De longe o mais simpático e afável dentre nós. Sua passagem
foi um baque, um estorvo em nossas lides.
No funeral, um de nós lembrou-se de seu projeto, leit motiv final de sua passionalidade,
seu “Projeto Melquisedeque”: a cada dia do ano ele se propusera publicar nas
redes uma lenda, uma lenda que remetesse a algo da revelação judaico-cristã que
supostamente jazia “perdida” na cosmovisão de cada povo - de algum povo dos 12
mil que o mundo habitam. Só mesmo um antropólogo. Só mesmo um missionário... Tudo
estava em seus arquivos, ou melhor, “na nuvem”, como ele dizia. E era bonito
olhar o celular pela manhã e ver aquilo, enquanto ia para o trabalho. Pequenos
relatos que refundavam sentido em
minha vida marásmica, miasmática, miserável.
Anos de pesquisa.
Faltavam três meses para a quebra calendária, a passagem do
ano. Deste ano mau. Noventa textos, provas, indícios. Agora órfãos. Precisamos
retomar seu projeto. Ele merece, disse Dario. Nós outros dois abaixamos a
cabeça em concordância.
Éramos últimos, (sub?/trans?)cristãos de meia idade em
trânsito ou em luta entre o nominalismo (morte) e uma volta à fé atuante. Compartilhadores
de piadas e versículos, frivolidades e insânia. Em dias amargos e vendidos,
pornografia. Agora precisávamos descobrir sua senha. A senha de um cientista e
poeta e coligidor de bromélias. Tentamos datas importantes, depois o básico ('senha123'),
depois nomes de almas próximas. Sem recurso, ensaiamos senhas parecidas com as
nossas: w@rlord1978, catskills67, darkwatt#rs. Nada. Dias passando.
Um dia, lanchando na urbe cinza quente, exausto do inferno que
são os outros, vi uma flor cair de uma árvore do calçamento. Rodopiou lenta,
alheia, acima do simulacro cinza. Lembrei de meu amigo e sua alma lenta e flor.
No escritório branco gelo confirmei o intuído lá no cinza: "primavera" era a senha do homem melhor que nós.
No escritório branco gelo confirmei o intuído lá no cinza: "primavera" era a senha do homem melhor que nós.
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Esse conto bem poderia integrar, pela temática de "amigo morto", minha coletânea de contos O Pequeno Livro dos Mortos (2015). Mas confesso que não sei se tal conto já existia ou se é posterior; encontrei-o por acaso, há algum tempo em meus arquivos, e hoje o recauchutei (pobre literatura!) e o publico.
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