terça-feira, 26 de novembro de 2024

O Relógio das Memórias, conto de José Feldman


 Em um futuro não muito distante, as pessoas começaram a perceber que o tempo não era apenas uma sequência de momentos, mas uma tapeçaria intricada de memórias. Em uma pequena cidade chamada Palatium, um inventor excêntrico chamado Victor criou um dispositivo revolucionário: o “Relógio das Memórias”. Este relógio tinha a capacidade de capturar e reproduzir memórias de forma vívida, permitindo que as pessoas revivessem momentos de suas vidas como se estivessem acontecendo novamente.


Victor, um homem de cabelos desgrenhados e olhos brilhantes, sempre acreditou que as memórias eram a essência da vida. Ele passou anos em seu laboratório, cercado por engrenagens e dispositivos, até que finalmente completou sua obra-prima. O Relógio das Memórias não apenas armazenava recordações, mas também as transformava em experiências sensoriais completas. As cores, os sons, os cheiros — tudo poderia ser revivido com um simples toque.

A cidade estava em polvorosa quando Victor apresentou seu invento ao público. 

“Imaginem, meus amigos!” ele exclamou. “Poder reviver os melhores momentos de suas vidas! Conhecer novamente aqueles que amamos, sentir a euforia da juventude, ou até mesmo corrigir erros do passado!” 

A multidão estava atenta, maravilhada com a ideia de ter suas memórias ao alcance da mão.

Entre os espectadores estava Clara, uma jovem professora de história. Clara sempre teve um amor profundo pelas memórias, especialmente as de sua infância, quando passava horas ouvindo sua avó contar histórias de tempos passados. Ao final da apresentação, Clara sentiu uma atração irresistível pelo Relógio. O desejo de reviver suas memórias mais queridas a levou até Victor.

“Posso experimentar?” perguntou Clara, sua voz trêmula de emoção.

“Claro!” respondeu Victor, ajustando os dials do relógio. “Escolha uma memória.”

Clara hesitou, mas logo decidiu: “Quero reviver o dia em que minha avó me contou sobre sua juventude.”

Assim que Clara tocou o relógio, a sala se iluminou e, em um piscar de olhos, ela se viu na cozinha de sua avó, o aroma de bolo de cenoura fresco no ar. As paredes estavam adornadas com fotos antigas, e o sol filtrava-se pelas cortinas, criando um ambiente acolhedor. Sua avó, com um sorriso caloroso, começou a falar sobre sua juventude e as aventuras que a vida lhe proporcionara.

Clara sentiu a alegria inundar seu coração. Ela riu, chorou e se lembrou do quanto amava aquelas histórias. O tempo passou, mas para Clara, tudo parecia tão real quanto antes. No entanto, quando a experiência terminou, uma tristeza profunda a envolveu. Ela percebeu que, apesar de reviver momentos felizes, não poderia alterar o que havia passado.

Com o passar do tempo, o Relógio das Memórias se tornou uma sensação na cidade. As pessoas começaram a usá-lo com frequência, cada vez mais dependentes das memórias que podiam reviver. No entanto, algo bizarro começou a acontecer. As pessoas estavam se tornando incapazes de viver no presente. Elas se isolavam, preferindo a segurança de suas memórias a enfrentar a realidade.

Clara, preocupada com o que estava vendo, decidiu confrontar Victor. 

“Victor, as pessoas estão se perdendo! Elas estão tão obcecadas por reviver suas memórias que esquecem de viver! O relógio se tornou uma prisão!”

Victor, que antes estava entusiasmado, agora parecia preocupado. 

“Eu não previ isso. A intenção era boa, mas talvez tenhamos aberto uma porta que não deveria ser aberta.”

Determinada a mudar a situação, Clara começou a pesquisar sobre o impacto das memórias e do tempo na vida humana. Ela descobriu que as memórias, embora belas, também podiam ser dolorosas. A idealização do passado impedia que as pessoas apreciassem o presente e planejassem o futuro.

Clara decidiu que precisava fazer algo radical. Junto com algumas pessoas da cidade, criou um movimento chamado “Viva o Agora”. As pessoas eram incentivadas a se desconectar do Relógio e a redescobrir a alegria de viver no presente. Era uma batalha difícil, pois o Relógio havia se tornado um símbolo de status e felicidade.

Em um evento público, Clara subiu ao palco e se dirigiu à multidão. 

“Amigos, o passado é uma parte de quem somos, mas não podemos deixá-lo nos aprisionar! Precisamos viver cada dia como se fosse um novo começo! O Relógio das Memórias pode ser uma ferramenta, mas não pode ser a nossa vida!”

Enquanto falava, Victor a observava, orgulhoso e triste ao mesmo tempo. Ele percebeu que havia criado algo que não só capturava memórias, mas também capturava as pessoas. Ele decidiu desativar o Relógio, mesmo que isso significasse perder sua invenção.

A decisão de Victor trouxe a cidade de volta ao presente. As pessoas começaram a se reconectar com suas vidas, a valorizar o que tinham agora, ao invés de viver no passado. Clara tornou-se uma líder na comunidade, ajudando as pessoas a entender o valor do presente.

O Relógio das Memórias foi desmontado e suas peças foram transformadas em arte. As pessoas começaram a criar suas próprias histórias e memórias, agora sem a ajuda de um dispositivo. Elas aprenderam a aceitar o tempo como um fluxo natural, onde cada momento, por mais simples que fosse, tinha seu valor.

Anos depois, em uma tarde ensolarada, Clara estava sentada em um parque, cercada por crianças rindo e brincando. Ela sorriu ao lembrar de sua avó e das histórias que tanto amava. Agora, Clara contava suas próprias histórias para as crianças, criando novas memórias.

E assim, a passagem do tempo tornou-se uma celebração da vida. As memórias não eram mais algo a ser revivido, mas uma parte de uma narrativa contínua. O Relógio das Memórias pode ter desaparecido, mas a essência do tempo, com todas as suas alegrias e tristezas, continuava a ser a verdadeira magia da vida.

Fontes: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing



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