Natércia Sarander
Despair. Desespero.
Próximo ao tornozelo direito.
Vermelhas.
Letras vermelhas tatuadas.
Era psicóloga do DEGASE, lotada
no Instituto Padre Severino, reformatório para menores infratores localizado na
Ilha do Governador, no Rio de Janeiro.
Meu primeiro contato com o
sobrevivente Viktor Frankl foi através dela.
Não que ela fosse pedófila ou
pervertida, nada disso.
Tudo calhou: sua separação, sua
dor, minha detenção, minha dor, literatura, terapias, olhares de fome paradisíaca.
Dois esfaimados de paraísos.
O beijo não foi iniciativa de
ninguém. Simplesmente beijamo-nos, uma inevitabilidade assim como o nascer do
sol ou a morte de uma mosca três dias depois de nascida. Ficaria bem se apenas
nisso, mas fomos além. Dezessete anos, trinta e quatro anos.
Quando fiz dezoito e saí, ela
reuniu coragem e levou-me para sua casa. Nada de crimes, Guil. Nada de crimes,
Natércia.
Os vizinhos que se danem. Toleram
o casal gay, nada podem dizer de nós, e você tem esse carão de homem mais
velho, e já é de maior.
A casa sem ela nos dias de
semana. Todos aqueles livros. Parava depois de doerem-me os olhos. Trinta
minutos, me recuperava e voltava para aqueles homens cheios de histórias e sugestões.
Você precisa arrumar um emprego
logo. Todos esses livros. Está lendo mais do que eu!
A vergonha foi do dia em que uma
das vizinhas de andar perguntou se eu era filho dela. Velha escrota, sabia que
não. Velha escrota, uma faca nessa glote ficava-lhe bem. Deus me perdoe, é preciso
suportar, como Frankl. Pô, nada a ver. Mas é preciso suportar.
No segundo mês ficou difícil,
estresse no Instituto, a mãe dela ficou sabendo, ‘sou liberal sim, mas isso é
demais!’, ruim de conseguir emprego.
Janota pode me conseguir um
emprego no ferro-velho. Nada de desmanche, longe disso. O ferro-velho é
legalizado, trampo limpo. Se começar a aparecer peça roubada eu pulo fora.
Cadeia não.
“Que história hein seu Guil!
Então arrumou uma mulher e agora quer trabalhar de verdade? Seguinte: aqui o
pau come. Não tem arrego não. Olha o Pedrão ali, é só fardo de papelão molhado
e prensado, sacão de latinha de alumínio nas costas, ferro e o escambau. Mas
você não caguetou ninguém quando rodou, então eu, como sujeito homem, tenho que
te dar essa moral.”
Não demorou uma semana, cinco
dias no máximo. Eu até que estava aguentando o tranco numa boa. O Queixinho
apareceu com umas muambas. Entrou no escritório, conversou com Janota. Saiu e
descarregou tudo no pátio. Pega isso aqui Pedrão, leva pra cima.
Depois perguntei ao Pedrão, que
parada era aquela. Liga não Guil, são umas peças que o Queixinho arrumou.
Poxa Janota, cê falou que não
rolava treta. Liga não Guil, parei mesmo, mas essa tava muito barato, e o
Queixinho tava dependendo...
Sabe, o acaso, assim como o azar,
não existe. Mas ambos armam ciladas. O esquema das peças era grande, o dia era
mau, a casa caiu em cascata.
Queixinho era cunhado de Luizão,
um PM safado lá do Batalhão de São Cristóvão. O PM arrumava as peças, elas eram simplesmente
retiradas do depósito de carros apreendidos pela polícia, os carros que ficavam
lá abandonados pelos donos, que não podiam mais arcar com as multas e taxas.
Queixinho era um dos encarregados de se desfazerem das peças, revendendo-as
onde desse.
O comandante do 4°BPM fora
exonerado, e novo comandante do Batalhão de Luizão resolveu acabar com a farra,
que já era de conhecimento de quase toda a hierarquia. As batidas da Civil e da
Corregedoria da PM foram simultâneas em vários lugares.
Chegaram miseravelmente na hora
do almoço, antes das 13h00. Eu sabia que era a bronca das peças. Só estávamos
eu e o Pedrão no ferro-velho. Eu iria rodar no artigo 180, Receptação, e
possivelmente no 288, Formação de Quadrilha. Isso não era nada. Mas a vergonha
para Natércia, não, ela me salvara do abraço de todos os satanases deste e do outro
inferno. Essa vergonha, essa decepção, nunca! Pulei do parapeito da janela,
ainda com a boca cheia do frango da marmita. Entrei no carro de Janota, que
tinha ido almoçar em casa, a pé. Essa vergonha ela não iria passar. Gritos,
tiros, para-brisa traseiro detonado à bala. O azar não existe, mas arma
ciladas. Entrei em casa, eles não estavam me perseguindo. Era sábado, ela
estava em casa. Deveria estar em Irajá na casa da mãe, mas estava em casa. Mas
eles estavam me perseguindo. Antes de eu começar a explicar, antes de eu
conseguir colecionar em meu coração as palavras que ofereceria à mulher de
minha vida, eles arrombaram a porta. Ela estava parada, com o telefone sem-fio
na mão, me perguntando o que tinha acontecido, por que eu estava lívido. Ela
deveria estar na casa da mãe. O primeiro que arrombou a porta disparou.
Depois alegou que confundiu o
telefone com uma arma, olhou para os cabelos curtos dela e achou que era um
homem, e estava armado. Disse que não teve opção.
* *
* * *
* * *
Por um milagre, ou um
encadeamento de milagres, escapei de ser preso. Já se passaram oito anos.
Casei-me e tive um filho, Viktor, esse garotão aqui no meu colo. Estou aqui
neste culto da Assembléia de Deus em Guadalupe, a pregação de hoje foi sobre Jó,
seus amigos e o perdão, e eu lembrei-me de Natércia. “Sociedades se constroem com perdão”, era a frase com que ela
iniciava e terminava as seções de terapia coletiva, era a máxima e o mote da psicóloga que amei. E isso
foi sendo fincado nas pedreiras dos corações de toda aquela molecada perdida,
palavras na brita, mantra a puxar o comboio de tudo o mais que ela nos ensinou.
Até hoje esforço-me em realizar
esta máxima. Agora que encontrei a Cristo, entendo a eficácia equalizadora do
perdão.
Por vezes creio firmemente que
perdoei, e tenho certeza e paz; mas por vezes meu coração recorda e endurece
até a morte. Não me vinguei, mas fui fundo no rastro dos porcos, pus uma mão na
maçaneta da portinhola do inferno: descobri até onde o policial morava, viciado
de merda, tinha duas famílias, duas vadias que prestavam-se ao papel. Cheguei a
apontar uma pistola na cabeça de Queixinho. E o traíra do Janota, quando rodou
bateu pros meganhas que eu sabia e participava do esquema. Ia incendiar-lhe a
casa, crianças, o cão e tudo, mas não me vinguei de ninguém, não matei nenhum
deles.
Mas como disse, cheguei a dar
meio giro na maçaneta da porta. Dois anos depois de perder Natércia, conheci
uma menina, no mesmo dia em que ia matar o policial. A história é longa, sei
que você está curioso. Aquele dia foi mesmo um filme. Mas o que importa é que
ela deu-me alento, me carregou pra igreja, me fez voltar a estudar. A poucos
metros de minha vingança, perdoei o homem que havia cancelado minha família, a
única que tive, e um milagre, ou um encadeamento deles, levou-me (poucos metros
adiante!) até aquela que seria uma outra família para um homem sem qualquer
esperança e nada a perder, mas, ainda que renitentemente, disposto a acreditar
no perdão.
Hoje eu tenho minha vida, meus
livros, minha esposa e meu filho. Prestei vestibular pra Psicologia e
Sociologia, passei em Sociologia, me formo este ano. Continuo com minha fome de
paraíso, que hoje é silenciada pelas promessas de Cristo, meu do tesouro mapa e
salvo-conduto para a Paz. Descobri (ou confirmei) que não existe acaso ou azar:
há erros e acertos, há crimes e castigos, ação e reação. E há o perdão, a
quebra dessas cadeias, a mão de Deus equalizando as coisas, a única forma de
vencer.
Ela sabia.
Sammis Reachers
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