Se aprochegue. Seja bem-vindo a uma poesia feita de mínimos, feita do que a poesia é feita: do imponderável que habita no instante, no detalhe. Desse imponderável arquitetural que erige a vida. De tal verve suave é a escrita de Bernard Coutinho, neste Sobre a Derme de Agora.
Poeta, músico, professor, Bernard coleciona insights e constrói, em seus versos, temporalidades próprias, luminosas. Em sua dança, leminskiana, gullariana, marginal, o poeta avança para além do alumbramento e não se furta ao cruel do dia a dia, à dor e a miséria que desconstroem o que é humano. Atento, desnuda a injustiça e irmana-se aos que sofrem seu peso.
O livro pode ser adquirido no site da Editora Haikai, AQUI.
Confira alguns poemas do livro:
Imperativos
Fale menos
Falhe baixo
sobre nada
em somatória
Vá direto
sem ter direito
Vá direito
em coisa errada
Faça ao vivo
Não grave nunca
Nunca é começo
da morte lenta
Vida arrebenta
cordas à faca
Acorde o corpo
é madrugada
Fermente o pico
do tempo vago
Dê argumento
ao vagabundo
De peito aberto
fechando tudo
tudificando
a palhaçada
tudificando
o picadeiro
sacaneando
o trapezista
alforriando
todo artista
dando calote
em pipoqueiro
oferecendo
ao trapezista
outra forma geométrica
de enxergar a vida
uma nova acrobacia
pra chamar de sua
uma nova lona
uma nova lua
Que o céu se arrebente
ao vê-lo de cima
Que o seu ponto de vista
seja o mundo inteiro
Inominável
na minha cabeça
habita um ruído
remédios, passes, porres
nada disso faz passar
não é dor,
é ruído
uma dor sem corpo
no corpo da gente
Dizeres
Há quem diga que dizer é
coisa de desocupado
por isso, escrevo
Nem digo que o faço para
não ter de me
desocupar à toa.
Tez
Tentei
tentar de
tudo mas
toda vez que
tento
tonto fico
Tratei de
ter paz
trazendo comigo o
tempo que vivia
tentando
tanto faz se
tanto fiz
Tentei
Renque
A
cada par de passos dessa gente, nessa rua, os olhos da minha pele enxergam
grupelhos em busca de dezenas de fins.
Os
da direita gozam de direitos, mas no meio do bolo há um ou dois cumprindo
ordens. Eles não sentem fome, mas vontade de comer. Fome é ofensa, quase
metafísica. Querem comer vinte pãezinhos quentes e no ponto (nem muito moreno
nem muito molinho). Eles querem, eles comem.
Os
que cumprem ordens têm a missão de comer com os olhos, e bem rápido, porque
Casa Grande não pode esperar.
Os
da esquerda nem o cheiro sentem. Não é nojo, desfeita nem anosmia. É fome mesmo
e não vontade de comer. Os daqui não fazem fila, preferem desfilar a ausência.
Não têm pão, não há paz.
A
paisagem escraviza a visão destes. Não podem fechar as cortinas, porque janela
não há. Há paredes para uma janela ser parida, mas isso é coisa de
poeta...
No
real (e na real), aquela estrutura não presta. Apertando os olhos com os
passos, não pude deixar de reparar na fila da frente. Os que saem da padaria
costumam engrossá-la. Vão ao 24h para garantir o riso do dia. Com senha e
cartão, o coração se enche de graça, mas tudo é pago.
Os
da esquerda sabem disso
Os
da esquerda querem isso?
Eu,
não.
Daria
minha carne para ver aqueles desfilados
famintos
de fome
Daria
minha carne para vê-los fartos, comidos,
enfileirados
Trocaria
pão por poesia
sem
atravessá-los, sem trocá-los de lado.
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