quinta-feira, 24 de outubro de 2019

TERRA, um poema de Gibran Kahlil Gibran



Terra

Kahlil Gibran
Tradução de Emil Farhat

Como és bela, Terra, e como és sublime!
Como é perfeita a tua obediência à luz,
e como é nobre tua submissão ao sol!

Que bela és, obscurecida na sombra,
E como é encantadora tua face, envolvida pela obscuridade!

Como é reconfortante a canção da tua madrugada,
E como são sombrias as imprecações do teu entardecer!
Como és perfeita, Terra, e como és majestosa!

Caminhei sobre tuas planícies, escalei tuas montanhas rochosas;
Desci a teus vales;
Entrei nas tuas cavernas.
Nas planuras, encontrei teus sonhos;
Nas montanhas, deparei-me com teu orgulho,
Nos vales, auscultei tua tranquilidade;
Nas rochas, a tua resolução;
Nas cavernas, o teu segredo.

És fraca e poderosa, humilde e arrogante.
És maleável e rígida, clara e obscura.
Atravessei teus mares,
Explorei teus rios e vadeei teus regatos.
Ouvi a Eternidade exprimir-se através de tuas marés,
E os séculos dando eco às tuas canções,
Através de tuas montanhas.
Ouvi a vida chamando a vida
Nos desfiladeiros de tuas montanhas,
E ao longo de tuas encostas.
És a boca e os lábios da eternidade.
Os elos e os dedos do Tempo,
O mistério e a solução da Vida.
Tua Primavera acordou-me
E me conduziu a teus campos,
Onde teu hálito aromático recende a incenso.
Vi os frutos dos teus labores de Verão.
No Outono, nos teus vinhedos,
Vi teu sangue fluir em forma de vinho.
Teu inverno conduziu-me a teu leito,
Onde a neve atestava tua pureza.
Na tua Primavera, és uma essência aromática,
No teu Verão, és generosa;
No teu Outono, és uma fonte de abundância.
Numa noite calma e clara,
Abri as janelas
E as portas da minha alma
E sai para ver-te,
Com o coração tenso de desejo e cobiça.
E te vi, então, apresentada diante das estrelas,
Que te sorriam do infinito.
Então, lancei fora meus grilhões,
Pois descobri que o lugar de repouso da alma
Está no teu espaço.
Os desejos da alma brotam de teus desejos.
Tua paz descansa na tua paz
E sua felicidade se encontra na poeira de ouro
Que as estrelas pulverizam sobre teu corpo.

Uma noite, como os céus se tornassem cinzentos,
E minha alma estava fatigada e ansiosa,
Sai para ver-te.
E tu apareceste para mim como um gigante,
Carregado de terríveis tempestades,
Atirando o passado contra o presente,
Substituindo o velho pelo novo,
E permitindo que o forte destroçasse o fraco.

Depois disto, aprendi que a lei dos homens é a tua lei.
Aprendi que aquilo que não quebra seus galhos
Mortos com suas próprias tempestades
Morrerá agoniadamente.
E que aquilo que não usa a revolução para
Livrar-se das suas folhas secas,
 Morrerá lentamente.

Como és generosa, Terra, e como é forte o teu
Enternecimento por teus filhos
Perdidos entre aquilo que eles conseguiram
E aquilo que não puderam obter.
Nós clamamos e tu sorris,
Nós passamos para sempre mas tu permaneces.  
Blasfemamos e tu consagras
Poluímos e tu santificas.
Nós dormimos sem sonhos,
Mas tu sonhas em tuas vigílias eternas.

Acutilamos tuas entranhas com espadas e punhais,
E tu recobres nossas feridas com bálsamo e unguentos.
Semeamos teus prados com esqueletos e ossos
E deles tu obténs ciprestes e salgueiros.

Descarregamos nossos detritos nas tuas entranhas,
E tu inundas nossos celeiros com fardos de trigo,
E afogas nossas cantinas com toneladas de vinhas.

Extraímos teus elementos para fazer obuses e canhões.
Mas de nossos restos tu recrias rosas e lírios.

Como és paciente, Terra, e como és generosa!
És tu um átomo de pó levantado pelos pés de Deus,
Quando Ele vagava do Este para o Oeste do Universo?
Ou és uma fagulha projetada da fornalha da Eternidade?
Ou és uma semente lançada no campo do firmamento
Para tornar-se a árvore de Deus
E abrir os céus com seus ramos celestiais?
Ou és uma gota de sangue da veia
Do Gigante dos gigantes?
Ou apenas um pingo de suor na Sua testa?

Serás um fruto amadurecido pelo sol?
Tu te originas da árvore do conhecimento Absoluto,
Cujas raízes se estendem pela eternidade
E cujos ramos pairam através do Infinito.

És uma joia colocada pelo deus do Tempo,
Nas palmas do deus do Espaço?
Que és, Terra, e o que és?
Sinto, Terra, que és meu próprio eu!
És minha vista e meu discernimento.
És meu raciocínio e meu sonho.
És minha fome e minha sede.
És minha tristeza e minha alegria.
És minha imprudência e minha vigília.
És a beleza que vive em meus olhos,
A ansiedade que mora em meu coração,
E a vida eterna de minha alma.

Sinto, Terra, que és meu próprio eu.
Se não fosse por minha causa, não terias existido.

In Pensamentos e meditações. Tradução de Emil Farhat. Rio de Janeiro: Record, 1960.

terça-feira, 8 de outubro de 2019

Crônica: Os primeiros livros (e enciclopédias!) a gente nunca esquece


Se não todas as pessoas, pelo menos a maioria das que são letradas possuem uma história com o livro. Essa história pode ser breve ou longa, mono ou multilogal, mono ou polivocálica, a depender da quantidade e qualidade dos livros - entendendo qualidade não pelo redundante valor literário, mas pelo impacto que determinado livro possa ter causado naquela alma.
Em meu caso, a história começa na formatura da alfabetização (hoje Pré-Escola), ao ganhar meu primeiro livro: A Tartaruga Infeliz - fato devidamente registrado (e como lembraria?!) por uma prosaica fotografia 10x15. O título do opúsculo quelônio (quelônio é a ordem das tartarugas, jabutis e cágados) foi de mau augúrio: queimou de melancolia o futuro leitor e poetastro...
Mas, pensando bem, definir "primeiros livros" é difícil, pois havia em minha casa paterna uma quantidade deles, e sabe-se lá qual daqueles possa ter sido adquirido tendo a minha pessoa como alvo primário... Exempli gratia, tínhamos pequenas coleções com jeitinho de enciclopédia, assim, querendo, já quase sendo, mas sem ser, sabe? Uma delas era a Saber em Cores (Enciclopédia Didático Visual), de 1975, publicada pela Maltese/Melhoramentos. Belas ilustrações e informações hiper-resumidas, mas que me deram o primeiro contato com grandes nomes da Literatura, artes plásticas, além de noções de geografia e ciências. Hum, mas não sei se foi adquirida antes ou depois de meu nascimento (78).
Passemos então à minha primeira enciclopédia, minha mesmo e enciclopédia mesmo, de fato e direito. Era uma Conhecer, editada pela Abril Cultural, no longínquo 1966, contando com reedições várias. A princesa me chegou usada, como doravante a maioria de livros que me atravessaram a ânima e as manoplas. Na altura de uns 11, 12 anos, corria a brincar de pique-esconde na pequena favelinha onde meio que me "criei", na verdade uma única rua de média extensão formada por algumas casas humildes e até alguns barracos. Algumas casas ainda possuíam o quintal aberto, sem muros. A favelinha era a Beira Rio, que possuía tal nome justamente por... beirar um pequeno rio (o Anaia ou Alcântara ou outros nomes, pois a cada trecho tal rio assume um nome, enquanto percorre meio município de São Gonçalo), que o tempo transformou em valão. Na ânsia de esconder-me, entrei por um desses quintais abertos, que era composto por quatro casinhas, quando o titular do terreno, um negro simpático que trabalhava na cidade de Niterói como porteiro, dito Quiquinho, me chamou, lotado de sorrisos, e mostrou aquela maravilha. Como ele, que só me conhecia de vista na rua, adivinhara que eu era a presa certa, eu nunca soube. A tal maravilha, como eu poucas vezes (brevemente na biblioteca escolar) havia contemplado parecida, teve sobre minha curiosidade um efeito tonteante, catártico. Fascinado, desliguei-me da brincadeira e mergulhei naquele esplendor - sim, pois a Conhecer contava não com fotos, mas com ilustrações primorosas em praticamente cada uma de suas grandes páginas. "Gostou?", sorria o vendedor de ocasião. "Peça a seu pai para comprar pra você. Diga para ele vir aqui falar comigo. Como essa, há outras dez, olha ali" - e apontou-me para a estante capenga que se escorava numa parede de tijolos nus de seu casebre.
Corri para casa. Perturbei seu Mário que, entre um trago e outro de cachaça (naquela época ainda bebia), consertava na varanda dos fundos máquinas de escrever e mimeógrafos. Perturbei e perturbei, até que ele resolveu ir até lá. Era também a seu modo um amante dos livros, e comprador regular das tais coleções pretensamente enciclopédicas. Bom negociador - arte em que inutilmente tentou a vida inteira me iniciar - seu Mário sempre foi. Conversa vai, choro vem, e lá fomos nós para casa com aquela riqueza, aquela internet de papel (da qual faltou um volume), a Wikipédia possível em fins da década de 80. Nos anos seguintes, aquela enciclopédia foi devorada e sacramentou minha excursão pelo sendero luminoso das sabenças.
Minha segunda enciclopédia foi também da Editora Abril, da qual levava o nome - Enciclopédia Abril (deixe-me adiantar ao leitor entediado: foi também a última. nuca tive uma BarsaMirador ou quiçá uma rainha-dominatrix, a Britannica). A história é a  seguinte: Um dos irmãos de minha mãe, meu falecido tio Geraldo "Xereta", legendário campeão de sinuca e vencedor nos mais variados jogos de azar que o tirocínio humano já lograra engendrar, arrumou certa feita trabalho numa fábrica de papel higiênico (aquela que posteriormente ficou conhecida como Carta Fabril), perto de nossas casas, aqui em Tribobó (São Gonçalo). Pois bem, o sortudo foi cair num lugar que dali em diante passou a ser meu sonho de consumo, de insumo, de fetiche: o setor que recebia e separava papéis velhos para a reciclagem e fabricação dos higiênicos. Ali naquele lugar que a mim sempre me obriguei a chamar de paraíso, ele tinha acesso diariamente a dezenas, centenas, e nos dias malditos talvez a MILHARES de publicações que despencavam dos caminhões quase que o dia inteiro: revistas, livros, jornais etc.
Meu tio nunca fora assim um leitor: logo, sua prioridade era separar para si apenas o ouro: REVISTAS PLAYBOY, e, a título de prata, outras publicações pornográficas que davam o ar da (des)graça. Mas, ao ver certo dia uma pesada coleção despencar do caminhão, apanhou uma e gostou: era a tal Enciclopédia Abril. Resolveu guardar um dos volumes em seu armário. Assim, eu que já "consumia" as revistas que ele levava fiquei sabendo da tal enciclopédia. Imediatamente lhe implorei que a trouxesse e mais, que tentasse em nome de Aristóteles recuperar os demais exemplares, antes que virassem papel higiênico. Ele conseguiu recuperar a maioria, e foi levando de pouco em pouco para casa, pois eram muito pesados os calhamaços, num papel couché de grande gramatura. Ah, e o encarregado dos trabalhos, embora não fosse carrasco, não gostava que os funcionários se safassem com grandes volumes. Faltavam três dos doze números, mas não importava. Os textos desta enciclopédia eram escritos praticamente apenas por brasileiros, e por tratar-se como que de enciclopédia mais "séria" (leia-se adulta e mais, politicamente engajada), pude ter contato fundamental com verbetes de temas tais como Filosofia e Antropologia, que ajudaram a definir minha marcha trôpega pela já citada vereda das sabenças humanas.
Com o passar dos anos, consegui encontrar numa feira (a famosa Feira de Alcântara [SG], pejorativamente alcunhada de "RobAUTO Júnior", em referência à RobAUTO "Pai", a lendária Feira de Acari, na cidade do Rio de Janeiro) dois dos três números faltantes. E fui feliz com ela, que por sinal ainda possuo, embora nunca mais a tenha aberto depois de ser apresentado e recrutado pela internet. 
Deixemos de lado agora as obras de referência e voltemos aos livros manuais, ou melhor dito para evitar a dubiedade, portáteis, os pequenos livros de temáticas individuais. O primeiro livro desses que ganhei de meu pai, comprado num sebo, também nessa fase dos 12, 13 anos (quando já me ensaiava como um leitor de verdade), foi O Chefão, de Mário Puzzo. Bem, mas isso é tema para uma outra croniqueta...

Sammis Reachers
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