ORAÇÃO A HIROXIMA
Clélia Inácio Mendes
a Kenji Takenchi, um menino
que a pediu a 6 de agosto
de 1945
1- Se costumais, homens
da terra,
dar asas a aves mortas,
se ouvis com prazer
seus fúnebres trinados,
se correis pelos campos
de sangue
com tochas acesas,
erguei uma “torre da
memória"
e esmagai sob
ela
vossos orgulhos.
2- Eu vejo, ó Hiroxima,
tuas crianças que
choram,
teus olhos vazios
prostrados no silêncio
e oro por ti.
3- Eu sinto, ó Hiroxima,
tua carne dilacerada
teu corpo desnudo
de sentido
e oro por ti.
4- Eu amparo, ó Hiroxima,
teus braços caídos.
Neles deponho
as lágrimas
que em ti se
cruzaram
... e oro por ti.
5- Eu hoje oro
Kenji-Shan
pelo fumo que
se eleva da
cripta
de tua mão,
por Toshin (teu
irmão) que te disse um
eterno adeus.
Eu deponho nos
seus túmulos
as cinzas da
minha alma
e como epitáfio
as asas brancas da melodia que
esperaste ouvir
naquela manhã
escaldante
do mês de agosto
dum ano que jamais
findará em mim.
Em Portugal há atualmente excelentes poetas evangélicos. Nada de excepcional existe nisto, em se tratando de um país que reúne um dos mais ricos elencos de poetas antigos e modernos, entre todos os que estão hoje em atuação na moderna literatura dos países europeus.
Haja vista o fato de a genial romancista belga de língua francesa Marquerite Yourcenar, a primeria mulher a entrar para a Academia Francesa de Letras, e autora, entre outros títulos, do sublime livro Memórias de Adriano, ter-se esforçado para aprender o português só para ler os poetas da modernidade portuguesa, conforme ela mesma declarou.
Portugal deu ao mundo um Camões e um Fernando Pessoa, além de outros gênios na poesia e em vários outros gêneros literários. Entre os atuais poetas evangélicos, a poetisa portuguesa Clélia Inácio Mendes ocupa uma das primeiras posições.
Ao publicar, em 1985, sua Oração a Hiroxima, Clélia nos legou um dos mais belos poemas já produzidos por uma poetisa evangélica de expressão portuguesa. Eis o que a levou a escrever o poema:
“Escrevi essa oração-poema ao ler uma obra intituladaTestemunhos de Jovens e Crianças de Hiroxima, uma coletânea de declarações feitas em escolas e colégios do Japão. Reparei com os olhos e a mente na frase de um menino (Kenji Takenchi), que disse: ‘Gostaria que naquela manhã alguém tivesse feito uma oração para Hiroxima’. Isso na realidade me tocou, e quis fosse eu quem orasse pela cidade-mártir”.
Quem tem o dom da poesia e costuma exercitá-lo sabe que não há hora marcada para o aparecimento do poema. A inspiração pode surgir a qualquer momento, no decorrer ou no final de uma leitura (como no caso de Clélia), durante um passeio, na contemplação de um amanhecer ou de um anoitecer, durante uma conversa, ou ao ouvirmos o simples rumor da passagem do vento pela folhagem das árvores. (Sobre a passagem do vento, o genial Fernando Pessoa escreveu, dentro de um dos seus poemas assinados pelo heterônimo Alberto Caeiro, estes versos belíssimos:
..........................................................
Outras vezes ouço passar o vento,
e acho que só para ouvir passar o vento
vale a pena ter nascido.
..........................................................
Em sua Oração a Hiroxima, Clélia soube tirar proveito das técnicas modernas de tessitura poética. Ela sabe que o poema pode crescer em riqueza expressional se for construído valorizando-se até os espaços em branco, o que o torna múltiplo de sentidos nas entrelinhas. Por exemplo: na primeira estrofe, que começa com o verso:
Se costumais, homens, e termina em vossos orgulhos, há versos constituídos de um só vocábulo ou de expressões isoladas:da terra, de sangue, memória, e ela. Numa análise literária simples, despretensiosa, vejamos quais foram os efeitos produzidos por essa técnica.
Clélia poderia ter iniciado o seu poema escrevendo: Se costumais, homens da terra, mas não o fez. Ela valorizou a expressão “homens da terra” dividindo-a e isolando o termo “da terra”, que forma o verso seguinte. Em se tratando de uma oração, temos de considerar o posicionamento diametralmente oposto entre os planos humano e o divino, entre aquele que suplica e Aquele que ouve, entre os homens e Deus.
Os homens que costumam dar asas a aves mortas, e ouvir com prazer seus fúnebres trinados, são homens da terra. Eis a importância do verso da terra ter sido deslocado para baixo e ficado isolado. A mesma técnica foi empregada com relação acampos de sangue e torre da memória. O último verso da primeira estrofe (vossos orgulhos) surge “esmagado” sob a “torre da memória dos homens”.
A colocação e repetição do verso e oro por ti, no final da 2ª., 3ª. e 4ª. estrofes foi outro importante recurso utilizado por Clélia. Porém, o ponto alto do poema está na 5ª. estrofe. Para o leitor habituado a ler poesia, é fácil visualizar nos versos pelo fumo que/ se eleva/da cripta/ de tua mão/, a própria mão de Kenji-Shan estendida e aberta sobre o chão, calcinada, fumegante. Isto nos faz lembrar um poema do gigantesco poeta chileno Pablo Neruda, sua Ode ao Átomo. Diz ele, descrevendo os efeitos da bomba nuclear lançada sobre Hiroxima:
Despertamos.
A aurora se havia consumido.
Todos os pássaros caíram calcinados.
(...) O ar incendiado se ergueu,
e a morte avançou em ondas paralelas
alcançando a mãe adormecida
com o seu filhinho,
o pescador do rio
e os peixes,
a padaria
e os pães,
o engenheiro
e seus edifícios.
(...) Os homens
viram-se de súbito leprosos,
pegavam
na mão de seus filhos
e a pequena mão
se desprendia em suas mãos (...)
Todo poema tem seu ritmo, sua velocidade. Clélia Inácio Mendes termina seu poema em um crescendo de emoção, fazendo uso de um ritmo angustiado, veloz, suplicante. Oração a Hiroxima é um dos mais belos e tocantes poemas produzidos por um cristão-evangélico em língua portuguesa.
Jefferson Magno Costa
http://jeffersonmagnocosta.blogspot.com
Caro amigo Sammis Reachers, muito brigado por ter postado no Mar Ocidental o maravilhoso poema da Clélia, acompanhado do meu comentário tão simples, tão óbvio e linear, que não passa de um veiozinho de água, um riachozinho que nem volume para ser rio tem, e esconde-se assustado no meio do matagal ao ouvir o rumor das ondas de genialidade e substancial poesia dos poetas e críticos literários que você tem publicado nesse seu Mar Ocidental.
ResponderExcluirAliás, parabéns pelo mar. Você está fazendo uma diferença enorme em nosso meio ao trazer para esse blog um conteúdo que nos enriquece, que nos vacina contra a mediocridade, e muda os conceitos de quem equivocadamente está escrevendo uma reles e medíocre prosa ultraoralizada pensando que está escrevendo poesia.
A título de contribuição, e caso você goste e não o tenha postado ainda, publique no Mar Ocidental o Mar Português, do inigualável e genial Fernando Pessoa:
Mar Portugues
Fernando Pessoa
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador,
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele e que espelhou o céu.
Um abraço do amigo e seu constante leitor, Jefferson
A tempo: (Corrigindo):
ResponderExcluirMas nele É que espelhou o céu.
Olá meu nobre amigo Jefferson, é um prazer publicá-lo por aqui, este espaço é também seu, sua escrita, sua erudição são um valioso acréscimo a todos os amantes da literatura.
ResponderExcluirQuanto ao poema do mestre Pessoa, com certeza estará por aqui dentro de alguns dias, com certeza.
Um abraço, graça, paz e poesia meu amado!