domingo, 5 de outubro de 2025

Longa vida ao Rádio!

 


Lá se vão uns meses, mas me recordo bem. No dia 02 de março houve um baita problema nas linhas de transmissão elétrica da Enel. Resultado? Diversos bairros de Niterói e São Gonçalo sem luz.

Abri bem a janela de minha pequena sala, que recebia uma agradável brisa – benesse do outono, pois o verão só tem entregue dissabores... À luz inócua de uma pequena vela, me deitei no sofá, praticamente no escuro. Naquela pacata modorra, me lembrei de um objeto. E fiz algo que me catapultou a 30, 40 anos no passado: peguei um pequeno radinho de pilha que meu pai me havia presenteado, coloquei lá suas duas pilhas AA... E me espantei de que ainda houvessem rádios.

Que doce langor, que sensação aconchegante e melancólica ouvir a sucessão de frases e músicas naquele radinho. Já se vão duas décadas de YouTube, Deezer, e quase três de arquivos MP3. É tanto, mas tanto tempo ouvindo só o que se quer, só o programado na playlist, que de repente ouvir uma rádio, com sua seleção de músicas aleatória (nem tanto, diria o jabá), desconstrutivamente além de meu controle, minha curadoria... Foi bom. Uma cura me curou, erva antiga, ali no escurinho da sala, no sofá velho mas ainda macio.

Desde sua invenção, por Guglielmo Marconi (surfando nas invenções de outras bel’almas), ou melhor, desde sua efetivação prática, como o conhecemos, em 1922, e sua popularização a partir dos anos 1930, são diversas gerações construindo suas histórias com o rádio. Eu nasci em parte devido ao rádio: Meu pai, paranaense do interior, veio tentar a sorte no Rio com sonhos de ator e também de atuar no radialismo. Conheceu aqui minha mãe, aqui ficou e o resto é história...

Estas últimas gerações (Z, de nascidos entre 1997-2012, e Alpha, a partir de 2013 até cerca de 2025) são as primeiras em quase cem anos a não ter uma história minimamente sólida – ou nenhuma – com este meio de comunicação, primeiro a realmente unificar o Brasil. Já nasceram no Youtube, Spotify e na nuvem.

A liberdade, a libertação de poder criar sua própria playlist, suas músicas preferidas, e tocá-las na sequência em que quiser e onde quiser, com a miniaturização dos aparelhos sonoros, foi realmente revolucionária, e incontornável. Mas, passadas essas duas décadas da libertação, é preciso aceitar que o rádio não pode morrer (um parênteses, antes que você fale: não, os podcasts não substituíram os programas de rádio. Um podcast geralmente reúne gente descansada falando por TEMPO DEMAIS de coisas que caberiam num minimalismo não enjoativo. E enjoativo é um termo do qual os podcasts lutam para se libertar).

 Sua cultura, sua variedade, seu jogo de aleatoriedade/previsibilidade são salutares para o cérebro e o espírito. Depois do livro, essa salvação milenar, esse barco que nos ensinou e ensina a nadar, o rádio foi o primeiro construto em séculos a verdadeiramente debelar um bocado das chamas de solidão que costumam lamber o lombo e torrar a penugem de nossa espécie tombada.

Em dias de IA se aproximando da singularidade, de Alexa e Siri mimando os pequenos reis performáticos (você e eu, meu consagrado), escravos do breve e do boleto, é preciso proclamar: Longa vida ao rádio!

 

Sammis Reachers

 

O fluminense Sammis Reachers (Niterói, 1978) é autor de doze livros de poesia, cinco de contos/crônicas e um romance. Como editor e antologista, já organizou mais de 50 obras. É professor de Geografia e de História, além de bibliotecário.

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