sexta-feira, 27 de maio de 2022

NADA SE CRIA, NADA SE PERDE, TUDO SE TRANSFORMA - Um conto de Sammis Reachers


Ano 2082. A Boate Tanganica fica na cobertura do edifício Von Humboldt, 18° andar. O enclave alemão de Stadt der Sonne, neocolônia de 730 quilômetros situada no coração da Tanzânia, reúne alguns dos mais ricos homens da África.

Johanes Blunt é um deles. Homem de meia idade, bem apessoado, os leves cabelos grisalhos lhe conferiam o charme que, ao lado de seu deus particular, o dinheiro, lhe franqueavam acesso à quase toda mulher que desejasse. Acoitava essa singularidade que o diferenciava entre os seus coetâneos da exótica colônia: Gostava apenas de mulheres.

Afastando-se do salão principal da festa, Johanes ruma à toalete. Ele vai aplicar, na própria veia, uma das poucas drogas proibidas, mesmo na babélica Stadt der Sonne: Nintol. É um estimulante que acelera a atividade de todas as células. Johanes irá aplicar a droga e também irá morrer em seguida, em menos de dois minutos, sozinho no cubículo de um banheiro àquela altura da festa já imundo, tombado sobre uma privada.

Isso, pela cronologia alfa.

Johanes, o grande empresário de soja da África, responsável pelo desmatamento de duas Namíbias inteiras, aplica a nova droga que, misturada à medicação que ele tomara horas atrás, causa uma reação anafilática que o derruba sobre a privada da qual havia acabado de levantar-se. Nesse instante, a cronologia beta se inicia. A portinhola do cubículo é arrancada, e uma injeção contendo contramedidas é enfiada no pescoço do moribundo.

Antes que pudesse recuperar a consciência e entender o que estava acontecendo, braços fortes levantam o corpo esmorecido de Johanes. E algo sinistro ocorre, no exato momento em que o alemão entreabre os olhos: Ele julga ver a ele mesmo sendo jogado de volta sobre a privada. O ele ou outro dele que voa parece um boneco sem vida.

Em seguida, o indivíduo que o apanhara pelos braços toca a outros dois elementos, militarmente paramentados e mascarados, e todos os quatro desaparecem numa espécie de mini-buraco negro que chega a absorver a própria luz do lugar.


***

Ano de 2061. Gotardo Mahles foi, há quarenta anos atrás, um ministro de estado, empossado na década de vinte do vigésimo primeiro século, no então continental país conhecido por Brasil. Durante seus pouco mais de dois anos de atuação, ele foi responsável direto e indireto pelo aumento do desmatamento em toda a floresta amazônica. Sob sua tutela e do então presidente da república, Aldir Maldonaro, criminosos brasileiros e de outros países praticaram dezenas de crimes ambientais, crimes que Mahles se esforçou por encobrir, contextualizar, e mesmo descriminalizar, ao fazer lobby por leis mais brandas.

Após sua saída daquele governo, transcorreram ainda quarenta anos antes do ex-ministro morrer, numa queda de avião. Mahles seguiu, até seu fim, praticando crimes outros, ligados à exploração sexual, notadamente para satisfazer às suas muitas luxúrias. Sequer destes deu-se notícia, durante sua vida: O frio Gotardo jamais experimentou o chão de um cárcere. As tentativas de puni-lo criminalmente por suas atividades quando no governo redundaram sempre em nada, até seus crimes prescreverem.

O avião, um Tesla Lightining, aeronave elétrica de 28 lugares, rumava de Caracas para Curitiba, capital do Brasil do Sul. Ao sobrevoar Anápolis, ainda sobre o país de Araguaia, ambos os motores elétricos entraram em pane. O piloto poderia ter acionado as contramedidas de praxe – ejeção da célula de passageiros – mas não o fez. O motivo? Nunca se soube, e já não importa.

Três homens surgem dum pequeno estouro, uma espécie de célula escura que emitiu um som de vento ao eclodir. Imediatamente, um deles ativou um pequeno aparelho de bloqueio de sinais eletromagnéticos, cujo objetivo era impedir que imagens do interior da aeronave fossem transmitidas para fora da mesma, pelo mecanismo de monitoração em tempo real. Apanhando pelo braço ao apavorado Gotardo, com a mesma velocidade com que surgiram, desapareceram. Deixaram caído ao chão um corpo: Um corpo idêntico ao do velho covarde. A ação toda fora percebida por alguns dos passageiros, mas principalmente pela aeromoça que, da porta da cabine, observava o salão do avião, enquanto a nave demonstrava passar por algum problema. Ela se aproximou daquele corpo que fora deixado para trás, e lhe admirou a semelhança com o passageiro que, há segundos, fora pego e levado para dentro de um buraco negro. Seu susto não teve muito tempo para entabular conjecturas, pois o veículo chocou-se contra um edifício, matando tudo e despedaçando a maioria daqueles corpos a bordo.

 

***

Ano de 1859. Austrália, dois séculos antes da ilha se tornar uma neocolônia chinesa, após a Grande Guerra do Pacífico. Thomas Austin, um agricultor, cometeu o mesmo erro que dezenas de seus patrícios, fato que faz da antiga Austrália um dos países mais visitados pelos misteriosos saltadores de buracos-negros. Seu crime foi introduzir uma espécie exótica – no caso, coelhos nativos da Europa – no frágil ecossistema australiano. Os eventos desencadeados a partir desse estopim foram catastróficos, e geraram uma reação em cadeia de sandices, como a introdução dos inimigos europeus dos coelhos, as raposas-vermelhas, na esperança de combater sua reprodução desenfreada. Raposas que, estabelecidas, acharam mais vantajoso caçar os lentos coalas do que coelhos serelepes. E esse foi apenas o princípio das dores.

A porta da choupana em que o moribundo Thomas se encontrava, já prestes a morrer, foi aberta pelos dois agentes, que acreditavam estar diante de um velho canceroso com apenas uma hora de vida. E assim era; mas a reação do velho diabo os surpreendeu. Sem mostrar apavoramento diante daqueles homens imbuídos em estranhíssimas vestes e armas, o australiano apanhou uma velha garrucha de pederneira que jazia numa mesinha ao lado de seu catre e fez fogo contra os agentes, fulminando no peito o primeiro deles. O segundo agente conseguiu recuar, puxando rapidamente seu companheiro pelo braço para fora do pequeno cômodo, praguejando em termos de “maldita Austrália” e “lugar almadiçoado”. Imediatamente iniciou os procedimentos de retorno temporal: Um pequeno buraco-negro, ele sempre, engoliu os dois aventurosos.

Uma nova incursão se fez necessária, ativando uma terceira linha do tempo, a gama, menos por temor do moribundo e sua arma, do que pela necessidade de salvar a vida do agente que fora atingido.

 

***

2109, tempo presente.

Os chamados Comandos Temporais de Ecojustiçamento realizaram, até aqui, 92 viagens.

Na maioria delas, com perfeito sucesso: Apenas a cronologia beta foi ativada. Sim, pois se possível era voltar no tempo, o número de idas a um determinado, específico ponto temporal era limitado. Mesmo sem causar alterações tempo-processuais, que são aquelas acarretadas por intervenções/alterações diretas (como voltar a 1939 e assassinar Hitler), a reles presença ou penetração num mesmo ponto temporal, por mais de três ou quatro vezes, infringia um tipo sinistro de dano à linha do tempo, de consequências assaz desastrosas.

Assim, os gestores das viagens estabeleceram um limite convencionado de no máximo três incursões sobre um mesmo evento ou momento. Somente seria possível, sobre a chamada cronologia alfa ou cronologia base (original) estabelecer uma cronologia beta, gama ou delta, a derradeira.

Das noventa e duas viagens empreendidas pelos cronoagentes, o sucesso foi mais que satisfatório: apenas uma delas chegou a delta, e cinco a gama.

 

***

Vamos agora aclarar os fatos? O objetivo das viagens era, sempre sem alterar a linha temporal, capturar grandes criminosos ambientais no momento exato de suas mortes. Para evitar problemas, seus corpos eram substituídos por réplicas sem vida, clones previamente engendrados: Assim as mudanças nos fatos temporais eram suprimidas ou minimizadas ao máximo possível. Para todos os efeitos, aquele que iria morrer dentro de instantes... morreu, e estava ali seu corpo.

Sua captura tinha um objetivo único: Julgá-los por seus crimes, crimes que afetaram toda a vida planetária. Sua condenação era certa, e sempre a mesma: Seus corpos, agora com sobrevida garantida pela medicina em uso, serviriam como COMBUSTÍVEL VIVO para reatores de energia ôntica – a poderosíssima energia da vida, élan ou força vital que, de reles lenda ou especulação espiritualista, para-filosófica, foi descoberta como uma das forças elementares da natureza, em 2098. Uma vez descoberta, logo se conseguiu utilizar tal força para gerar quantidades milagrosas (não há outra palavra) de energia, mas ao custo de sugá-la de um ser vivo, algo eticamente impensável pela cosmovisão vigente.

Mas, e se fosse possível utilizar as vidas de criminosos – não os poucos e reles criminosos do tempo, mas os maiores dentre os maiores, aqueles responsáveis por danos massivos não apenas à antroposfera, esfera dentre muitas da vida no planeta, mas aqueles que danificaram muitas e muitas (se não todas) as esferas de vida do sistema-Terra?

O programa se iniciou há exatos oito meses, especificamente em agosto de 2108. Fabuloso foi o debate que nele desembocou, como é de se imaginar.

Toda pessoa omniconectada opinou e votou: Deveríamos capturar os que cometeram crimes contra a humanidade, ou apenas os que cometeram crimes contra a base que permite ou não a humanidade subsistir: O planeta Terra? Tais crimes eram mesmo maiores? A era entendeu que sim. Era o zeitgeist, o espírito daquele tempo.

O pragmatismo venceu. Sim, ainda hoje gera embates éticos dignos de uma ágora ateniense. Mas está feito.

A pouquíssima possibilidade de retornar no tempo, e a impossibilidade de mudar suas linhas mestras, tornaram a operação toda direcionada ao que se deu. E aquela civilização pôs-se à caça.

Assim, a lei de Lavoisier e lei maior da matéria, “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma” era celebrada por aqueles corpos, fadados a consumir-se lentamente, alimentados por equipamentos de biosustentação, doando sua energia mais íntima, mais fundamental – a energia própria da vida – para justamente manter a vida no planeta que tentaram destruir.

Utilizados como tochas humanas. Imóveis. Padecendo de dor, dor considerável, e não por crueldade: Não havia como minorá-la. Sim, uma afronta aos mecanismos vigentes de proteção da vida, aos chamados direitos omnivitais. Ainda assim, a exceção – corporificada naquela pena barbaresca – era aplicada.

Não apenas os altos custos e o altíssimo risco das viagens pelo tempo ditaram a regra para a punição apenas dos criminosos ambientais – que tinham até um apelido, os megadeths. A própria ética da era, amparada numa firme concepção de afirmação da vida, oriunda seja da filosofia secular, seja do neobudismo, seja do cristianismo positivo do (então reabilitado) Albert Schweitzer, deixaram claro o entendimento de que um crime contra a natureza era um crime contra todos, contra todo o conjunto dos terraviventes – dos quais os homens, veja você, são apenas uma das milhões de formas manifestas.

 

Sammis Reachers


domingo, 8 de maio de 2022

REDENÇÕES, conto de Sammis Reachers

   


Ele saiu de um emprego estável e rentável na Embraer para fundar na Realidade seu sonho, a Landau Avionics.

      Tinha um nome inacreditável também: Gulliver Landau. Conheci-o num bar em Manhattan, o Fahrenheit 12, onde eu era garçom e ilegal, um carrapato no lombo do boi cansado dito Sonho Americano. Isso antes das crises, bolhas e crashes...

      Bem, ele era um gênio que gostava de Ritchie Valens, cubas libres e asiáticas. Sexo com asiáticas.  Foi neste nicho que eu entrei. Eu era um tipo de ‘agenciador’ freelancer, de outro cara, ele sim um cafetão, que administrava os negócios de umas quinze meninas no Harlem. Uma delas era Misha, princesinha com pedigree de algum lugar, creio, do sudeste asiático, dada sua morenice.

      O senhor Landau havia trabalhado aquela semana inteira na divulgação de suas peças para a indústria aeronáutica. Pelo que pude entender, ele criava peças melhores e feitas numa nova liga metálica, o que lhes garantia mais durabilidade e leveza. Peças de motores. Havia ainda a sobrecarga de ter que entrevistar pessoalmente nove candidatos a funcionários de seu negócio incipiente. Ele era um homem tranquilo, mas precisava extravasar. Havia fechado contrato com duas pequenas empresas, e com a gigante Lockheed Martin. Mas seu sonho era a Nasa. Enfim, tinha essa tara por asiáticas, mas não havia nenhuma entre as meninas da Fahrenheit. Marquei com ele para as duas da manhã, quando eu saísse. Levá-lo-ia até o Harlem, aonde meu chegado colocava as meninas para faturar. Landau não era assim tão inocente, mas confiou em mim. Afinal, eu era brasileiro como ele, e sempre muito prestativo e atencioso. Enquanto tomava seus cubas libres, percebia como os frequentadores da casa me chamavam pelo nome, ou apenas Sam, com certo apreço.

      Terminado meu expediente (a casa só fechava às 4h00, mas como eu era dos primeiros garçons a abri-la, por volta das 18h00, meu expediente terminava às 2h00), partimos no carro do senhor Landau para o Harlem.

      Chegamos ao pé do pequeno prédio onde funcionava o prostíbulo por volta das 2h25. Na rua, apenas um viciado sentado na calçada, sendo engolido pelo sono.

      Mas a mudança na população da rua alterou-se num piscar de olhos: três brutamontes saltaram rápidos de um Meriva que encostou em nossa traseira, já de pistolas em punho. 

      Pensei que era um assalto. Sem sorte, nada de assaltos. Convidaram-nos a entrar no carro. Sotaques europeus, sei lá de onde. Não americanos. Mau isso.

      Já no banco traseiro do carro, notei que Landau tremia, ao encostar-se a mim. Mantive o silêncio todo o tempo, enquanto, em todo o tempo, Landau balbuciava palavras entrecortadas, como uma criança. Perguntei então o que eles queriam. Mandaram eu calar-me. Eu não aguentei, e idiotamente disse que não era ninguém, não tinha dinheiro, era só um imigrante. Pedi para me soltarem.

      O grandão ao meu lado me deu uma cotovelada no estômago. Não sou pequeno, nem medroso. Eles não haviam nos amarrado; pensei em revidar. Mas todos possuíam armas, se eu conseguisse atordoar o brutamontes e saltar do carro em movimento, eles iriam me peneirar com chumbo. E havia o senhor Landau. Deixá-lo naquela situação seria uma grosseira covardia. 

      Então me lembrei do rosto do motorista, ao cruzar com seu olhar pelo retrovisor interno; ele estava no bar com outros homens. Talvez estes. Percival, um dos garçons, atendeu seu grupo. Isso significa que eles nos seguiram, e significa que querem o Landau.

      Rodamos por cerca de uns cinco quilômetros, todos em silêncio, fora Landau, que continuava a murmurar espavorido. 

      Chegamos a um bloco de prédios, onde já nos esperava aberta uma garagem. O caro entrou, e um outro cara fechou manualmente a porta. Saímos do carro, eu levei mais um golpe no estômago, isso estava ficando tedioso. Finalmente amarraram nossas mãos. Mandaram que eu me sentasse a um canto, no chão, e um dos caras ficou vigiando-me. Landau foi sentado numa cadeira, sendo rodeado pelos três grandalhões. Um homem idoso saiu da penumbra, maldita cena de filme. Merda, Landau, quem é você, o que você faz??!!! Agora é muito tarde para lamentar. Será que o Luke, meu amigo cafetão, não teria visto nosso sequestro lá no Harlem? Mas e daí, ainda que ele avisasse a polícia, esses caras parecem profissionais. 

      Então as fichas caíram no sedento fundo da caixa. O velho, muito calmamente, começou falando ao Landau que eles sabiam quem ele era, e seus empregadores queriam os arquivos com os protótipos de Landau. Tovarisch. A palavra com que os clientes russos chamavam-me. Ele chamou Landau de tovarisch. Eram russos. Landau ainda gaguejava; começou a pedir para eles não matá-lo e a dizer que entregaria tudo. Mas o velho Landau era bem menos bobo do que eu pensava: ofereceu dinheiro ao velhote, em troca de sua liberdade. Ah, Landau... o velhote, sempre com uma calma de mandarim, explicou que era um profissional; que as pessoas que o haviam contratado confiavam em seu trabalho, e que ele não poderia decepcioná-las. Landau perguntou quem então havia encomendado o sequestro. O camarada não titubeou, e disse que eram alguns empresários russos, concorrentes de Landau. Nesse ponto eu entendi, ou perdi finalmente toda esperança em contrário, que eles iriam nos matar. Ou jamais diriam de seus empregadores. 

      Pela primeira vez desde o início daquele inferno, na verdade pela primeira vez em meses, pensei em Deus. Em silêncio, sem saber direito o que fazia, pensei uma oração.

      Landau entregou o que queriam: seu chaveiro (um pequenino e um tanto feminino ursinho de pelúcia) era na verdade um pendrive, e os russos, não me pergunte como, já sabiam. Deram-lhe uns dois tapas na cara, e o pior: cortaram com um alicate de corte um de seus dedos. O velho gritou, claro. Levantaram-no, e enquanto eu estava absorto observando o que faziam com ele, o animal que me vigiava acertou-me uma coronhada com seu fuzil, no meio do meu rosto. Em seguida pisou com força em minha perna. Tive um reflexo que no momento me pareceu intuitivamente o correto: comecei a gritar “você quebrou minha perna, você quebrou minha perna!”. Ele me puxou pelo casado, comecei a mancar, disse que minha perna estava quebrada. Ele me pôs em pé e empurrou-me para que andasse. Joguei-me ao chão como quem cai. “Minha perna está quebrada!”. Um dos outros brutamontes ajudou-o a levantar-me, e me arrastaram junto a Landau para um quarto vazio, que ficou totalmente em trevas quando a porta foi trancada.

      Ficamos em silêncio. Ouvimos uma conversação em russo, em seguida o barulho da porta da garagem abrindo-se, motor de carro ligando, carro partindo, a porta fechando-se. Em seguida alguém deu uma pancada na porta e disse fiquem quietinhos aí. Então não seríamos executados naquele momento, por algum motivo foi-nos concedida uma sobrevida, ou queira Deus!, quem sabe sejamos libertados ou deixados ali enquanto eles fogem.

      Depois de uns três minutos em silêncio, comecei a xingar o idiota. “Po##a, Landau! Que merda foi essa em que você me meteu? Po##a, se você lida com coisa séria, por que não contratou seguranças? Agora nós vamos morrer, seu babaca!”

      Landau pediu perdão. Apenas isso, não falou mais nada. Já não balbuciava aquelas palavras entrecortadas, ininteligíveis. Depois de mais alguns minutos, perguntou se eu sabia orar. Claro que sabia. Perguntou se eu queria orar com ele. Pensei que era algum tipo de piada ou de afetação pelo terror, mas desta vez não havia medo na voz dele, não havia pressa, alteração alguma. Não sabia o que responder. Por fim disse-lhe que orasse em voz alta, mas não muito alta para não alarmar o nosso vigia, e eu ficaria ouvindo.

      Então ele começou. 

      No princípio era uma lamúria. Uma lamúria que cresceu para um choro. Ele pedia perdão. Pedia perdão por mim e por ele, e citava pecados. Muitos. E muitos outros. E outros mais; era assustador. 

      Então ele pegou minhas mãos. Chorava profundamente. Suas mãos estavam quentes, como mãos de um febril. Ele começou a falar. Falar com seu Deus, talvez nosso.

      - O Senhor me avisou... o Senhor me avisou, mas eu teimei e preferi minha vida, meus sonhos, meus pecados. E fui me afastando de ti, e me aproximando do tesouro de Satanás, e hoje colho o sumo de tudo que Satanás tem para mim: trevas, dor, calabouço e morte. Naquele culto em Itapetininga, Deus vivo!, o Senhor falou, o Senhor falou... Avisou-me que Satanás requisitava minha alma, e realizaria meus sonhos, e me daria do melhor desta terra. E no fim me daria tudo o que ele tem. Eis aqui o tudo o que ele tem! Eis esta morte, esta escuridão! Misericórdia de mim, Deus meu! Misericórdia de mim!

      Suas mãos continuavam profundamente quentes, embora fosse inverno e o quarto estivesse frio. Então ele era um crente desviado, como se diz.  Não havia mais medo em sua voz, isso era o que mais me espantava, era como um outro homem, e suas orações continuaram, uma hora, duas horas... nunca havia visto nada parecido, nunca havia visto um arrependimento tão... tão massivo, tão firme, tão real, não fingido. Então aquele arrependimento de que a Bíblia fala é isso. Comecei eu a me arrepender também. Comecei a orar também. A chorar. Eu estava sentado no chão, ele de joelhos. Abraçou-me. 

      - Cristo nos livrará, rapaz. Você crê? O Cristo que um dia eu abandonei nos livrará, e se não livrar nos recolherá para sua paz. Não tenha medo. 

      Após mais um tempo, ele sentou-se também. Começou então a falar de sua vida, de sua juventude. Era um jovem filho de evangélicos, criado com toda aquela pompa e circunstância dos crentes. Todas aquelas coisas. Era bom aluno, entrou para o ITA, o Instituto Tecnológico da Aeronáutica, arrumou antes mesmo de formado emprego na Embraer. Construiu carreira. Ali, o que a faculdade não conseguiu, outros fatores alcançaram: ele desviou-se. Muito trabalho, muito dinheiro. Morava em Santos, e a sede da Embraer ficava em São José dos Campos. Ficava dias sem ir em casa. Começou a envolver-se com prostitutas. Primeiro, timidamente. Depois viciou. 

      Perdeu a mulher. Dos dois filhos, um não falava com ele, não queria dinheiro, nada. Culpava-o por ausência, pela infelicidade da mãe, pelo fim do casamento. Tudo ia mal, mas na carreira ele colecionava êxitos, então tudo ia bem. Após alguns anos, resolveu que era tempo de tentar voo solo: pediu demissão e abriu sua própria empresa de peças para a indústria aeronáutica. Prosperou, alcançou bons contratos, conheceu melhores prostitutas, era rei em sua cidade, era rei em sua Mercedes C1 blindada, era rei aonde chegasse com seu talão de cheques, em qualquer parte do principado de Satanás, este mundo vasto. E agora estava ali, mutilado e amarrado na escuridão, aguardando a chegada da morte.

      Falou do último culto a que comparecera, mais para agradar um antigo amigo do que por quebrantamento. Foi onde Deus usou uma pessoa para falar as coisas sobre ele ser presenteado com o melhor de Satanás. Ele não acreditou, não quis aceitar aquilo. Achava um absurdo, achava que era o único responsável pelo seu sucesso, sua competência era maior, ele vencia os contratos, ele criava o melhor equipamento. 

      Perguntou então se eu cria. Se eu cria no Deus que havia ressuscitado na cruz, o Deus que nos criara para o amor e o perdão. O Deus que podia nos livrar daquele inferno. Sim, eu cria. Sim! Mas o que eu tinha que fazer? Ele me mandou confessar meus pecados, confessar Jesus como meu único Senhor e Salvador. Eu o fiz. Não tinha muita opção. Não havia opção alguma. E eu cria realmente. Num homem que abandona seu Deus e é levado para o matadouro. Num Deus que perdoa e salva. Mas era só isso? Então comecei a sentir algo estranho, inusitado: uma paz assustadora, uma paz que me completava, um barato, sim, essa é a única comparação que me ocorre, um barato maior do que de qualquer das muitas drogas que eu tinha experimentado naquela cidade grande. 

      Imediatamente a esta inundação anestésica de PAZ, a porta abriu-se novamente; eram os cinco homens. No calor de nossas orações, sequer ouvimos a chegada do veículo. Lembrei-me que havia simulado que estava com a perna quebrada. Fomos levantados (eu mancava em uma perna só, mantendo meu engodo) e levados para o meio da garagem. Fomos postos novamente no veículo, mas era já outro: um furgão Ford.

      Rodamos por uns dez minutos. Pararam o veículo, mandaram que descêssemos. Landau sorria. Sim, o velho Gulliver Landau sorria. “Tudo vai ficar bem”, ele disse. Estávamos na beira do Rio Hudson. Levaram Landau para a margem, ajoelharam-no no chão. O russo que me dera a coronhada, e que estava armado com um fuzil AK-47, posicionou-se defronte a ele. “Esse pente de trinta balas é pra você, brasileiro.” Landau disse calmamente: “Tenha misericórdia de todos nós aqui, Senhor Deus”. O russo disparou. Continuou disparando mesmo com o corpo de Landau já caído, até acabarem as balas da arma. Enquanto isso, de punhos amarrados e sentado no chão, por crerem que minha perna estava mesmo quebrada, relaxaram na vigilância. Três dos criminosos cercavam Landau. Um quarto permanecia ao volante no carro. E o último vigiava-me, e também mantinha os olhos fitos na estrada, para ver se algum veículo se aproximava. Um carro vinha à distância. Talvez o motorista tenha ouvido os tiros; parou no meio da estrada. O meu vigia deu alguns passos em direção à estrada, saindo de meu campo de visão. Eu levantei-me e corri. Os tiros ainda continuavam; corri na direção contrária àquela de onde vinha o carro. O motorista do mesmo então deu marcha à ré, cantando os pneus, e atraindo ainda mais a atenção de meu vigia. 

      Não sei o que ocorreu depois. Corri muito, desci por uma mata que margeava o rio, continuei a correr, ouvi gritos em russo, mas não atiraram. Já não podiam me ver; continuei a fuga pela vida, imaginando que eles viriam em minha perseguição. Não sei se vieram. Depois de alguns minutos cheguei a um tipo de atracadouro de barcos. Não aguentava mais correr; entrei num dos barracões, o mais isolado do grupo, e enfiei-me no canto mais escuro. E pensei novamente no Deus de Landau, o Deus da cruz, o Deus meu. Adormeci.

      Acordei no dia seguinte, um domingo. Saí do galpão. Não havia ninguém ali. Olhei para a direção de onde eu provavelmente havia corrido, agora era possível visualizar a área em panorama. Não havia nada, polícia, carros, nada. Andei até a estrada. Estava sujo, com sangue seco no rosto, não conseguira me livrar do arame que amarrava minhas mãos. Fiz sinal a um carro que passava. O motorista viu minhas mãos amarradas e acelerou. 

      Então uma caminhonete velha, uma daquelas Chevy, aproximou-se. Não fiz sinal: cabisbaixo pelo acostamento, tencionava andar até a área metropolitana e denunciar tudo à polícia. Eu estaria enrolado, claro, era um ilegal, não tinha provas, talvez os russos tivessem sumido com o corpo de Landau. 

      – Irmão! – disse o motorista, parando o carro ao meu lado. Era um homem bonachão, branco, com expressão de incredulidade, de espanto, mas um espanto alegre... – Entre no carro, eu lhe dou uma carona.

      Assim que entrei, ele se ofereceu para desembaraçar-me do arame, e foi logo dizendo: 

      – Sonhei com você. Puxa. Então era verdade! O Senhor não se esqueceu de mim. Ele usou uma mula; pode também usar um miserável como eu. 

      Eu estava mais confuso que antes, mais confuso do que quando no quarto escuro.

      – O Senhor me disse em sonho que havia dois filhos dele perdidos no calabouço de Satanás. E o estranho era que o tal calabouço de Satanás era perto de minha casa. Ele disse que iria salvar um dos filhos dEle, e o outro eu que deveria salvar.

      Era muita informação, muita dor, alegria, surpresa, milagre e sonho, explodindo tudo ao mesmo tempo sobre mim: eu não sabia como reagir. Lembrei-me de Landau fazendo aquele apelo, perguntando ali, duas horas antes de ser executado, se eu cria e aceitava esse Deus estranho. Pensei que não tinha opção, não havia mais nada na minha vida, a não ser a mão invisível desse Deus. Agora vendo o sorriso do americano penso o mesmo: não tinha opção, a mão desse Deus me envolve, não tenho mesmo opção.

      O americano levou-me até sua casa, onde cortou o arame. Contei-lhe a história. Sua esposa e dois filhos estavam presentes, todos, mesmo espantados, glorificaram a Deus. Oramos juntos. Depois de um período de confusão e desespero, senti novamente aquela PAZ inundando-me. Ele me disse que era um bombeiro, reformado devido a problemas psicológicos que enfrentou depois dos atentados de 11 de Setembro; e que a única vez em que tivera um sonho tão vívido, tão real ou ‘espiritual’, fora na infância, quando Deus o avisara para ir até a casa do avô, que estava enfartando.

      Fui até o Consulado brasileiro; eles já procuravam por Landau. O cônsul foi cortês e compassivo, aconselhou-me ir até a polícia, mas avisou que eu seria detido, por ser um imigrante ilegal. Ofereceu acompanhamento. Relatei tudo que pude e saí da embaixada, com promessa de retornar dentro de duas horas, para comparecer na polícia com o cônsul. Fui para casa, onde encontrei tudo revirado. Os russos estiveram ali, já haviam descoberto onde eu morava, alguém no bar deve ter dado o serviço. Apanhei o grande boneco do Hulk que estava jogado no chão, abri o compartimento das pilhas: os dólares, enrolados em tubo, estavam lá. Apanhei o dinheiro, fugi. Tentaria fazer o caminho de volta, voltar para o Brasil pelo México.  Tudo que sabia já havia informado ao cônsul. Não seria preso, nem alcançado pelo braço da máfia russa. 

      Pensei nas mãos daquele Deus estranho, de que escapei tantas vezes, agora me envolvendo. Aos trinta e quatro anos, em fuga, num país que não o de meus pais, eu finalmente nascia.


De O Pequeno Livro dos Mortos



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