sábado, 30 de novembro de 2024

Rainer Maria Rilke: Duas de suas Cartas Natalinas

 


Aqui, duas das cartas natalinas que o poeta e escritor Rainer Maria Rilke anualmente enviava para sua mãe, Sophie Rilke.


Viena, iv Victorgasse 5ª,

19 de dezembro de 1915.

 

Minha querida e bondosa Mama,

Bem de perto desta vez, inclusive do solo austríaco, chegam-lhe meus votos natalinos, embora não seja muito provável que eu vá pensar tanto em você no dia 24 dessas paragens, contudo, às seis horas certamente estarei em alegre sintonia com você, conforme o velho acordo, pronto a receber o Menino Jesus no peito ardente.

Que Ele venha da mesma maneira a você, sobretudo a você, em luz e consolação, com bênçãos consagradas, querida Mama, presenteando-a com o quê?, com a fé inabalável! Pois assim como se alternam tempos e contratempos, o coração protegido e misterioso, do mesmo modo palco e ilha divina, é um reduto celeste onde pode reinar paz, esperança e bem-aventurança, mesmo se o mundo inteiro sucumbe sob o infortúnio e a destruição. Por mais que nossa natureza íntima também compadeça com os contemporâneos padecimentos da terra e ocupe-se com as imensuráveis preocupações disseminadas e espalhadas entre todos os povos e, finalmente, sinta-se ameaçada ante a decadência a todo minuto iminente e possível; apesar disso, sua vivência essencial não consiste no que se lhe atribui e concede, não é essa carência atual e futura, não é o espanto, a perturbação e o excesso, nem mesmo a ruína pessoal, porém Deus. Porém Deus é a única vivência no cerne, na unidade, na imanência de nossa natureza; onde de fato vivenciamos; tenhamos nós nada além d’Ele, meta e fim, pois o fato de Ele não consumar-se e conceber-se inteiramente dentro de nós, mas persistir como sutil vibração, isso não deve nos confundir em Sua presença. Tão poderoso é, que em face dEle nem o pior sofrimento tem poder; a simples premonição, o leve pressentimento de Sua presença supera e confia a Seu arbítrio nossa miséria e toda a mortandade desse mundo de guerra. O brilho e a bênção da noite natalina deve ser nossa admissão da inocência de Deus na imagem do Menino Jesus: ao entrar na Mãe como corpo e sangue, nascer como homem singular e digno, Deus vem intencionalmente ao mundo até nosso espírito, nos envolve, se faz presente e se encerra em nossos corações, feito a criança em sua infância extraordinária. Mas se perdemos o vínculo com o Menino Jesus e às vezes nos dissuadimos de Sua existência, fazendo com que Sua bem-aventurança se estenda a um ínfimo décimo dos homens, então, que o Menino Deus não somente se realize e se faça vivo, inundando nosso espírito, mas sempre nos faça renascer na fé, nos comova com Sua ternura, pureza e imagem de inocência.

Assim seja, querida Mama, também neste ano, a meditação comum de nossa hora natalina. Leia (como a concebo) a continuação de nossa antiga oração de Natal, introduzindo o momento sagrado, pois nela o Menino nos exorta à Sua infinita bem-aventurança e ao glorioso poder da brandura de Seu âmago. Bênçãos a mim e a você, querida Mama. Lembranças sinceras de seu velho

René.

 

 


Castelo Berg am Irchel, Cantão Zurique,

17 de dezembro de 1920.

 

Minha querida Mama,

Mais uma vez para nossa hora abençoada a cálida lembrança dos natais passados, e o meu desejo de que a partir de agora, depois de uma época tão conturbada, a cada ano lhe sejam dadas comemorações serenas, de paz e, enfim, novamente aquelas em um pequeno círculo, bastante íntimo!

Tendo expressado esse voto, então na verdade foi tudo escrito, pois o sentido deste instante não é ler, porém interiorizar-se e preparar dentro do próprio peito o presépio em homenagem à hora de júbilo mais sagrada do ano. Que do fundo do coração, com o Jesus Menino nele, possa esse presépio exprimir-se efusivamente ao mundo!

Nesta noite consagrada, querida Mama, gostaria muito de ver a recordação de toda carência, mesmo a consciência das preocupações mais primárias e a insegurança concernente à vida totalmente suspensas e de certo modo suprimidas, sob a inspiração da mais íntima certeza de que a graça divina, que não se deixa obstar por fatalidades e oscilações para Seu momento – que não é nosso! –, irradie e prevaleça com Sua suave glória sobre os problemas aparentemente insuperáveis. Durante todo o ano, não há outro momento, no qual se torna possível fazer sentir tão viva essa dádiva sempre latente e então onipresente, como na singular noite de inverno, séculos a fio, de repente preponderando e superando em valor a soma de todas as forças terrenas pelo incomparável advento da criança, que a todos transforma. Por mais que o suave verão, quando a existência parece consideravelmente mais suportável e amena, quando não precisamos nos defender da árdua hostilidade proveniente do ar e da inóspita natureza, por mais que o verão mais feliz nos ofereça mimos e consolos, o que é tudo isso em comparação com os incomensuráveis tesouros de consolação dessa noite aparentemente singela e pobre, pois ela de súbito está ali, aberta como um coração caloroso, como se tudo abrigasse!

Com as badaladas de sino que encerra, essa noite de fato corresponde à meditação da essência mais profunda! Nem mesmo todas as profecias dos tempos remotos foram suficientes para prenunciar esta noite, nenhum hino cantado em seu louvor se assemelha em paz e devoção à imagem dos pastores e reis magos ajoelhados, assim como nem nós, nenhum de nós, enquanto dura a noite milagrosa, está em condições de vangloriar-se das próprias qualidades. É tão genuíno o mistério festejado nesta noite, da adoração, do homem piamente ajoelhado: em sua natureza espiritual ele é mais grandioso que o homem erguido! O fervoroso ajoelhado, completamente humilde sobre os joelhos, é aquele que perde a noção de seu ambiente em plena introspecção, e não saberia dizer o que é grande ou pequeno. Embora em sua inclinação mal tenha a altura de uma criança, mesmo assim ele, o pio de joelhos, não pode ser chamado de pequeno. Com ele desloca-se a escala, pois, na medida em que acompanha a potência e a virtude próprias dos seus joelhos e assume a posição que lhes corresponde, passa a pertencer ao mundo, no qual o elevado é profundidade, e como aos nossos olhos, à nossa capacidade de enxergar, o elevado já permanece imponderável, quem mensuraria a profundidade? Mas essa é a noite da fundação e irradiação da profundidade: que ela, querida Mama, a consagre e a abençõe. Amen.

Para o Natal de 1920,

Seis horas.

René.


Do livro Cartas Natalinas à Mãe. Tradução de Maria Aparecida Barbosa. São Paulo: Globo Livros, 2007.



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