segunda-feira, 23 de setembro de 2013

António Ramos Rosa (17/10/1924 — 23/09/2013)


Deixou-nos um grande, enorme, dos maiores que a Língua e a Literatura Portuguesa, e mundial, já tiveram. Poesia muito tensa, de inesperadas associações, de encantação na pura viagem das palavras, umas com as outras. Lê-lo é aprender a amar, a descobrir a surpresa que é a poesia.
Até sempre, ARR.



UMA VOZ

Quero pertencer à abóbada escura como um amante inerme

e ser o alento do silêncio sobre os ombros das nuvens.

Quero aderir à sombra das palavras da folhagem

e compreender a terra na selvagem seda do desejo.




UNE VOIX
Je veux appartenir à la voûte obscure comme uns amant désarmé

devenir le souffle du silence sur les épaules des nuages.
Je veux adhérer à l'ombre des paroles du feuillage

et comprendre la terre dans la soie farouche du désir



(trad. de Michel Chandeigne © Gallimard)





DEUS VÊ TALVEZ COM AS PÁLPEBRAS DESCIDAS



Deus vê talvez com as pálpebras descidas
e assim vê o nosso espírito como um halo ténue
ou uma sombra que estremece mas contínuamente se levanta
É ele que sustenta a nossa integridade vertical
com a sua imóvel respiração incessante

Que dificil é ser o alvo desta atenção divina
como se fôssemos apenas o aro vazio de um puro abandono
Mas é nesta entrega passiva que nós somos
mais do que órfãos de um útero materno
e nos erguemos à transparente pedra
da nossa renovada identidade

Só nesse cimo branco renascemos livres
porque nos entregamos à silenciosa respiração
do ser divino que atravessa o nosso sono
e faz resplandecer a nossa incerta ignorância


ATÉ ONDE VÓS ESTAIS

Oh, presenças amigas, ó momento 
em que alongo o braço e toco em cheio os rostos 
A minha língua abriu-se para dizer a face 
do vento que percorre as vossas vidas. 

Estou perante a noite mais profunda, 
a delicada noite das raízes: vejo rostos 
vejo os sinais e os suores das vossas vidas. 

Atravesso árvores submersas, ruas obscuras, 
poços de água verde, e vou convosco ter, 
minhas faces lívidas, mãe, amigos, amores. 

A terra que penetro é este chão de terra 
com as raízes feridas, com os ferozes pulsos, 
A vertente que desço é uma subida às vossas vidas. 


NÃO POSSO ADIAR O AMOR

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas
Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio
Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore.
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação.
Não posso adiar o coração.


ESCREVO-TE COM O FOGO E A ÁGUA

Escrevo-te com o fogo e a água. Escrevo-te
no sossego feliz das folhas e das sombras.
Escrevo-te quando o saber é sabor, quando tudo é surpresa.
Vejo o rosto escuro da terra em confins indolentes.
Estou perto e estou longe num planeta imenso e verde.

O que procuro é um coração pequeno, um animal
perfeito e suave. Um fruto repousado,
uma forma que não nasceu, um torso ensanguentado,
uma pergunta que não ouvi no inanimado,
um arabesco talvez de mágica leveza. 

Quem ignora o sulco entre a sombra e a espuma?
Apaga-se um planeta, acende-se uma árvore.
As colinas inclinam-se na embriaguez dos barcos.
O vento abriu-me os olhos, vi.


UM CORPO QUE SE AMA

Um corpo que se ama é uma nascente viva
que de cada poro irrompe irreprimivel
e toda a sua violência é a energia ardente
que gerou o universo e a fantasia dos deuses.

Tudo num corpo que se ama é adorável
na integridade viva de um mistério
na evidência assombrosa da beleza
que se nos oferece inteiramente nua.

Não há visão mais lúcida do que a do desejo
e só para ela a nudez é sagrada
como uma torrente vertiginosa ou uma oferenda solar.
Esse olhar vê-o inteiro na perfeição terrestre.










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