Foi numa sexta-feira carregada.
Do outro lado da porta giratória girei e estaquei,
Fuças langues no vidro temperado, dando uma boa manjada
No guarda daquele banco que me negou o consignado.
Bati um pouco de boca lá com o gerente, tudo bem,
Cliente há doze anos!, O guarda me pegou
E conduziu para fora, embalado nos trapos da
truculência.
Balouçando sob uma mangueira imaginária (praça de meus
dias ruins),
De sólido abismo abaixo, olhei aquele meu próximo
Com os olhos de Caim, e pequei. Pequei
Ao aventar uma minha antiga imaginação ou tirocínio,
Fetiche com que diminuo os homens até o ponto de equilíbrio.
Aquele guarda sangra. Quase tão bem quanto o gerente,
ou dá empate. São homens, afinal. E no início também. Não que eu vá fazer nada,
que quando o medo não me impede a fé me manieta. E minha mãe me pariu pra
civil, e educou com esmero de matuta mineira.
Mas eles têm toda a cara, aquela cara bolachuda, de
que sangram.
Os oito marginais que tomaram teu bairro
(Tudo bem, sempre foi deles, estavam por aí,
Potências negativas na bolsa escrotal de seus pais,
moradores de bem)
Trastes que vão do miliciano ao traficante
Passando pelo sociólogo e o ladrão de bicicletas
Todos sangram.
Donald Trump, os ninjas, o carteiro e o Papa
Francisco, coitado, prestes a morrer
Sangram sangram sangram e sangram, dançarinos
vermelhos,
Carnes doces feito a minha e a tua, essas
esponjas-de-furar.
O grande professor de jiu-jitsu de teu filho (o herói
dele não é você?)
O policial marrudo teu vizinho de carros alemães na
garagem armas austríacas no armário
As gordas faladoras ou anoxéricas botoxicômanas que
armam
Barraco no ônibus Caxias-Central ou no voo da Emirates
Elas e os demais eleitores que confiam na sorte, no
gênero, na dura e etérea (mas exangue) lei
Sangram, santas, safadas, safades
Rubras como o cara mais valente na pancadaria
Que já vi, num baile funk em 1997 onde entrei de
penetra,
Passarinho aloprado por morcegos:
Ele abriu uma clareira no meio de oito, e lhes ensinou
Lá uma boa lição. Oito. Mas ele sangrava, e ele
sangrou.
Saio pelas ruas
contentado-emporcalhado nesta sombria certeza, olhando dissimulado nos olhos do
ditador, do ministro, do ladrão, do fiscal de posturas e até, quando ele não
está olhando de volta, do miliciano e suposto assassino serial que é segurança
lá na padaria do Jofre, e que passa os dias sentado, bebericando café e
encarando os homens com um baita de um olhar mortiço:
Todos sangram, e sem cura. Todos têm uma carne macia
Da tessitura exata da minha.
Sei que sou uma besta palraz, mas esse tipo de
pensamento
Tem dias meio que me desembesta, me alavanca.
Também me causa aos domingos engulhos, vergonha desse
meu pecado grosseiro,
Ou um enjoo adocicado, déjà vu do que nunca vi
(Podridão que meus genes regurgitam?),
Quando adentro o açougue do Mauro
Eu precisava contar isso
no papel, e me livrar de alguns quilos de sua cangalha, jogá-la um pouco em
outras costas feito a tua, meu virtuoso leitor. Compartilhar miséria é terapia,
e eu só tenho dinheiro pra papel. E no fundo no fundo, abaixo do tapete das
ações e reações e das cláusulas do contrato social, todos sabemos de nossa
blandícia.
Viva em paz, mas saiba que toda guerra
É feita por gente macia.
Gente macia
É a única gente que existe.
* * * *
Do livro Primeiressências (2025).
Disponível para download gratuito, AQUI.
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