domingo, 14 de junho de 2015

A RESPIGADORA NUM POEMA DO VELHO TESTAMENTO

     
 

Ao contrário do que escreve o poeta John Keats (1795-1821), na célebre Ode a
um Rouxinol sobre Rute, atribuindo-lhe um coração triste “quando recordava o
seu lar e chorava diante das searas dum país estrangeiro”,  a verdade é que
esse pathos nostálgico da saudade se transformou em ânimo para aceitar a
vida nova em terra estranha e um trabalho humilde que, aparentemente, a
secundarizava.

No livro bíblico de Rute, canonicamente colocado entre Juízes e os I e II livros
de Samuel, o profeta que poderia ter sido rei numa teocracia, a diegese é um
relato que tem a força da emocionalidade e do profético, da beleza dos
 sentimentos à necessiadade da afirmação messiânica no meio de um povo
 israelita,   governado por Deus através de juízes, que o próprio Senhor suscitou ( Juízes, 2,16)
 Em síntese, escreve um comentarista da Bíblia Sagrada JFA, da Editora Vida
 Nova, “O livro de Rute descreve a direcção providencial de Deus na vida de
 uma família israelita.”

Tal narrativa de vida não deixa de ter a poética – no sentido aristotélico que
 determina que sentimos deleite perante o que lemos - a valorizar os
 acontecimentos e a conferir-lhe uma estética que é o Belo na vida de Rute e o
 que esta representa na genealogia do rei teocrático David, cuja linhagem vai
 até Jesus.

OS VERSOS DA ODE DE JOHN KEATS

A celebrada Ode tão cheia de melancolia do canto do rouxinol, que o poeta
 romântico inglês escreveu em 1820,  traduz uma visão da vida humana
transitória não isenta de sofrimento e de amargura, em contraste com o alegre
 e despreocupado canto do rouxinol.
 Esse  canto “pleno e calmo” da ave de Keats, no espaço textual da ode,
 aparece com uma equiparação, que o embeleza pelo oposto,  entre a tristeza
 do poeta perante a velhice, a mortalidade, o desejo de voar para fora do mundo
 e a imaginada tristeza que o poeta inglês pensa ver no semblante e na alma de
 Rute. Ele supõe que esta mulher da Bíblia, ao encontrar-se perante uma gente
 e uma terra estranhas, sofre da melancolia da saudade.

Os versos, repetindo-os, são os seguintes: “O espírito triste de Ruth, quando
 recordava o seu lar / e chorava diante das searas dum país estrangeiro.”
 (“Poesia Romântica Inglesa (Byron,Shelley,Keats)”, Inova, 1977, pág.88)
 A expressão da natural tristeza e saudade que acompanha quem sai da sua
 terra para outra estranha, no caso de Rute, não é contudo mostrada como tal
 nas Belas-Artes do Clássico e do Barroco. Por exemplo nas telas a óleo de
 Nicolas Poussin (1664) e de Barent Fabricius (1660), ambas revelando o
 encontro feliz entre Boaz e Rute.

O DEVASTADOR CAPÍTULO 1 DO LIVRO

O que se iniciou como  tragédia, não era senão o começo do Plano divino.A
 partir de um simples e pequeno núcleo familiar,  sem importância social aos
 olhos humanos, Deus iria agir universalmente na História.
 É, literariamente, uma saga familiar cuja narrativa se exprime num estilo
 poético, dolorosamente poético, apontando de igual modo para uma história de
 idealidade e de nobreza de carácter.
 “Não me instes para que te deixe, e me afaste de ao pé de ti; porque aonde
 quer que tu fores irei eu”( 1,16).
 A dialogia (a estrutura de diálogo) que se percebe  nesta resposta de Rute à
 sua sogra Noemi, desenvolve-se com qualidade visivelmente de poesia:  “ e
 onde quer que pousares à noite ali pousarei eu”; como a própria menção do
 estado converso de Rute ao Deus de Israel, é feita numa frase lapidar,
 metacultural, metahistórica, numa expressividade idiomática antiga: “o teu povo
 é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus”.

A narrativa descritiva da chegada de Noemi e Rute a Belém é em si mesma um
quadro em que a fraternidade, a alegria do reencontro fraterno resolve o
 problema da saudade que estaria nos olhos interiores dos familiares e vizinhos,
 que agora eclodia em alegria comovida: “ entrando elas em Belém, toda a
 cidade se comoveu por causa delas, e diziam: Não é esta Noemi?”, (1,19)
 Noemi, que é ainda a figura central da diegese, ciente do drama que vivera,
 usa uma metáfora entre a imaginação e a realidade, ao declarar: “Não me
 chameis Noemi (i.é. agradável); chamai-me Mara; porque grande amargura me
 tem dado o Todo-poderoso”, (1,20)
 
A CENTRALIDADE DE UMA PERSONAGEM REAL

O facto de se considerar um livro canónico, integrando as Sagradas Escrituras
 veterotestamentárias, de ser mesmo um livro da liturgia judaica durante a festa
 do Pentecostes, tal não invalida que possa ser tratado como uma das mais
 belas peças literárias da Bíblia Sagrada.
 Assim, Rute é uma heroína em consequência da tragédia inicial que reverte em
 beleza e bênção.

Rute diante do que parece ser uma adversidade, adopta, pragmaticamente,
um modo de sobrevivência que só pode ser o sentimento e o bálsamo de Deus
a trabalhar no seu espírito.
No nosso século, com os instrumentos de análise do texto literário, lemos as
expressões do pensamento do puro amor -.ágape,  / sem sexismo ou
machismo prevalecente, uma antecipação  do romantismo, como um valor
imortal  no remotíssimo século XIII a.C.
Deixa-me colher espigas” disse Rute a Boaz. Este responde:”Não ouves filha
minha? Não vás colher a outro campo, nem tão pouco passes daqui.(…)Os
teus olhos estarão atentos no campo que segarem(…), não dei ordem aos
moços, que te não toquem? Tendo tu sede, vai aos vasos, e bebe do que os
moços tirarem” ( 2, 8-9)
Então ela caiu sobre o seu rosto, e se inclinou à terra” (2,10). Baixou os olhos,
por certo ruborizada. É poesia porque tem estrutura de verso e é simbólico de
uma atitude de respeito bem oriental. “Por que achei graça aos teus olhos”. Por
seu lado, é um expressivo exemplo de lirismo que embeleza a humildade, não
a subserviência.  Um dos grandes poetas evangélicos clássicos brasileiros,
Jonathas Braga, escreve em “O Milagre do Amor” (poema longo sobre o livro
de Rute, de 1969): “Quem é essa criatura angelical que cisma / e a luz do seu
olhar sobre outro olhar abisma?”
Assim é o Livro bíblico de Rute: um quadro luminoso da gratidão, do apego aos
mais velhos e do amor com A maiúsculo. 
                                                                                         © João Tomaz Parreira
                                                                                                                                                           








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