidas bengalas de acrílico para
apoiar os cansados do saber tão fácil.
Um
grupo de festin’lésbicas, oriundas de uma pequena facção (das 82) PCdeBista celebrou
outra manobra de catarse, efetuando o despir de suas roupas, uma peça a cada
cem passos dados por cada uma de suas membras, membras empoderadas e
desmembradas de seu movimento – e agora enxertadas, feito próteses, naquele contra-zeitgeist
informacional.
Nas
proximidades do Forte de Copacabana, limite entre a Av. Atlântica e a Rua
Francisco Otaviano, a primeira culminância: fizeram aquilo o inevitável, qual
seja, a QUEIMA DE LIVROS. E no entorno da grande fogueira logolibertária,
grupos esparsos realizavam o já tradicional gadcrash: a quebra de gadgets,
de smartphones a óculos de realidade aumentada, de Nintendos NeoSwitch
a prosaicos Vibradores Poéticos, as maquininhas de consolar
inconsoláveis que, além do usual ofício, recitam poemas em oitocentas línguas,
ponta-de-lança das exportações cambojanas.
O
avanço seguiu para o bairro lindeiro de Ipanema, em que a alegoria final seria
encenada: a invasão do data center do Google situado na Rua Farme
de Amoedo, e a destruição dos mainframes e servidores que, dali,
garantiam o acesso ao virtual a quase todo o país. Na porta, novo pandemônio:
um dos muitos movimentos que acompanhavam a marcha, o controverso coletivo
Afrobrancos, composto de brancos que se reconhecem e se exigem como africanos
d’alma, foi alvo de laranjadas e ovadas de alguns dos manifestantes, ojerizados
pelas propostas e ideias do grupo, tido por desconstrucionista e diluidor
das pautas de direito dos que têm seu lugar de fala.
No
entrevero, uma malta inesperada assumiu a proa do debate sobre o tal estreito e
mítico lugar de fala, e em defesa dos afrobrancos (alguns dos quais eram
seus pais, afinal): um grupo de therians, os humanos que se afirmam
pertencer a outra espécie, neste caso cachorros, marchando e debatendo de
quatro, desferiu um motim-no-motim ao afirmar que as ruas eram
prioritariamente o seu lugar de fala – e as urinadas nos postes o
confirmariam – transe ou transporte de um conceito do metafórico para o
concreto que desnorteou alguns teóricos que marchavam no evento – um deles,
renomado reitor da PUC que, ainda fedendo a livro queimado, viu ali o
nascimento em tema de seu mais novo livro.
Nesse
pandemônio, prestes a arrombar as portas da infofortaleza globalista, os já
cansados revoltosos tombaram sarrados & surrados por grossos jatos d’água
gelada & apimentada, emanados de veículos automáticos. Eram drones
blindados do conglomerado BYD-Tesla-Carbon a serviço do grande infocapital,
providencialmente enviados pela governadora do Estado. Enxarcada e debelada, a
multidão, senhora de algumas razões e diversos equívocos, dispersou-se, cada
qual encapsulado de volta à sua micro, nanorevolta, tentando recordar o caminho
de casa ou sua necessidade.
Sammis Reachers
Publicado originalmente na Revista Bulunga 37 (jan/2025).
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