sábado, 13 de maio de 2023

Livros para sair da caixinha: Saindo da Zona de Conforto em 200 Frases Volume 2 e Volume Único

 Há algum tempo atrás, tomamos sob nosso encargo uma empresa aventurosa: elencar 200 frases seletas, cuja audácia ou perspicácia, sabedoria, criatividade e alegria – mas também cinismo e desconcerto fossem poderosos para impactar proativamente o leitor, seja o experimentado ou desavisado. O sucesso da iniciativa, o e-book Saindo da Zona de Conforto em 200 Frases, serviu de incentivo para voltarmos ao batente e, martelando os tambores, reunir uma nova coleção de frases com poder de encantar – ou catar você de sua zona de espera, de planejamento, de expectativa ou rendição – e desafiá-lo, municiá-lo para a ação – ou mesmo a desaceleração e mudança de rumo.

Uma alegoria, uma exortação, uma nova perspectiva: Surpreenda-se com este apanhado da boa sabedoria humana. 

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quinta-feira, 4 de maio de 2023

991 a.d., um conto de Jorge Luis Borges

 


Quase todos acreditaram que a batalha, essa coisa viva e cambiante, tinha-os lançado contra o pinhal. Eram dez horas ou meio-dia. Homens do arado e do remo, dos árduos trabalhos da terra e de seu cansaço previsível, eram agora soldados. Nem o sofrimento dos outros nem o de sua própria carne lhes importavam. Wulfred, atravessado o ombro por um dardo, morreu a alguns passos dos pinheiros. Ninguém se apiedou do amigo, nenhum deles voltou a cabeça. Já na cerrada sombra das folhas, todos se deixaram cair, mas sem soltar os escudos e os arcos. Aidan, sentado, falou com lenta gravidade, como se pensasse em voz alta.

— Byrhtnoth, que foi nosso senhor, entregou o espírito. Sou agora o mais velho e talvez o mais forte. Não sei quantos invernos posso contar, mas seu tempo me parece menor que o que me separa desta manhã. Werferth dormia quando o toque do sino me despertou. Tenho o sono leve dos velhos. Da porta avistei as velas raiadas dos navegantes (os vikings), que já tinham lançado âncoras. Arreamos os cavalos da chácara e seguimos Byrhtnoth. À vista do inimigo, foram repartidas as armas e as mãos de muitos aprenderam o governo dos escudos e dos ferros. Da outra margem do rio, um mensageiro dos vikings pediu um tributo de argolas de ouro e nosso senhor respondeu que o pagaria com antigas espadas. A cheia do rio se interpunha entre os dois exércitos. Temíamos a guerra e a desejávamos, porque era inevitável. A minha direita estava Werferth e quase o atingiu uma flecha norueguesa.

Timidamente, Werferth o interrompeu:

— Tu a quebraste, pai, com o escudo.

Aidan prosseguiu:

— Três dos nossos defenderam a ponte. Os navegantes propuseram que os deixássemos atravessar o vau. Byrhtnoth deu-lhes sua vênia. Agiu assim, creio, porque estava ansioso pela batalha e para amedrontar os pagãos com a fé que havia posto em nossa coragem. Os inimigos cruzaram o rio, os escudos no alto, e pisaram o pasto da barranca. Depois veio o encontro de homens.

As pessoas o seguiam com atenção. Iam recordando os fatos que Aidan enumerava e que pareciam compreender só agora, quando uma voz os cunhava em palavras. Desde o amanhecer, tinham combatido pela Inglaterra e por seu dilatado império futuro e não sabiam disso. Werferth, que conhecia bem seu pai, suspeitou que algo se ocultava sob aquele pausado discurso.

Aidan continuou:

— Uns poucos fugiram e serão o escárnio do povo. De todos os que restamos aqui não há um único que não tenha matado um norueguês. Quando Byrhtnoth morreu, eu estava a seu lado. Não pediu a Deus que seus pecados fossem perdoados; sabia que todos os homens são pecadores. Agradeceu os dias de ventura que Este lhe havia deparado na terra e, sobretudo, o último: o de nossa batalha. A nós cabe merecer termos sido testemunhas de sua morte e das outras mortes e façanhas desta grande jornada. Conheço a melhor maneira de fazer isso. Iremos pelo atalho e arribaremos à aldeia antes dos vikings. Dos dois lados do caminho, emboscados, nós os receberemos com flechas. A longa guerra nos havia rendido; conduzi-os até aqui para descansar.

Levantara-se e era firme e alto, como convém a um saxão.

— E depois, Aidan? — disse um do grupo, o mais jovem.

— Depois nos matarão. Não podemos sobreviver a nosso senhor. Ele nos comandou esta manhã; agora as ordens são minhas. Não sofrerei que haja um covarde. Está dito.

Os homens foram se levantando. Alguém se queixou.

— Somos dez, Aidan — contou o rapaz.

Aidan prosseguiu com sua voz de sempre:

— Seremos nove. Werferth, meu filho, agora estou falando contigo. O que te ordenarei não é fácil. Tens de partir sozinho e nos deixar. Tens de renunciar à contenda, para que perdure o dia de hoje na memória dos homens. És o único capaz de salvá-lo. És o cantor, o poeta.

Werferth se ajoelhou. Era a primeira vez que seu pai lhe falava de seus versos. Disse com voz cortada:

— Pai, deixarás que teu filho seja tachado de covarde como os miseráveis que fugiram?

Aidan replicou:

— Já deste prova de não ser um covarde. Nós honraremos Byrhtnoth dando-lhe nossa vida; tu o honrarás guardando sua memória no tempo.

Virou-se para os outros e disse:

— Agora, atravessemos o bosque. Disparada a última flecha, lançaremos os escudos à batalha e sairemos com as espadas.

Werferth os viu perderem-se na penumbra do dia e das folhas, mas seus lábios já encontravam um verso.


*


Nota do autor: 991 a.d. É a data do combate de Maldon, famoso na Inglaterra pela balada que historiou a ação. Os milicianos de Essex, derrotados pelos vikings de Olaf Tryggvason, morreram combatendo sem esperança porque seu chefe já havia tombado e a honra o exigia. São muitos na breve epopeia os traços circunstanciais — totalmente alheios aos hábitos alegóricos da época — que prefiguram a técnica das ulteriores sagas da Islândia.


in Borges: Poesia.


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