sábado, 29 de outubro de 2022

Sobre a Derme de Agora - A poesia de Bernard Coutinho


Se aprochegue. Seja bem-vindo a uma poesia feita de mínimos, feita do que a poesia é feita: do imponderável que habita no instante, no detalhe. Desse imponderável arquitetural que erige a vida. De tal verve suave é a escrita de Bernard Coutinho, neste Sobre a Derme de Agora.

Poeta, músico, professor, Bernard coleciona insights e constrói, em seus versos, temporalidades próprias, luminosas. Em sua dança, leminskiana, gullariana, marginal, o poeta avança para além do alumbramento e não se furta ao cruel do dia a dia, à dor e a miséria que desconstroem o que é humano. Atento, desnuda a injustiça e irmana-se aos que sofrem seu peso.

O livro pode ser adquirido no site da Editora Haikai, AQUI.

Confira alguns poemas do livro:


Imperativos

 

Fale menos

Falhe baixo

 

sobre nada

em somatória

 

Vá direto

sem ter direito

 

Vá direito

em coisa errada

 

Faça ao vivo

Não grave nunca

 

Nunca é começo

da morte lenta

 

Vida arrebenta

cordas à faca

 

Acorde o corpo

é madrugada

 

Fermente o pico

do tempo vago

 

Dê argumento

ao vagabundo

 

De peito aberto

fechando tudo

 

tudificando

a palhaçada

 

tudificando

o picadeiro

 

sacaneando

o trapezista

 

alforriando

todo artista

 

dando calote

em pipoqueiro

 

oferecendo

ao trapezista

outra forma geométrica

de enxergar a vida

uma nova acrobacia

pra chamar de sua

uma nova lona

uma nova lua

 

Que o céu se arrebente

ao vê-lo de cima

 

Que o seu ponto de vista

seja o mundo inteiro



Inominável

 

na minha cabeça

habita um ruído

remédios, passes, porres

nada disso faz passar

não é dor,

é ruído

uma dor sem corpo

no corpo da gente

 

  

Dizeres

 

Há quem diga que dizer é coisa de desocupado

por isso, escrevo

 

Nem digo que o faço para não ter de me

desocupar à toa.

 

 

Tez

 

   Tentei

 tentar de

 tudo mas

toda vez que

           tento

                 tonto fico

 

Tratei de

    ter paz

trazendo comigo o

   tempo que vivia

              tentando

 

tanto faz se

    tanto fiz

 

                       Tentei

 

 

 

Renque

 

A cada par de passos dessa gente, nessa rua, os olhos da minha pele enxergam grupelhos em busca de dezenas de fins.

Os da direita gozam de direitos, mas no meio do bolo há um ou dois cumprindo ordens. Eles não sentem fome, mas vontade de comer. Fome é ofensa, quase metafísica. Querem comer vinte pãezinhos quentes e no ponto (nem muito moreno nem muito molinho). Eles querem, eles comem.

Os que cumprem ordens têm a missão de comer com os olhos, e bem rápido, porque Casa Grande não pode esperar.

Os da esquerda nem o cheiro sentem. Não é nojo, desfeita nem anosmia. É fome mesmo e não vontade de comer. Os daqui não fazem fila, preferem desfilar a ausência. Não têm pão, não há paz.

A paisagem escraviza a visão destes. Não podem fechar as cortinas, porque janela não há. Há paredes para uma janela ser parida, mas isso é coisa de poeta... 

No real (e na real), aquela estrutura não presta. Apertando os olhos com os passos, não pude deixar de reparar na fila da frente. Os que saem da padaria costumam engrossá-la. Vão ao 24h para garantir o riso do dia. Com senha e cartão, o coração se enche de graça, mas tudo é pago.

Os da esquerda sabem disso

Os da esquerda querem isso?

Eu, não.

Daria minha carne para ver aqueles desfilados

famintos de fome

Daria minha carne para vê-los fartos, comidos,

enfileirados

Trocaria pão por poesia

sem atravessá-los, sem trocá-los de lado.






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