Jesus e a Música das
Esferas
Éramos apenas eu, João e André, com Ele na
face norte do monte Shir, defronte ao mar da Galileia. Os demais companheiros
permaneceram em Tiberíades, em casa de Zebulom, colaborador judeu egresso do
Ponto.
Sobre o pico do monte, sendo fustigados por
fortes ventos, Jesus convidou-nos a sentar. A seguir, abrindo o seu alforje,
retirou uma flauta. De minha parte jamais a vira; quedei, como os demais, em
abnegado e atônito silêncio. Levou o Rabi a flauta à boca; antes do toque entre
lábio e madeira, julguei ter visto um sutil sorriso, que Ele só liberava quando
prestes a externar esplendor.
Quando a música, robusta, estabeleceu-se
pelo ar, o ventou apertou. O mar lá embaixo encrespou-se, ondas passaram a
estrugir contra as rochas, levantando uma fresca nuvem de gotículas que
sobrescalavam até o alto da montanha, borrifando nossas faces. Permanecíamos
sentados, enquanto Deus-andarilho tocava sua flauta.
Houve um hiato na melodia; mas breve o
Senhor retomou a música, agora suave e terna. O mar como que silenciou,
enquanto multidões de aves marinhas passaram a sobrevoar o mirante em que
estávamos, realizando sua marcha perfeita, como as Legiões de César. Absortos,
éramos enlevados por seu baile, e curados pela música.
André sorria maravilhado, tornado à
infância pelo deslumbre. João conservava a expressão grave, o susto seco de
quem faceara o abismo e a impossibilidade. Aproximou-se ainda mais do Senhor,
como sempre fazia em momentos como este. Quando Ele novamente pausou a música,
perguntou-lhe:
— Mestre, é maravilhosa a melodia, e jamais
ouvimos nada assim. Sequer já o vimos tocar; por que nos ocultou tal cousa? O
Senhor poderia tocá-la para que os demais discípulos, ou mesmo todas as pessoas
a ouçam? Dariam nisso mais glórias a Deus!
O
Mestre, que por João nutria perfeita ternura, sorriu.
— Todo aquele que quiser pode ouvi-la,
João; desde que criei esta Terra, a melodia jamais cessou de tocar. Ela respira
quando tu respiras, e firma o chão sob teus pés, quando caminhas; ela dá
crescimento às plantas e move as esferas. A tudo une e anima; leva a traz
minhas ordenanças. Ela é minha Palavra criadora ininterrupta, que existe e
subsiste em forma de música. Quando é preciso, como agora, ela recrudesce à
forma de palavra de homem, assim como eu próprio esvaziei-me até a forma de
filho do homem. Aguce teus ouvidos, ó menor de meus irmãos: Não pode ouvi-la?
João silenciou, sustentando seu olhar de
assombro, agora o dirigindo, inquiridor, para a paisagem.
— E você, Mateus, pode ouvi-la?
Deitei-me sobre a rocha; fechei os olhos,
como quem se estende sobre a fruição, o devir. Não sentia, como João ou como quem
é ferido por um aguilhão, tolhido por cadeias, necessidade de racionalizar.
Aleijado na humildade de minha condição de pó, nada respondi ao Mestre - mas
num repente o silêncio atmosférico, o próprio silêncio cósmico pareceu ganhar
cores em meus ouvidos, numa vibração surda que ia preenchendo dimensões que eu
sequer intuíra existir, e como que a tudo completava, ligando, ponto a ponto, a
todas as coisas.
Cerrando com ainda mais força os olhos inundados,
sorri.
Nota ao leitor desavisado: Caro leitor, claro está que a situação aqui relatada
jamais aconteceu, sendo uma perfeita ficção. Tão ficção que o palco onde
transcorre a ação, um monte Shir (do hebraico, música), jamais existiu.
Sammis Reachers
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