por Júnior
Fernandes[2]
Se este mundo fosse isento de miséria e de dor,
tornar-se-iam [os homens] a presa do tédio, e na medida que pudessem fugir a
este mal, recairiam nas misérias, nos tormentos, nos sofrimentos.
Shopenhauer, Dores do mundo [3]
Poderão alguns pensar pelo título desse
fragmento que estarei a discorrer sobre uma peça de autoajuda ou que essas migalhas
são pílulas panaceicas para anestesiar a dor do homem jogado e perdido no
abismo do vazio do mundo. Não é este o caso. Queremos, apenas, tão-somente,
apreciar algumas das belas passagens e exemplos que a filosofia nos dá como
consolação para o homem melancólico dos tempos hodiernos, preocupado mais com
suas vantagens e o instante de sua satisfação pessoal.
Comecemos,
então, por um fato ocorrido com o filósofo Zenão de Cicio (335-264 a.C.).
Narra-nos Diógenes Laécio em Vida, Doutrinas e Sentenças dos Filósofos
Ilustres que, quando foi a Zenão anunciado o naufrágio no qual tudo que
possuía fora tragado pelo mar, teria dito: “a fortuna quer que eu filosofe sem
nenhum embaraço”. A história da Filosofia dá-nos conta que Zenão depois do
incidente e agora pobre, fundou o Estoicismo (gr.: Stoa), corrente
filosófica que tinha como fórmula “suporta e renuncia” (sustine et abstine).
De igual modo, consola-te, pois, com o
que não pode ser mudado, nem modificado.
Outro
personagem que nos traz uma consolação é Diógenes de Sinope (413-323 a.C.), o
Cínico; este viveu uma vida de disciplina e aversão aos prazeres mundanos. Em
seu tempo foi um zombador social; viveu isolado e resignadamente sem casa e dinheiro,
portanto pobre e sem teto. Seus bens mais valiosos eram o tonel onde morava, um
alforje e sua lanterna, usada para “procurar um homem no mundo”. Sabe-se que quando Alexandre, o grande, ao se
encontrar com Diógenes na ocasião de seu banho de sol, teria dito o imperador
ao filósofo: “Não sabes quem sou?” Ao ser ignorado, Alexandre emendou: “Sou
Alexandre, o grande. Pede-me, agora, o que queres”. Diógenes respondeu: “Devolva o meu sol”.
Por fim murmurou o imperador: “Se eu não fosse Alexandre, queria ser
Diógenes”. Assim – qual Diógenes – consola-te, pois, com o teu sol.
Pode
o leitor, precipitadamente, depois de ter lido até aqui, formular a conclusão
de que queremos induzi-lo a apegar-se a um modus vivendi asceta ou
estóico. Não é este o fim que nos move. Seria de nossa parte impossível esta
pretensão. Esta impossibilidade é confirmada, com efeito, nos indícios do mundo
em que vivemos, cada vez mais utilitarista e, conseqüentemente, consumista.
Em
vista disso, acertadamente, Aldous Huxley, bem traduziu – já em sua época – esta
indisposição do homem para com valores perenes ao perceber sua preocupação
apenas com o imediato, por isso bem descreveu as aspirações deste homem moderno:
“Dê-me televisão e hambúrguer e não me venha com sermões sobre liberdade e
responsabilidade”[4].
Dessa maneira, Huxley sintetiza e anuncia como seria o admirável mundo novo, no
qual o homem é vítima de seus próprios desejos. Diante disso, consola-te, pois,
com os valores imateriais e perenes.
A
busca incontrolável pela diversão a qualquer preço, isto é, pelos prazeres
sensuais, encaminham o ser humano a viver esteticamente, como um arquétipo de
Don Juan desses novos tempos.
Assim,
nesse viver mergulhado apenas nas questões que lhe oferecem prazer, o homem
vive, conforme Kierkegaard, o instante. Vale, tão-somente, o estágio
estético da existência, que o move incessantemente na busca do prazer pelo
prazer. Depois, quando tudo se esvai e, portanto, acaba, ei-lo então
depressivo, melancólico e vazio. Surge aí o desespero, pois o instante é fugaz e quando se vai deixa
apenas um buraco e estrago no ser do homem. “Deserto e vazio. Deserto e vazio.
E as trevas à beira do abismo”[5];
assim, com palavras do poeta T. S Eliot, assinalamos este momento. Consola-te,
pois, com aquilo que não te consuma e nem leve ao desespero.
Continuemos.
Com Sócrates – o filósofo das ruas – surge a recomendação para o ato de
refletir, isto é, filosofar. Diz ele: “uma vida sem reflexão não merece ser
vivida”. Da mesma maneira, Sêneca (4 a.C.? – 65 d. C.), endossa a importância do
ato reflexivo: “Vou dizer-te, então, o que me reconfortou; mas antes quero
dizer-te que essas coisas em que encontro alento tiveram para mim a eficácia de
um remédio; os bons auxílios transformaram-se em remédios, e qualquer coisa que
eleve a alma aproveita também ao corpo. Os estudos foram minha salvação, devo
agradecer à filosofia se consegui me levantar da cama, se me curei: a ela devo
a vida, mesmo que essa seja a menor dívida que tenho com ela”[6].
Qual Sêneca e Sócrates, consola-te, pois, com o pensar e o refletir sobre as
coisas.
Bem
verdade é que o ser humano, consumido pela velocidade da vida e o progresso
desenfreado, não tem tempo para refletir sobre a vida, isto é, pensar
filosoficamente. Virou ele prisioneiro da própria teia que teceu, assim como o
personagem principal de 1984, de George Orwell, o homem contemporâneo
(ou pós-moderno) está sendo (ou foi) reduzido “a uma mera larva de
homem, que vive uma vida desprovida de qualquer sentido”[7].
Sua existência limita-se à busca pelo sucesso e a vencer o outro. Se isto é
verdade, devemos compará-lo a Sísifo, “condenado pelos deuses a carregar, nos
Infernos, uma rocha para o alto de uma montanha, sem que esse trabalho jamais
termine, porque, ao chegar ao topo, a rocha cai de suas mãos e volta a cair no
vale”[8].
Como o personagem de Camus, o homem parece condenado a realizar um trabalho
infernal, onde a busca pelo topo e primeiro lugar do podium tiram-lhe a
liberdade e a felicidade. Consola-te, pois, em ser feliz e livre, mesmo que não
tenha chegado ao cume do sucesso.
Mas
e a felicidade? Ah, a felicidade! Todos querem tê-la como fiel companheira. Mas
isso não é possível. A condição humana indica que ser feliz é algo que depende
de como estamos e sentimos em determinado momento. Assim, se somos, por
exemplo, pegos de surpresa com a notícia da morte de alguém que amamos, mesmo
vivenciando um grande momento de alegria, tudo muda. E ainda, se não somos
capazes de se contentarmos com o que possuímos, somos infelizes por não possuir
o desejado, e isso pode gerar até um sentimento de inveja. A respeito disso,
vejamos como Madame du Chatelet tratou desse problema: “Um dos grandes segredos
da felicidade consiste em moderar nossos desejos e amar as coisas que possuímos.
[...] só somos felizes com desejos satisfeitos; portanto, só devemos
permitir-nos desejar as coisas que pudermos obter sem excesso de cuidados e
trabalhos, e este é um ponto sobre o qual muito podemos para nossa felicidade.
Amar o que possuímos, saber desfrutá-lo, saborear as vantagens de nossa
situação, não deter demasiado os olhos naqueles que nos parecem mais felizes
[...] é a isso que devemos chamar de felicidade [...] Para desfrutá-la, é
preciso curar ou prevenir uma doença de outro tipo, que se opõe totalmente a
ela e que é muito comum: a inquietação”[9].
Assim, consola-te, pois, a manter o espírito sereno, livre das inquietações e
perturbações da coisa desejada.
Contentar-se
com aquilo que está dentro de nossas possibilidades – eis o segredo do ser
feliz. Entretanto o que se vê, nesses tempos de corrida incessante contra a
morte, é a criação de uma felicidade superficial, forjada nas academias, nas vitrines
dos shopping centers, nas cirurgias plásticas etc. A velhice é um fantasma de
que todos têm medo. Por isso, ninguém mais quer envelhecer, pois isso significa
marcar encontro com a morte. Assim, a busca ilimitada pelo bem-estar material
aflige o homem de hoje.
A
felicidade artificial, portanto, substitui dia após dia a felicidade
espiritual. E por que isso aconteceu? Segundo Giovanni Reale, isso “aconteceu
porque a abundância dos bens materiais, em vez de preencher o homem, o esvaziou.
Minou e, portanto, comprometeu sua consistência e densidade moral.”[10]
Nesse
sentido Platão, em Apologia de Sócrates, registra a receita de felicidade
prescrita por seu mestre: “Estou tentando apenas convencer-vos, aos mais jovens
e mais velhos, de que não deveis preocupar-vos com os corpos, com as riquezas
ou com alguma outra coisa antes de vos preocupardes primeiramente com a alma,
de forma que se torne o melhor possível,
afirmando que a virtude não nasce das riquezas, mas da própria virtude
vêm, aos homens, as riquezas e todos os outros bens, tanto privados como
públicos”[11].
As palavras do filósofo não estão insinuando que devamos ser descuidados com o
nosso corpo, o teor delas tem conotação de que a matéria não deve prevalecer
sobre o espírito.
Por
fim, resta-nos ainda falar sobre como devemos nos consolar diante do inevitável
– a morte. Imagine, se fôssemos imortais; alguns iriam dizer que essa vida
seria um tédio, outros iriam se achar deuses, outros tentariam inventar o
suicídio etc. O certo é que iremos todos morrer: amanhã, ou depois de amanhã,
ou quem sabe hoje. A respeito disso, é digno de registro este célebre fragmento
de Schopenhauer: “[...] somos escravos do querer viver, que torna em nós a
aparência ilusória de uma vontade individual. Lutamos selvagemente uns contra
os outros para conquistar riquezas e honras que a morte logo nos arrancará.
Somos escravos do desejo, deste desejo que é sempre sofrimento – sofrimento da
necessidade enquanto não satisfeita, sofrimento do tédio quando podemos obter
tudo o que desejamos. ‘A vida oscila, como um pêndulo, do sofrimento ao tédio’.
Por outro lado a necessidade, a necessidade não cessa de renascer das cinzas e
‘a satisfação que o mundo pode dar aos nossos desejos assemelha-se à esmola
hoje dada ao mendigo e que o faz viver o bastante para estar faminto amanhã”.
Também,
conhecedores da finitude humana, os imperadores romanos colocavam escravos nas
bigas dos generais que triunfavam nas batalhas para recitarem a seguinte frase:
memento mortale est – lembra-te que és mortal; era o antídoto da
arrogância e orgulho. Noutras palavras poder-se-ia dizer como Salomão: Vanitas
vanitatum, et omnia vanitas
– vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Ou como disse Schopenhauer: “Quão longa
é noite do tempo sem limites comparada com o curto sonho da vida!”[12].
Por
fim, consola-te, pois ela há de vir. Sobre isso Montaigne diz que “não sabemos
onde a morte nos aguarda, esperemo-la em toda parte. Meditar sobre a morte é
meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer, desaprendeu a servir; nenhum
mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um
mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e constrangimento”[13].
Consola-te, pois...
BIBILIOGRAFIA
MORRA, Gianfranco. Filosofia para todos. Trad. Mário
Pagotto Marsola. São Paulo: Paulus, 2001.
REALE, Giovanni. O Saber dos antigos – terapia para os
tempos atuais. Trad. Silvana Cobucci Leite. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola,
2002.
SANTANA, Edilson. Filosofar é preciso. São Paulo: DPL
editora, 2007.
[1]
Publicado na edição nº 20 da revista impressa e no portal de Filosofia
Conhecimento Prático.
[2] Graduado
em filosofia. Advogado. Prof. de filosofia na rede pública de ensino do DF.
Autor dos livros O Sofrimento dos
Filósofos e Trevas Trovões Trovas:
escritos de uma noite escura (este, não publicado). Para citar o autor, use
a referência: PIRES JR. J. Fernandes. Migalhas
filosóficas para libertação. Disponível em: (referência ao sitio...).
Acesso em: (data do acesso).
[3] SCHOPENHAUER, Arthur. Dores do mundo, p. 127
[4] Apud. REALE, Giovanni. O Saber dos antigos – terapia para os tempos atuais, p. 12
[5] Apud
REALE, Giovanni. Ibidem, p. 7
[6] Apud,
Idem, Ibidem, p. 16
[7] Idem,
p. 9
[8]
REALE, Giovanni, Op. cit. p.
163
[9] Apud
SANTANA, Edilson. Filosofar é preciso,
(epígrafes)
[10] Op. cit,
p. 94
[11] Apud REALE, Giovanni. Ibidem, p. 7
[12] Dores do mundo, p. 128
[13] Apud MORRA, Gianfranco. Filosofia para todos, p. 81
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