terça-feira, 18 de novembro de 2014

MIGALHAS FILOSÓFICAS PARA LIBERTAÇÃO


MIGALHAS FILOSÓFICAS PARA LIBERTAÇÃO[1]

                                                                                                                                                        
por  Júnior Fernandes[2]
                           

Se este mundo fosse isento de miséria e de dor, tornar-se-iam [os homens] a presa do tédio, e na medida que pudessem fugir a este mal, recairiam nas misérias, nos tormentos, nos sofrimentos.
Shopenhauer, Dores do mundo [3]



                Poderão alguns pensar pelo título desse fragmento que estarei a discorrer sobre uma peça de autoajuda ou que essas migalhas são pílulas panaceicas para anestesiar a dor do homem jogado e perdido no abismo do vazio do mundo. Não é este o caso. Queremos, apenas, tão-somente, apreciar algumas das belas passagens e exemplos que a filosofia nos dá como consolação para o homem melancólico dos tempos hodiernos, preocupado mais com suas vantagens e o instante de sua satisfação pessoal.

            Comecemos, então, por um fato ocorrido com o filósofo Zenão de Cicio (335-264 a.C.). Narra-nos Diógenes Laécio em Vida, Doutrinas e Sentenças dos Filósofos Ilustres que, quando foi a Zenão anunciado o naufrágio no qual tudo que possuía fora tragado pelo mar, teria dito: “a fortuna quer que eu filosofe sem nenhum embaraço”. A história da Filosofia dá-nos conta que Zenão depois do incidente e agora pobre, fundou o Estoicismo (gr.: Stoa), corrente filosófica que tinha como fórmula “suporta e renuncia” (sustine et abstine).  De igual modo, consola-te, pois, com o que não pode ser mudado, nem modificado.

            Outro personagem que nos traz uma consolação é Diógenes de Sinope (413-323 a.C.), o Cínico; este viveu uma vida de disciplina e aversão aos prazeres mundanos. Em seu tempo foi um zombador social; viveu isolado e resignadamente sem casa e dinheiro, portanto pobre e sem teto. Seus bens mais valiosos eram o tonel onde morava, um alforje e sua lanterna, usada para “procurar um homem no mundo”.  Sabe-se que quando Alexandre, o grande, ao se encontrar com Diógenes na ocasião de seu banho de sol, teria dito o imperador ao filósofo: “Não sabes quem sou?” Ao ser ignorado, Alexandre emendou: “Sou Alexandre, o grande. Pede-me, agora, o que queres”.  Diógenes respondeu: “Devolva o meu sol”. Por fim murmurou o imperador: “Se eu não fosse Alexandre, queria ser Diógenes”. Assim – qual Diógenes – consola-te, pois, com o teu sol.

            Pode o leitor, precipitadamente, depois de ter lido até aqui, formular a conclusão de que queremos induzi-lo a apegar-se a um modus vivendi asceta ou estóico. Não é este o fim que nos move. Seria de nossa parte impossível esta pretensão. Esta impossibilidade é confirmada, com efeito, nos indícios do mundo em que vivemos, cada vez mais utilitarista e, conseqüentemente,  consumista.

            Em vista disso, acertadamente, Aldous Huxley, bem traduziu – já em sua época – esta indisposição do homem para com valores perenes ao perceber sua preocupação apenas com o imediato, por isso bem descreveu as aspirações deste homem moderno: “Dê-me televisão e hambúrguer e não me venha com sermões sobre liberdade e responsabilidade”[4]. Dessa maneira, Huxley sintetiza e anuncia como seria o admirável mundo novo, no qual o homem é vítima de seus próprios desejos. Diante disso, consola-te, pois, com os valores imateriais e perenes.
           
            A busca incontrolável pela diversão a qualquer preço, isto é, pelos prazeres sensuais, encaminham o ser humano a viver esteticamente, como um arquétipo de Don Juan desses novos tempos.

            Assim, nesse viver mergulhado apenas nas questões que lhe oferecem prazer, o homem vive, conforme Kierkegaard, o instante. Vale, tão-somente, o estágio estético da existência, que o move incessantemente na busca do prazer pelo prazer. Depois, quando tudo se esvai e, portanto, acaba, ei-lo então depressivo, melancólico e vazio. Surge aí o desespero,  pois o instante é fugaz e quando se vai deixa apenas um buraco e estrago no ser do homem. “Deserto e vazio. Deserto e vazio. E as trevas à beira do abismo”[5]; assim, com palavras do poeta T. S Eliot, assinalamos este momento. Consola-te, pois, com aquilo que não te consuma e nem leve ao desespero.
           
            Continuemos. Com Sócrates – o filósofo das ruas – surge a recomendação para o ato de refletir, isto é, filosofar. Diz ele: “uma vida sem reflexão não merece ser vivida”. Da mesma maneira, Sêneca (4 a.C.? – 65 d. C.), endossa a importância do ato reflexivo: “Vou dizer-te, então, o que me reconfortou; mas antes quero dizer-te que essas coisas em que encontro alento tiveram para mim a eficácia de um remédio; os bons auxílios transformaram-se em remédios, e qualquer coisa que eleve a alma aproveita também ao corpo. Os estudos foram minha salvação, devo agradecer à filosofia se consegui me levantar da cama, se me curei: a ela devo a vida, mesmo que essa seja a menor dívida que tenho com ela”[6].  Qual Sêneca e Sócrates, consola-te,  pois, com o pensar e o refletir sobre as coisas.

            Bem verdade é que o ser humano, consumido pela velocidade da vida e o progresso desenfreado, não tem tempo para refletir sobre a vida, isto é, pensar filosoficamente. Virou ele prisioneiro da própria teia que teceu, assim como o personagem principal de 1984, de George Orwell, o homem contemporâneo (ou pós-moderno) está sendo (ou foi) reduzido “a uma mera larva de homem, que vive uma vida desprovida de qualquer sentido”[7]. Sua existência limita-se à busca pelo sucesso e a vencer o outro. Se isto é verdade, devemos compará-lo a Sísifo, “condenado pelos deuses a carregar, nos Infernos, uma rocha para o alto de uma montanha, sem que esse trabalho jamais termine, porque, ao chegar ao topo, a rocha cai de suas mãos e volta a cair no vale”[8]. Como o personagem de Camus, o homem parece condenado a realizar um trabalho infernal, onde a busca pelo topo e primeiro lugar do podium tiram-lhe a liberdade e a felicidade. Consola-te, pois, em ser feliz e livre, mesmo que não tenha chegado ao cume do sucesso.

            Mas e a felicidade? Ah, a felicidade! Todos querem tê-la como fiel companheira. Mas isso não é possível. A condição humana indica que ser feliz é algo que depende de como estamos e sentimos em determinado momento. Assim, se somos, por exemplo, pegos de surpresa com a notícia da morte de alguém que amamos, mesmo vivenciando um grande momento de alegria, tudo muda. E ainda, se não somos capazes de se contentarmos com o que possuímos, somos infelizes por não possuir o desejado, e isso pode gerar até um sentimento de inveja. A respeito disso, vejamos como Madame du Chatelet tratou desse problema: “Um dos grandes segredos da felicidade consiste em moderar nossos desejos e amar as coisas que possuímos. [...] só somos felizes com desejos satisfeitos; portanto, só devemos permitir-nos desejar as coisas que pudermos obter sem excesso de cuidados e trabalhos, e este é um ponto sobre o qual muito podemos para nossa felicidade. Amar o que possuímos, saber desfrutá-lo, saborear as vantagens de nossa situação, não deter demasiado os olhos naqueles que nos parecem mais felizes [...] é a isso que devemos chamar de felicidade [...] Para desfrutá-la, é preciso curar ou prevenir uma doença de outro tipo, que se opõe totalmente a ela e que é muito comum: a inquietação”[9]. Assim, consola-te, pois, a manter o espírito sereno, livre das inquietações e perturbações da coisa desejada.

            Contentar-se com aquilo que está dentro de nossas possibilidades – eis o segredo do ser feliz. Entretanto o que se vê, nesses tempos de corrida incessante contra a morte, é a criação de uma felicidade superficial, forjada nas academias, nas vitrines dos shopping centers, nas cirurgias plásticas etc. A velhice é um fantasma de que todos têm medo. Por isso, ninguém mais quer envelhecer, pois isso significa marcar encontro com a morte. Assim, a busca ilimitada pelo bem-estar material aflige o homem de hoje.

            A felicidade artificial, portanto, substitui dia após dia a felicidade espiritual. E por que isso aconteceu? Segundo Giovanni Reale, isso “aconteceu porque a abundância dos bens materiais, em vez de preencher o homem, o esvaziou. Minou e, portanto, comprometeu sua consistência e densidade moral.”[10]

            Nesse sentido Platão, em Apologia de Sócrates, registra a receita de felicidade prescrita por seu mestre: “Estou tentando apenas convencer-vos, aos mais jovens e mais velhos, de que não deveis preocupar-vos com os corpos, com as riquezas ou com alguma outra coisa antes de vos preocupardes primeiramente com a alma, de forma que se torne o melhor possível,  afirmando que a virtude não nasce das riquezas, mas da própria virtude vêm, aos homens, as riquezas e todos os outros bens, tanto privados como públicos”[11]. As palavras do filósofo não estão insinuando que devamos ser descuidados com o nosso corpo, o teor delas tem conotação de que a matéria não deve prevalecer sobre o espírito.

            Por fim, resta-nos ainda falar sobre como devemos nos consolar diante do inevitável – a morte. Imagine, se fôssemos imortais; alguns iriam dizer que essa vida seria um tédio, outros iriam se achar deuses, outros tentariam inventar o suicídio etc. O certo é que iremos todos morrer: amanhã, ou depois de amanhã, ou quem sabe hoje. A respeito disso, é digno de registro este célebre fragmento de Schopenhauer: “[...] somos escravos do querer viver, que torna em nós a aparência ilusória de uma vontade individual. Lutamos selvagemente uns contra os outros para conquistar riquezas e honras que a morte logo nos arrancará. Somos escravos do desejo, deste desejo que é sempre sofrimento – sofrimento da necessidade enquanto não satisfeita, sofrimento do tédio quando podemos obter tudo o que desejamos. ‘A vida oscila, como um pêndulo, do sofrimento ao tédio’. Por outro lado a necessidade, a necessidade não cessa de renascer das cinzas e ‘a satisfação que o mundo pode dar aos nossos desejos assemelha-se à esmola hoje dada ao mendigo e que o faz viver o bastante para estar faminto amanhã”.

            Também, conhecedores da finitude humana, os imperadores romanos colocavam escravos nas bigas dos generais que triunfavam nas batalhas para recitarem a seguinte frase: memento mortale est – lembra-te que és mortal; era o antídoto da arrogância e orgulho. Noutras palavras poder-se-ia dizer como Salomão: Vanitas vanitatum, et omnia vanitas – vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Ou como disse Schopenhauer: “Quão longa é noite do tempo sem limites comparada com o curto sonho da vida!”[12].
           
            Por fim, consola-te, pois ela há de vir. Sobre isso Montaigne diz que “não sabemos onde a morte nos aguarda, esperemo-la em toda parte. Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer, desaprendeu a servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e constrangimento”[13].  Consola-te, pois...
  
BIBILIOGRAFIA

MORRA, Gianfranco. Filosofia para todos. Trad. Mário Pagotto Marsola. São Paulo: Paulus, 2001.
REALE, Giovanni. O Saber dos antigos – terapia para os tempos atuais. Trad. Silvana Cobucci Leite. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

SANTANA, Edilson. Filosofar é preciso. São Paulo: DPL editora, 2007.

SCHOPENHAUER, Arthur. Dores do mundo. Ediouro – (Coleção Universidade)


[1] Publicado na edição nº 20 da revista impressa e no portal de Filosofia Conhecimento Prático.
[2] Graduado em filosofia. Advogado. Prof. de filosofia na rede pública de ensino do DF. Autor dos livros O Sofrimento dos Filósofos e Trevas Trovões Trovas: escritos de uma noite escura (este, não publicado). Para citar o autor, use a referência: PIRES JR. J. Fernandes. Migalhas filosóficas para libertação. Disponível em: (referência ao sitio...). Acesso em: (data do acesso).
[3]  SCHOPENHAUER, Arthur. Dores do mundo, p. 127
[4]  Apud. REALE, Giovanni. O Saber dos antigos – terapia para os tempos atuais, p. 12
[5]  Apud REALE, Giovanni. Ibidem, p. 7
[6]  Apud, Idem, Ibidem, p. 16
[7]  Idem, p. 9 
[8]  REALE, Giovanni, Op. cit. p. 163
[9]  Apud SANTANA, Edilson. Filosofar é preciso, (epígrafes)
[10]  Op. cit, p. 94 
[11] Apud REALE, Giovanni. Ibidem, p. 7
[12] Dores do mundo, p. 128
[13] Apud MORRA, Gianfranco. Filosofia para todos, p. 81

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