A título de resgate, tomamos a liberdade de transcrever este conto, oportuna amostra do rico estilo regionalista do autor, que exprimiu com humor causos (alguns rocambolescos) dos 'matutos' do interior paulista, neste e nos demais contos de seu livro Selvas e Choças (1922).
* * *
UM SONHO CARO
Otoniel Mota
- Ahi, marvada! Tomô no sovaco! Mais ainda não morreu! Eu tiro já teu
bucho fóra! Lá vae obra!
Assim exclamava Chico Pipoca, na salinha da frente de sua choupana,
apenas barreada, como os demais compartimentos. Tinha na mão esquerda a pica-pau
querida, e na destra a tira-prosa luzente, fina, aguçada. Fiado nesta arma,
certamente respeitável, é que Chico Pipoca estava a berrar aquelas valentias,
aos pulos para diante e para trás, esfuracando a parede com ímpetos heroicos,
quando Nha Faustina, a esposa, deixando a gordura aljofrante a chiar na
caçarola, apresentou-se na porta da salinha e deitou água fria na fervura,
pondo-se a mirar fixamente o seu homúnculo esportivo, como hoje se
diria. Este, desapontado com se ver assim surpreendido, caiu dos píncaros, onde
a glória já lhe sorria em toda a sua plenitude aover ele realizado, em espírito,
o sonho constante da sua vida: chumbear uma onça pintada e depois cosê-la à
faca para rematar a obra.
- Tava cabando de impacotá ua pintada quando mecê pareceu, nha Fostina!
Nha Faustina, sempre silenciosa, despregou um formidável pelo-signal,
que foi do topete à cintura, virou as costas, arrepanhou a saia no quadril
esquerdo e saiu gingando o corpanzil, a resmungar.
- Ave Maria! Credo! Inté é mió a gente serri... O home virô maluco! Onde já se viu ua coisa ansim, diz que
pulando dentro de casa que nem
serelepe, co’a faca na mão cutucando a parede... Ave Maria! Ave Maria!
E já na cozinha persignou-se mais uma vez desabridamente, com a colher
de pau desbeiçada a fazer cruzes no ar.
*
* *
Chico Pipoca era um caboclinho franzino, de canelas magras e peladas, já
grisalho, com a boca chupada, pela falta dos saudosos dentes que esbrugavam outrora uma caiana roxa. Tinha os
olhos saltados como os do sapo. Daí o nome Pipoca, que lhe dava guinas de
espancar.
Morava em bairro antigo, de uma vila dos tempos coloniais, no sul do
Estado, uma povoação insulada, decadente, onde a população nunca ouvira sequer
o apito do "bicho de fogo" triunfante, onde a civilização permanecia
pouco além do bangué e da espingarda fulminante. Os terrenos, esturrados pelo
fogo, que lhes deitavam ano após ano, só brotavam sapé e assa-peixe, com alguns
capões raros e ralos de capoeira baixa, ruça, de terra exausta. Por ali os
milharais deitavam hastes escanifradas e espigas minguéras, retorcidas como
pés de crianças sifilíticas.
Caçador de cotia, Pipoca possuía dois pevas sem raça alguma,
magros e arrepiados, porque — dizia o
dono — "cachorro gordo fica preguiça e perde o faro". E com esta
filosofia venatória descarregava a sua consciência do jejum em que trazia os míseros cotieiros.
*
* *
Mas a imaginação de Pipoca era fértil, e aquele círculo estreito que
traça a cotia na carreira era por demais mesquinho para as suas ambições de
largo fôlego.
Sentado à beira do caminho, a poucos passos do carreiro,
enquanto Rompe-ferro e Corta- vento ganiam na
capoeira, à procura do rasto, o nosso homem parafusava grandes coisas: o sertão,
a mata virgem, uma perrada valente, espingarda Laporte,
chumbo paula-sousa, faca lambendo, acuação de pintadas
nas furnas pavorosas, e ele, ele mesmo, nho Chiquinho da Sirva, encafurnando-se
aos berros, açulando os cães, enfrentando, por fim, um macharrão a urrar de
tremerem as grotas; e afinal ele, nho Chiquinho da Silva, por entre o retintin-ratantan dos ganidos afinados,
a chegar, a fazer longa pontaria, a desfechar a Laporte uma, duas
vezes, e a arrancar em seguida a tira-prosa faiscante, porque o bicho, embora
mal ferido, vinha pela fumaça atacá-lo com fúria desmedida.
E eram então as cutiladas no barranco, e com tal entusiasmo que, de uma
feita, a cotia passou sem que ele a pressentisse.
Assim a ideia de conhecer o sertão se radicava dia a dia no espírito do
velho algoz das inofensivas cotias.
Todavia, uma coisa incomodava o nosso Esaú pelado: era que, quando,
passados aqueles momentos de rapto venatório, de cutiladas no barranco ou na
parede já esburacada do casebre; quando, metido já debaixo dos lençóis,
altas horas da noite, o espírito se lhe apoucava pelo temor das almas, dos sacis,
das mulas-sem-cabeça, e ele se punha a pensar de novo naquela cena figurada do
macharrão a urrar no escuro da sarapilheira, — então, uma como bolinha de gelo
lhe vinha rolando pela coluna dorsal abaixo, e a cafurina se lhe eriçava.
Encolhido, com a cabeça coberta, suando, Pipoca tinha nesse instante uns
rasgos de louvável honestidade:
— Quá! — dizia ele consigo mesmo — tô vendo que quando chegá a hora
triste, este mardiçoado friu me vae pregá ua massada das dúzia!
E lá do fundo de sua alma de cotieiro subia
uma revolta sincera contra a bolinha de gelo desastrada, que ameaçava reduzir
a cinzas o sonho por tantos anos acalentado.
Mas apenas nascia a claridade matutina e o sol, dissipando as trevas,
dissipava também os mistérios, os bruxedos, de novo Chico Pipoca se considerava
homem e a perspectiva do macharrão voltava a enfeitiçá-lo. Ah! que não daria ele
para dizer aos caboclos da redondeza: — "Aqui está o couro de uma pintada,
que matei em luta perigosa, sozinho, nas brenhas do sertão!"
E então, olhando para as
capoeiras de vassoura e de outros matinhos-pócas onde só se viam carreiros de cotias,
e onde só se ouvia o piado dos xintans e xororós, um quase desespero lhe
invadia a alma. Aquilo ali não era vida para um homem como
Chiquinho da Sirva!
*
* *
Um dia de calor, em que o ar
tremia como cordas de violão feridas, e no silêncio absoluto só se ouvia o
piado triste do sem-fim nos cambarás carapentos do cerradão, estalou a
porteirinha do sitieco, lá em cima, na boca da capoeira rala; e um cavaleiro surdiu,
ao passo bamboado de uma besta ruana, com o picuá a agitar-se na garupa, como
as asas de uma garça.
Chico Pipoca, roceiro da gema
que era, estava "tirando um corte" àquela hora, resupino, a sonhar com o macharrão na grota.
Aos latidos dos cotieiros, nha
Faustina foi até a porta, espalmou a mão na testa, espreitou longamente, e
afinal reconheceu no cavaleiro o compadre Zeferino, que havia dez anos se retirara
para umas terras distantes, nas margens do Tietê, dali a vinte léguas, onde
fora abrir um sítio.
Mal reconheceu o compadre, nha
Faustina sururucou para dentro e foi acordar o bem-aventurado marido,
que roncava já, no risco de perder a sua bem-aventurança com um grave pesadelo.
Nha Faustina, desastradamente,
pregou as unhas na barriga do esposo, justamente na hora em que o macharrão,
chumbeado, mas de pé, com as fauces rubras escancaradas e a dentuça à mostra,
firmava um bote certeiro sobre o caçador que, havendo tropeçado num toco,
rolara por terra, perdera a espingarda e debalde procurava coser a onça à
faca, porque a lâmina se transformara em barra de sabão!
Resultado: ao bote de nha
Faustina, correspondeu um berro e um prisco de Pipoca, que daquela
feita espipocou os olhos desmesuradamente.
— Tá maluco? — perguntou nha Faustina.
— Ué! pois onde já se viu acordá um home unhando a barriga dele desse feitio!
— Corde é que é, su samoco! Cumpadre Zeferino tá aí.
— Quem?
— Compadre Zeferino, já disse.
— O que? devéra?
— De certo é mentira. . .
Mas nisto as esporas do
Zeferino resoaram no solo pisado da saleta e a voz amiga, que não se ouvia há
dez anos, entrava com alvoroço nos corações saudosos.
Foi um dia cheio para a
pequenina choça.
A prosa cerrada abrangia a
todos e a tudo, minúcia por minúcia. A Tudinha, contava o Zeferino, que fora
dali apenas com quatorze anos, já tinha uma ponta de seis filhos que eram uma
boniteza! O Tonho andava para casar-se. Já tinha um sítio "de seu",
com uma invernada capaz de engordar um esqueleto! Ainda agorinha mesmo ele
havia mandado para lá o seu Brioso.
— O Brioso? Pois ainda veve aquele burro?
— Ora se veve! E forte que dá gosto! É o meu puxa-manjarra de todo
dia.
— E Pombinho, o cotieiro?
— Ah! esse já morreu faz um secro. Uma pintada moeu a cabeça dele numa acuação.
Os olhos de Pipoca brotaram
das órbitas, mas a maldita bola de gelo rolou, sinistra, pelo fio do lombo.
— Não cortando sua conversa —
disse Pipoca — ainda hai muita pintada por
aquela banda, compadre ?
— Agora não hai
quage. Só de vez em quando
remanesce uma passageira; não demora.
— Ah, compadre! Se vacê subesse a chianha que eu
tenho de dá um panasio nua pintada, compadre! Que vontade de vê mato, mais
mataria braba de verdade! Tô cansado de vê estas porquêra de bassora que não
tem fim. . .
— Pois é só arresorvê — atalhou o Zeferino. Arreie o Pilintra e bamo.
—
O Pilintra morreu
picado de cobra, mais porém tenho agora ua éua rusia que é
uma tirania de boa.
— Pois soque fubá na rusia, compadre, e toquemo. Eu demoro por aqui uns oito
dias. Dá tempo de introchá ela de fubá. Olhe que
daqui lá é um pedaço de chão.
Pipoca pôs-se a coçar a
grenha.
— Como é, nha Fostina? Vô u não vô?
— Ué! eu não trapaio mecê. Qué? pois vá.
— Mais há de sê pra vortá, não é, comadre?
- disse o Zeferino.
— Se quizé que fique
tamem por lá. . . Eu sei como é que hi de fazê.
— E não é que nóis vae mermo, compadre?
- exclamou o Pipoca.
— Tá feito! — respondeu Zeferino.
Durante o jantarzinho caipira, com o quarto de uma cotia afogadinho pela
perícia de nha Faustina, não se falou senão na viagem, que era para o Pipoca
uma lança em África.
Vinte léguas! — monologava ele. Olhem lá que eram vinte vezes a
distância do sitieco à vila, única viagem que ele, o Zé Curruira, seu pai, e o
Quim Raposa, seu avô, haviam jamais empreendido. Era preciso ter pacuéra para aventurar-se a vinte léguas. Assim,
só pensar naquilo já lhe causava tonturas. Grande recompensa para sua alma
estava na convicção de que ele era capaz de um tal rasgo de coragem.
*
*
*
Quando no bairro do Quilombo correu a nova de que o Pipoca ia apinchar-se lá para os sertões do Zeferino, o
assombro foi grande e os comentários intermináveis.
Uma loucura, que até ali só coubera na cabeça do Zeferino, um homem que
sempre fez as coisas de arrepio com o ramerrão daquela gente. E tão
pessimistas foram esses comentários, que Pipoca esteve a pique de roer a corda e
de perder a convicção de que era homem.
*
* *
Passou-se a semana, com o regalo da rosilha que tirou o ventre da
miséria.
Chegou a hora da partida. Nha Faustina não podia esconder as lágrimas,
que ia enxugando na manga do paletó. Chico Pipoca arregalava os olhos e
deglutia em seco, com um nó invencível na garganta.
E lá se foram os dois cavaleiros, seguidos de Rompe-ferro e Corta-vento,
entre nuvens de poeira erguidas pelos animais sofrivelmente cangiqueiros.
A pica-pau de Pipoca, untada de fresco, lampejava ao sol.
Os pousos eram mais ou menos de cinco em cinco léguas, de maneira que a
viagem se fazia em quatro dias. Uma puxada braba! — dizia Pipoca ao cabo da primeira
jornada, que o fez supor que este mundo não tem fim.
Derreado, mas são e salvo, o esposo de nha Faustina apeou-se afinal no
sitio do Zeferino, cercado de soberbas matas, o sonho de Pipoca. Olhando-as
embevecido, ele exclamava de si para si: — Esta viage foi ua temeridade; mais
valeu a pena! Só vê este mundo de matão enche o coração de ua criatura!
*
*
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Marcou-se logo para o outro dia a batida aos macucos encantados. Só a
palavra macuco encerrava para o
caçador de cotias um encanto inenarrável. Sim, era-lhe um sonho achar-se em
mata de macuco. Acreditava morrer sem essa ventura infinita, e a realidade
fazia com que a sua alma se desabrochasse numa prece de gratidão, toda quente,
muda, ainda que vaga, sem que ele próprio soubesse a quem ela se dirigia, se a
Nossa Senhora da Aparecida ou se a S. Bento de Araraquara.
Ouvindo o piar dos macucos ao entardecer, à hora do empoleirar, o
gralhar das araras em bandos, o martelar festivo dos gaviões caans nas
alvoradas sertanejas, Pipoca sentia vergonha de falar em cotias e outras "imundícias"; procurava a todo
custo varrer do espírito a imagem ignominiosa do seu rancho, do vassoural, e
tinha ímpetos de estrondar a cabeça do Rompe-ferro e do Corta-vento, rastos impagáveis,
ali, da sua miséria ainda viva.
E foi assim que ele penetrou na mataria fresca, a ostentar as amplas
copas das figueiras brancas, cujas raízes, como para-ventos descomunais,
abrigavam os caçadores de macuco.
Pipoca media de alto a baixo, com os olhos cúpidos e extasiados, os
troncos gigantescos, as frondes augustas, entestando com as nuvens, onde as
arapongas rangiam e malhavam, desafiando- lhe a pica-pau.
Zeferino tomou do pio e o primeiro piado, triste, foi morrendo pelas
grutas. Momentos depois vinha a resposta.
Com ela, o coração do Pipoca pôs-se a pular-lhe papo acima.
A respiração ofegante não lhe
permitia esconder a emoção que o esmagava. No pescoço pelancoso latejavam-lhe
as veias em golfadas valentes.
Novo piado; nova resposta,
mais perto. Os dois matutos estendiam a vista por todas as frestas, à cata da
presa arisca.
Afinal, começaram a ouvir-se
estalidos secos de folhas e gravetos. Com pouca demora, numa aberta, divisou-se
o lindo pássaro, a menear a cabeça indagadora, em que luziam dois olhos
líquidos e leais.
— Malhe fogo! — disse baixinho o Zeferino.
— Pum! — foi a resposta de Pipoca. A ave estrebuchou
com a chumbada certeira.
Não se descreve a alegria do
cotieiro. Sopesando a soberba caça, o rosto lhe fuzilava e a voz saía-lhe aos
trancos do peito opresso. E diga-se que não há felicidade na terra!
*
* *
Não era preciso continuar na
selva. Podiam regressar. Para que mais tiros ou macucos? Voltaram. Pipoca não
falava noutra coisa.
— Amanhã — disse ele — nóis vorta e leva otro bicho.
— Compadre, — respondeu Zeferino — vacê tá em sua casa. Fique aqui o tempo que vacê quizé;
mais eu já le vô aprivinindo que não le posso acumpanhá nas caçada. Tenho muito serviço atrasado que recrama
agora trabaio.
— Pois sim, compadre, pois sim... Eu venho só — obtemperou Pipoca; mas sentiu que a bolinha fria
lhe foi rolando pelo espinhaço.
Não obstante, o amor próprio,
e o desejo de novos tiros e novas sensações aliadas à crença de que naquelas
matas já não havia onça pintada, se não as passageiras de que falara o
Zeferino, fizeram-no firmar-se na resolução de voltar.
— Que sim; que iria só.
E, de fato, no outro dia, lá
foi ele entrando pela mata ainda orvalhada. E com tal felicidade, que topou uma
jacutinga desgarrada, ave que há muito não se avistava por ali. Novo tiro e
nova presa.
Diante de uma tal sorte,
Pipoca esqueceu-se de tudo, tudo; até de nha Faustina. O prazo que ela lhe
marcara para a volta escorrera veloz sem que ele desse pela coisa. Para ele o
tempo já não tinha divisões; não sabia mais ao certo o dia da semana em que se
achavam, nem a quantos do mês rolava o mundo; tudo se lhe transformara num
retalho da eternidade em que havia uma única bem-aventurança: entrar na selva
e matar macucos e jacutingas.
Aos poucos foi-se orientando
na mata, de modo que poderia internar-se sem perigo.
Certo dia atingiu um capão de
taquara, cerrado e convidativo para a tocaia.
Enfiou-se por ali, escondeu-se,
deixou morrer o barulho de seus passos, e piou.
Por muito tempo não se ouviu
resposta, nem ruídos, até que afinal um baralhar de ramos chamou a atenção do
cotieiro.
Fixou a vista, abriu a boca,
esfregou os olhos e reacendeu-os desmesuradamente. Que via? Uma oncinha
pintada, um filhote assim já meio respeitável.
— Atiro ou não atiro? — perguntou ele aos seus botões, trêmulo de comoção. Haverá ou não haverá perigo?
E enquanto esperava que o
animalzinho lhe ficasse em posição favorável, dissiparam-se-lhe todas as dúvidas.
— Atiro — respondeu por fim. Mato este bicho e
despois posso contá que matei onça pintada. Não perciso dizê que era pequena.
E sempre a tremer, ergueu a
arma, fez longa pontaria e atirou rente com a paleta. A oncinha rolou por
terra, estorcendo-se e estalando nos dentes as taquaras que alcançava, no
desespero da morte.
Estaria quase realizado o
sonho de Pipoca, se não começasse ele a ouvir, de um lado, ronco soturno,
ameaçador. Era da onça-mãe, que por ali se achava e acudira a defender a cria.
E Pipoca tinha a pica-pau
descarregada!
O terror que dele se apoderou
excede à alçada de uma descrição. O medo fê-lo resoluto, como sucede às vezes
com o rato, que apertado entre quatro paredes e vendo-se agarrar por um bichano,
atira-se-lhe ao focinho na ânsia de viver.
O ronco ia rodeando o capão de
taquara, apertando o círculo cada vez mais.
Chico Pipoca, quando
o círculo deveras se estreitava, sacudia um punhado de taquaras, cujo rumor
fazia com que o animal atirasse um pulo e afrouxasse o assédio.
Enquanto isso, o pobre
cotieiro, quase morto de pavor, tratava de carregar a pica-pau, cometendo,
porém, como era de esperar, vários enganos que lhe iam comprometendo a situação.
Ora esquecia-se de colocar uma bucha, ora punha chumbo do meio em vez de
paula-sousa... Ai, bola de gelo! bola de
gelo!
E o ronco a apertar o arrocho.
O ronco, digo, porque a fera não se deixava entrever.
— Minha Nossa Senhora da
Piadade! Meu S. Bento de Araraquara! — exclamava o nosso homúnculo quase a
soluçar.
Afinal conseguiu a carga
desejada, e chegara a hora de um tiro arriscadíssimo.
O círculo roncador fechou-se
ainda uma vez, e por fim, numa aberta, as malhas negras, variando um fundo
creme-claro, apresentaram-se aos olhos hiper-pipocados do Pipoca.
— Meu Santo Antonio, ajudai-me! Mando rezá dez missa
pras arma do Purgatório!
— Pum! — partiu o formidável tiro, que por um triz
não pôs em cacos a velha espingardinha cotieira. Mas o chumbo grosso varou o
coração da fera, que reproduzia, em grande, a cena há pouco descrita com
relação à oncinha: estorcia-se, arrancava arbustos com as unhas e estalava as
taquaras na agonia.
Pipoca atorou pelo mato como um veado.
Respirava, vivia. Quando
conseguiu sair na tiguera, sentou-se esbofado, em um tronco de peroba derribado,
por cujos galhos secos trepava uma viçosa aboboreira. Era preciso compor fisionomia,
de modo que não traísse o medo que curtira naquela moita de taquaras, onde acabava
de passar o transe mais amargo de sua vida.
Carregou a pica-pau, mirou-a
longamente, apertou-a contra o seio, beijou-a, amimou-a ao longo de todo o cano
e, depois, tocou para casa. Vinha estudando uns modos de chegar e de falar que
dissimulassem completamente o que acabava de sofrer. Era fino, Chico Pipoca,
isso lá era. Para engendrar uma fitinha, estava só!
— Ué, compadre, vortô sapatêro — perguntou o
Zeferino.
— Caçadô véio não vorta sapatêro, compadre. Vim
buscá vacêis pra me ajudá a tirá o côro de duas onça.
— Havéra de tê graça! — retrucou o Zeferino.
— Essas onça eu asso no dedo — acrescentou rindo a
comadre Valentina.
Não tô caçoando — prosseguiu Pipoca.
Nunca se vi nesses apuro; mais porém caçado véio não se aperta. Eu tava piando
macuco dentro de ua tocêra de taquara, quando de repente o mato garrô a mexê
ansim nua baxada. Espiei e vi as maia de ua pintada. Não cuxilei. Preguei fogo!
A bicha ainda tava se trocendo no chão, arrebentando tôco de taquara, quando
senão quando remanesce, roncando, a onça grande. Eu coa espingarda
descarregada! Vacês maginem só que
apuro, minha gente! A bicha garrô rodeá o capão de taquara, e ia apertando o
circo cada vez mais. Às vez ela passava tão rente comigo que eu. . . que eu. .
. inté chegava a chuçá ela co'a ponta da espingarda, que era só prisco que ela
dava. Palavra!
Este "palavra" era sinal infalível de uma peta enxertada numa trama de verdades, sempre
que Pipoca se punha a descrever um acontecimento mais ou menos cheio de peripécias
emocionantes.
— A bicha — continuou ele — vortava de novo roncando
nua toada. Home pra que hi de minti: quage que sinti uns arrepio no fio do lombo.
. . coisa que nunca tive na minha vida.
Afinar consegui corrê uns
paula-sôsa nesta boniteza de espingarda (e deu um beijo na pica- pau) e
tranquei fogo no bichão macota. Deixei ela ainda estrebuchando no mato... Há de
tá lá...
— Ué! — observou o Zeferino — porque não esperô morrê?
Aqui o Pipoca se viu
atrapalhado para responder, mas saiu-se com esta:
— É que eu fiquei cum medo que não désse tempo de
tirá o côro hoje...
Houve um silêncio indicador de
que ninguém engolira aquela pílula, e na alma de Pipoca, desceu, fria e cortante,
a convicção de que toda a sua fleuma postiça, estava comprometida para sempre.
Cumprira-se o seu receio de que a maldita bola de gelo havia de sacrificá-lo na
hora decisiva.
*
* *
Pipoca voltou para o sitieco,
acompanhado de Rompe-ferro e Corta-vento. Trazia os dois troféus de suas
façanhas, com os quais encheu de prosa todo o bairro; mas guardava consigo, no âmago,
indestrutíveis e minazes, como ferrugem, duas convicções atrozes: a de que
envelhecera alguns anos naqueles poucos dias, e a de que a bola de gelo, que
rola pelo espinhaço de um mortal, é doença para que não há cura neste mundo. E
esta foi a eterna amargura da sua alma.
Do livro
Selvas e Choças
São Paulo:
Imprensa Metodista, 1922
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