terça-feira, 17 de outubro de 2023

Seis poemas de Ana Martins Marques

 


RELÓGIO

 

De que nos serviria

um relógio?

se lavamos as roupas brancas:

é dia

as roupas escuras:

é noite

se partes com a faca uma laranja

em duas:

dia

se abres com os dedos um figo

maduro:

noite

se derramamos água:

dia

se entornamos vinho:

noite

quando ouvimos o alarme da torradeira

ou a chaleira como um pequeno animal

que tentasse cantar:

dia

quando abrimos certos livros lentos

e os mantemos acesos

à custa de álcool, cigarros, silêncio:

noite

se adoçamos o chá:

dia

se não o adoçamos:

noite

se varremos a casa ou a enceramos:

dia

se nela passamos panos úmidos:

noite

se temos enxaquecas, eczemas, alergias:

dia

se temos febre, cólicas, inflamações:

noite

aspirinas, raio-x, exame de urina:

dia

ataduras, compressas, unguentos:

noite

se esquento em banho-maria o mel que cristalizou

ou uso limões para limpar os vidros:

dia

se depois de comer maçãs

guardo por capricho o papel roxo escuro:

noite

se bato claras em neve:

dia

se cozinho beterrabas grandes:

noite

se escrevemos a lápis em papel pautado:

dia

se dobramos as folhas ou as amassamos:

noite

(extensões e cimos:

dia

camadas e dobras:

noite)

se esqueces no forno um bolo

amarelo:

dia

se deixas a água fervendo

sozinha:

noite

se pela janela o mar está quieto

lerdo e engordurado

como uma poça de óleo:

dia

se está raivoso

espumando

como um cachorro hidrófobo:

noite

se um pinguim chega a Ipanema

e deitando-se na areia quente sente ferver

seu coração gelado:

dia

se uma baleia encalha na maré baixa

e morre pesada, escura,

como numa ópera, cantando:

noite

se desabotoas lentamente

tua camisa branca:

dia

se nos despimos com ânsia

criando em torno de nós um ardente círculo de panos:

noite

se um besouro verde brilhante bate repetidamente

contra o vidro:

dia

se uma abelha ronda a sala

desorientada pelo sexo:

noite

de que nos serviria

um relógio?



5 poemas da série “Cartografias”

 

E então você chegou

como quem deixa cair

sobre um mapa

esquecido aberto sobre a mesa

um pouco de café uma gota de mel

cinzas de cigarro

preenchendo

por descuido

um qualquer lugar até então

deserto


*


Você fez questão

de dobrar o mapa

de modo que nossas cidades

distantes uma da outra

exatos 1.720 km

fizessem subitamente

fronteira


*


Combinamos por fim de nos encontrar

na esquina das nossas ruas

que não se cruzam


*


Não sei viajar não tenho disposição não tenho coragem

mas posso esquecer uma laranja sobre o México

desenhar um veleiro sobre a Índia

pintar as ilhas de Cabo Verde uma a uma

como se fossem unhas

duplicar a África com um espelho

criar sobre o Atlântico um círculo de água

pousando sobre ele meu copo de cerveja

circunscrever a Islândia com meu anel de noivado

ou ocultar o Sri Lanka depositando sobre ele

uma moeda média

visitar os nomes das cidades

levar o mundo a passeio

por ruas conhecidas

abrir o mapa numa esquina, como se o consultasse

apenas para que tome

algum sol


*


Quando enfim

fechássemos o mapa

o mundo se dobraria sobre si mesmo

e o meio-dia

recostado sobre a meia-noite

iluminaria os lugares

mais secretos


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...