Lá
se vão uns meses, mas me recordo bem. No dia 02 de março houve um baita problema
nas linhas de transmissão elétrica da Enel. Resultado? Diversos bairros de
Niterói e São Gonçalo sem luz.
Abri
bem a janela de minha pequena sala, que recebia uma agradável brisa – benesse
do outono, pois o verão só tem entregue dissabores... À luz inócua de uma
pequena vela, me deitei no sofá, praticamente no escuro. Naquela pacata
modorra, me lembrei de um objeto. E fiz algo que me catapultou a 30, 40 anos no
passado: peguei um pequeno radinho de pilha que meu pai me havia presenteado,
coloquei lá suas duas pilhas AA... E me espantei de que ainda houvessem rádios.
Que
doce langor, que sensação aconchegante e melancólica ouvir a sucessão de frases
e músicas naquele radinho. Já se vão duas décadas de YouTube, Deezer, e quase
três de arquivos MP3. É tanto, mas tanto tempo ouvindo só o que se quer, só o
programado na playlist, que de repente ouvir uma rádio, com sua seleção de
músicas aleatória (nem tanto, diria o jabá), desconstrutivamente além de
meu controle, minha curadoria... Foi bom. Uma cura me curou, erva antiga, ali
no escurinho da sala, no sofá velho mas ainda macio.
Desde
sua invenção, por Guglielmo Marconi (surfando nas invenções de outras
bel’almas), ou melhor, desde sua efetivação prática, como o conhecemos, em
1922, e sua popularização a partir dos anos 1930, são diversas gerações
construindo suas histórias com o rádio. Eu nasci em parte devido ao rádio: Meu
pai, paranaense do interior, veio tentar a sorte no Rio com sonhos de ator e
também de atuar no radialismo. Conheceu aqui minha mãe, aqui ficou e o resto é
história...
Estas
últimas gerações (Z, de nascidos entre 1997-2012, e Alpha, a partir de 2013 até
cerca de 2025) são as primeiras em quase cem anos a não ter uma história minimamente
sólida – ou nenhuma – com este meio de comunicação, primeiro a realmente
unificar o Brasil. Já nasceram no Youtube, Spotify e na nuvem.
A
liberdade, a libertação de poder criar sua própria playlist, suas músicas
preferidas, e tocá-las na sequência em que quiser e onde quiser, com a miniaturização
dos aparelhos sonoros, foi realmente revolucionária, e incontornável. Mas,
passadas essas duas décadas da libertação, é preciso aceitar que o rádio
não pode morrer (um parênteses, antes que você fale: não, os podcasts não
substituíram os programas de rádio. Um podcast geralmente reúne gente descansada
falando por TEMPO DEMAIS de coisas que caberiam num minimalismo não enjoativo.
E enjoativo é um termo do qual os podcasts lutam para se libertar).
Sua cultura, sua variedade, seu jogo de aleatoriedade/previsibilidade
são salutares para o cérebro e o espírito. Depois do livro, essa salvação
milenar, esse barco que nos ensinou e ensina a nadar, o rádio foi o primeiro
construto em séculos a verdadeiramente debelar um bocado das chamas de solidão
que costumam lamber o lombo e torrar a penugem de nossa espécie tombada.
Em
dias de IA se aproximando da singularidade, de Alexa e Siri mimando os pequenos
reis performáticos (você e eu, meu consagrado), escravos do breve e do boleto,
é preciso proclamar: Longa vida ao rádio!
Sammis Reachers
O fluminense Sammis Reachers (Niterói, 1978) é autor de doze livros de
poesia, cinco de contos/crônicas e um romance. Como editor e antologista, já
organizou mais de 50 obras. É professor de Geografia e de História, além de
bibliotecário.
Nenhum comentário:
Postar um comentário