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quinta-feira, 29 de novembro de 2012

DOS POETAS

a arte dos poetas é marcada 
de plenos acentos:
esdrúxulo é o seu canto 
grave a alma
aguda a língua

o coração dos poetas é inundado
de todos os sangues: do fecundo
dos que tombam nas batalhas,
do turvo dos condenados,
do sem nome dos que foram
retirados por um golpe sem mão
e que ao resvalar pelas ruas
cria a penumbra,
do seu próprio sangue

a pele dos poetas é agitada
de eriçados ventos:
à voz projectada do voo da ave
do assobio que o jovem dirige
à bela menina quando ela passa
como nuvem que uma brisa,
ao moldar-lhe a anatomia, ela própria freme,
aos uivos da noite dançando
pelos espaços deslaçados pelos rios

a boca dos poetas esparge
no peito dos que os ouvem
o perfume e a lágrima,
abri-la e fechá-la
é a expansão do céu e da terra

Rui Miguel Duarte
27/11/12

César Vallejo: Pedra Negra Sobre Uma Pedra Branca



Pedra Negra Sobre Uma Pedra Branca

Eu morrerei em Paris, com aguaceiro,
um dia que não sei, mas já recordo.
Morrerei em Paris, talvez – não fujo
numa quinta de outono, igual à de hoje.

Quinta-feira há de ser. Hoje, que proso
estes versos e mal me tenho os úmeros,
é quinta, e, como nunca, hoje voltei
com todo o meu caminho a me ver só
Morreu César Vallejo, o que apanhava
de todos sem que nada fizesse;
lhe davam duro com um pau e duro

com a corda também; são testemunhas
as quintas-feiras, os meus ossos úmeros,
a solidão,as chuvas e os caminhos.

Tradução de Thiago de Mello

in Poetas da América de Canto Castelhano (Global, 2011)

sábado, 24 de novembro de 2012

Eduardo Galeano, da Função do Leitor (César Vallejo)

Galeano

A função do leitor/ 2 

Era o meio centenário da morte de César Vallejo, e houve celebrações. 

Na Espanha, Júlio Vélez organizou conferências, seminários, edições e uma exposição que oferecia imagens do poeta, sua terra, seu tempo e sua gente. 

Mas naqueles dias Júlio Vélez conheceu Jose Manuel Castanon; e então a homenagem inteira ficou capenga. 

Jose Manuel Castanon tinha sido capitão na guerra espanhola. Lutando ao lado de Franco, tinha perdido a mão e ganho algumas medalhas. 

Certa noite, pouco depois da guerra, o capitão descobriu, por acaso, um livro proibido. Chegou perto, leu um verso, leu dois versos, e não pôde mais se soltar. O capitão Castanon, herói do exército vencedor, passou a noite toda em claro, grudado no livro, lendo e relendo César Vallejo, poeta dos vencidos. E ao amanhecer daquela noite, renunciou ao exército e se negou a receber qualquer peseta do governo de Franco. 

Depois, foi preso; e partiu para o exílio.

Eduardo Galeano, in O Livro dos Abraços

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

DA PALAVRA

Esta criança que eu fui veio a mim
Uma vez,
Ignoto o seu rosto,

Não disse uma palavra, caminhámos
Cada um fixando o outro em silêncio, nossos passos
Ribeira indo-se, ignota.

Raízes nos reuniram, no nome destas folhas
que viajavam no vento
Separámo-nos,
Floresta escrita pela terra, narrada pelas estações.

Tu, a criança que eu fui, aproxima-te:
O que há, doravante, para nos unir, e para nos dizermos?

Adónis, poeta sírio (n. 1930), a partir de tradução francesa.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

BIOGRAFIA DE MOISÉS ATÉ SER MÁRMORE


Aquele que no mármore havia de sentar-se
pela pesada mão de Miguel Angelo

começou escondido entre as folhas
do rio Nilo, os papiros onde entrou
iriam guardar seu nome, iriam abrir
as veias
a cada signo do seu nome

sombras verdes oblíquas o escondiam
dos olhares, debruçadas sobre as águas
as aves entendiam o silêncio, o menino
ora dormente, ora com um choro umbilical

e o cesto de juncos e betume
não rompia, na folhagem
a fragilidade das águas.
 
15/11/2012
© J.T.Parreira

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

De como o poetastro cínico Samerson Mesmer Fassbender desconstrói, em catastróficos versos, as sofridas heroínas dos contos infantis




BRANCA DE NEVE

Nunca houve mulher mais amorosa
e mais disposta a todos.
De cada anão, de cada cão
ela subtraía o coração e mais um gole
duma coisa qualquer. E ia somando tudo,
para criar em sua mente apreensora/disruptora
da Realidade, o Homem Total –
princesinha policínica em busca do ente polifálico.

Prestativa, amorosa como sói acontecer
nas alcovas de Cleópatra ou nas luas de Saturno.



CHAPEUZINHO VERMELHO

Ela é uma menina muito especial
e tem sempre palavras muito especiais

Ela tem uma Evazinha dentro do coraçãozinho
e traz sempre as maçãs no cesto,
são o seu cinturão de granadas

Traja com graça tântrica seu capuz vermelho & vivaz
que é para combinar com as mui parrudas maçãs
Tem também, secreto em seu espartilho,
um baralho incompleto, onde falta
o Rei de Ouros

e propõe criativos e sinistros jogos
a quantos famintos encontra



CINDERELA

De carruagem em carruagem ela avança,
estilosas abóboras Honda, Hyundai ou Citröen.
Pelos seus (des)caminhos despede sapatinhos
como quem atrai cães com carocinhos
de ração, para a carrocinha
de seu coração, de cristal swarovski
& para otários a prisão.
Transforma pais de família em sabão.

Omo.



GATA BORRALHEIRA

Destrói a bênção e chora quando dá,
seu choro dura sempre a exata metade
de uma noite, pois a mesma noite
provê quem a console. É uma escrava
de sua própria pulsão de luta.
“Mulher tem que ser safada mesmo.”
Seu homem é pouco, principezinho malsão
de salteadores, Hobin Hood lento, bonzinho
demais, tapete de igreja. Não é mais para ela.
Bom mesmo é o homem alheio. Ela o quer,
e tudo que ela quer, ela consegue.
Determinada. E poderosa. Dane-se.
Ela é poderosa.
Seu celular de quatro chips, o centro-de-sua-vida,
eletrônica Caixa de Pandora, bloqueado
por floreada senha, é como o raio de Zeus,
o arco de Diana: sua arma de caça & extermínio.

Ave Eva, ovo donde cedo ou tarde
eclode Jezabel!

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

SEM KADDISH




A morte levou ao rabi
a sua primeira mulher e os seus seis
filhos no campo de Auschwitz
A sua segunda agora
era estéril. Não teria um filho
para dizer um Kaddish
por ele quando a morte
passasse com o carro menos cheio.



12/11/2012

© J.T.Parreira


(após leitura de um relato de Victor Frankl)

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Viktor Frankl: O Super Sentido




Esse sentido último necessariamente excede e ultrapassa a capacidade intelectual finita do ser humano; na logoterapia falamos neste contexto de um super-sentido. O que se requer da pessoa não é aquilo que alguns filósofos existenciais ensinam, ou seja, suportar a falta de sentido da vida; o que se propõe é, antes, suportar a incapacidade de captar em termos racionais o fato, de que a vida tem um sentido incondicional. O logos é mais profundo que a lógica.
Um psiquiatra que vai além do conceito do super-sentido mais cedo ou mais tarde acabará embaraçado por seus pacientes, como se deu comigo quando minha filha de seis anos me perguntou: "Por que dizemos que o Senhor é bom?" Eu repliquei: "Faz algumas semanas você teve sarampo, e então o Senhor, em sua bondade, fez você sarar completamente." Mas a pequena não se deu por satisfeita e retrucou: "Ora, pai, não esqueça que foi ele que me fez pegar o sarampo!"
No entanto, quando o paciente está sobre o chão firme da fé religiosa, não se pode objetar ao uso do efeito terapêutico das suas convicções religiosas e, assim, ao aproveitamento de seus recursos espirituais. Para esse fim o psiquiatra pode colocar-se no lugar do paciente. É exatamente isto que eu fiz certa vez, por exemplo, quando um rabi da Europa oriental veio ter comigo e me contou sua história. Ele tinha perdido sua primeira esposa e seus seis filhos no campo de concentração de Auschwitz, onde foram mortos na câmara de gás, e agora se evidenciou que sua segunda mulher era estéril. Observei que a procriação não é o único sentido da vida, pois neste caso a vida em si perderia o sentido, e algo que em si mesmo não tem sentido não pode ganhar sentido simplesmente através de sua direta ação. Entretanto o rabi encarava a sua sorte como um judeu ortodoxo, ou seja, no desespero de não ter um filho que pudesse pronunciar o Kaddish (Oração pelos mortos) para ele, depois de sua morte.
Não desisti. Fiz uma última tentativa de ajudá-lo perguntando se ele não esperava ver os seus filhos novamente no céu. Minha pergunta, entretanto, desencadeou uma torrente de lágrimas, e agora sim veio à tona o verdadeiro motivo de seu desespero; explicou ele que seus filhos, uma vez que morreram como mártires inocentes, mereceriam o mais elevado lugar no céu; mas ele mesmo, um velho pecador, não podia esperar receber o mesmo lugar. Ainda não desisti e retruquei: "Não se poderia conceber, rabi, que foi justamente este o sentido de o senhor sobreviver a seus filhos, para que fosse purificado por estes anos de sofrimento, de modo que também o senhor, embora não inocente como seus filhos, possa, afinal, tornar-se digno de juntar-se a eles no céu? Não está escrito nos Salmos que Deus guarda todas as suas lágrimas? Assim talvez nenhum de seus sofrimentos tenha sido em vão." Pela primeira vez em muitos anos ele se sentiu aliviado do seu sofrimento, pela nova perspectiva que lhe pude abrir.

Viktor Frankl, no livro Em Busca de Sentido